Cidadania e direitos fundamentais

AutorJosé Noronha Rodrigues
CargoDirector do Centro de Estudos Jurídico-Económicos da Universidade dos Açores
Páginas181-212

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Ver Nota1

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I Introdução

Num tempo em que metade do Mundo desconfia de outra metade do Mundo, abordar a temática da Cidadania e dos Direitos Fundamentais é circunscrevê-la ao Homem. Numa época, em que o "choque das civilizações"2 parece estar eminente, debruçamo-nos sobre a Cidadania e sobre os Direitos Fundamentais é, ancorar nos princípios e direitos inalienáveis do Homem. Num período, em que a geometria da Europa se estende a Leste, atracarmos o estudo na Cidadania e nos Direitos Fundamentais é possibilitar a criação de um "(...) demos europeu complementar dos demoi nacionais e regionais, [que] continua por construir. Um povo integra cidadãos, é certo, mas a cidadania europeia está bem longe de consubstanciar um demos europeu capaz de cumprir, ao nível da União, aquelas tarefas que habitualmente são desempenhadas pelos seus congéneres nacionais e regionais."3 Num ciclo em que, aparentemente, as cidadanias nacionais dos Estados-membros da União Europeia estão consolidadas, é necessário almejar um estádio superior de Cidadania, a Europeia, e para que no futuro próximo possamos ambicionar alcançar um estádio, ainda, superior de Cidadania, a Mundial4.

É certo que, neste pequeno continente circunscrito a que, vulgarmente, chamamos Europa a consciência europeia tem evoluído em passos largos, mas será que temos um demos Europeu ou temos um "demos" sem "ethnos"5? A doutrina6 não é unânime nesse

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pequeno/ grande pormenor. Somos, todavia, da opinião que ainda não temos, verdadeiramente, consolidada a essência do "demos europeu ", nos vinte e sete estados-membros da União Europeia. Caminhamos para uma Cidadania Comum da União Europeia, mas temos de desenvolver esforços para que, num curto espaço de tempo, tenhamos uma Cidadania Única na Europa, não complementar das cidadanias nacionais, mas que a substitua. Temos de almejar ser um "demos europeu"; em que, todos os cidadãos europeus tenham os mesmos direitos e obrigações, independentemente do seu Estado de origem e/ou da sua nacionalidade. A nossa nacionalidade terá de ser Europeia e, consequentemente, a nossa naturalidade terá de ser a de um Estado-membro de origem. Temos de incrementar esforços, quebrando barreiras económicas, sociais e culturais para que, num curto espaço de tempo, possamos afirmar, categoricamente, que somos naturais de, por exemplo, Espanha, Portugal, França, etc., mas temos a "nacionalide europeia"7. Só nesta, altura, teremos, verdadeiramente, um " demos europeu ".

É sabido que o conceito de cidadania foi evoluindo desde a antiguidade clássica, tendo na sua base conceptual a Humanidade do homem. A cidadania "(•••) exprime a ligação da pessoa ao Estado [a uma Comunidade Política]. É rotulo com que o Estado marca as pessoas que o integram e a quem confere uma série de direitos e obrigações, tornando-as sujeitos, e não apenas meros súbditos ou estranhos (...) e sobre o qual o respectivo poder é exercido"8. Por conseguinte, a Comunidade Internacional, os Políticos, os Estados e os Homens em particular têm de se consciencializar, de uma vez por todas, que temos "uma só terra para um só povo"9.

II A evolução do conceito de cidadania

O alicerce do conceito de Cidadania faz-nos reportar à Grécia Antiga e, ao pensamento de Aristóteles. Este pensamento "[foi] a primeira tentativa sistemática para desenvolver uma teoria de cidadania, foi também no espaço da polis grega, em Atenas, desde o século V até ao século IV.a.C. que a prática da cidadania teve a sua primeira expressão".10 Para Aristóteles, o Homem dividia-se em dois grupos: os cidadãos, aqueles que participavam na vida pública, na comunidade política e nas decisões da polis; e, todos os outros, que se abstinham por completo do exercício efectivo dos

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direitos de cidadania. O Homem é na realidade para Aristóteles "(• • ) um zoonpolitikon, um ser político. Por outras palavras, ser homem é ser cidadão. Tanto assim, que fora da comunidade política, quer dizer, para além de um contexto de cidadania, não é possível encontrar seres, verdadeiramente, humanos, mas tão só seres infra ou supra-humanos, animais ou deuses."11

Deste modo, podemos afirmar que, na Grécia Antiga, a Cidadania era limitada e restrita a algumas pessoas e se baseava na "regra de exclusão", definindo quem era ou não cidadão. O cidadão Ateniense era livre e participativo da vida pública (v.g. era um militar com autoridade e idoneidade para defender comunidade), com o poder de influenciar as decisões da polis (v.g., a nível económico, social, cultural, político, jurídico, e internacional)12 distanciando-se, por conseguinte, dos não-cidadãos -estrangeiros, mulheres, metecos13 e bárbaros. Curiosamente, "(...) os gregos cunharam um conceito - o qual permanece entre nós, aliás - para descrever aqueles que se alheiam, ou se deixam alhear da actividade política: o conceito de idiota! Idiotas são, com todo o rigor, todos aqueles que em vez de se empenharem activamente na condução e na definição das suas vidas, por não querem ou por não poderem, têm outros que o fazem por eles - tanto na vida privada, individual, como na vida pública, colectiva."14

Ser cidadão Ateniense era um privilégio concedido, apenas, a alguns, de serem membros integrantes e participativos de uma comunidade política, da polis. Era sinónimo de poder, de usufruir na plenitude de todas as dádivas, direitos e obrigações concedidas e permitidas pela própria comunidade política. Por sua vez, esta " (...) comunidade política é feita de membros, integra um demos, isto é, um corpo de cidadãos, que se definem a si mesmos precisamente pelo facto de integrarem essa comunidade e de se regerem pelas normas que a enformam, participando no exercício do respectivo poder político. Isto é, comunidade política implica cidadania e, por seu turno, cidadania implica participação no exercício do poder, isto é, democracia."15 A concepção Romana de cidadania diverge da concepção Grega16. Deste modo, "(...) a

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matriz romana adquire uma tradição jurídica que se enquadra mais aos nossos tempos do que propriamente a grega. Na matriz romana, os direitos cívicos - liberdades fundamentais: liberdades individuais, de propriedade, de pensamento, etc. - submetem-se aos direitos naturais e expande-os da Polis para o Imperium, onde passa agora a haver uma comunidade de direito e, ao contrário da Grécia Antiga, há o direito de não ser excluído. Contudo, enquanto que o cidadão ateniense é aquele que se aproxima daqueles que são iguais a ele e se distancia dos que não são, o cidadão romano é o que se defende por leis." A cidadania romana, inicialmente, era restritiva aos cidadãos de Roma, mas, rapidamente, estes consciencializaram que a concessão do estatuto de cidadania era " (...) um instrumento de controlo social e [de] pacificação, (...) garantindo a cidadania às pessoas do império, Roma poderia regular e ser legitimada aos olhos dos conquistados."17 O imperador Caracalla18, com o seu Édito do ano 212 - estendeu a cidadania romana como forma de unidade, a todos os habitantes do Império, sem distinção de raça, religião e/ou cultura.

No século XX, Thomas Humphrey Marshall, no seu ensaio "Citizenship and Social Class", define a cidadania como a participação integral do indivíduo na comunidade política.19 Este conceito implicaria a existência de um status adstrito à condição de membro de pleno direito de uma comunidade, bem como, uma igualdade de direitos e de deveres decorrente desse status20. O autor trata assim de distinguir três direitos de cidadania: direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. Os direitos civis são os "(•••) direitos necessários à liberdade individual - liberdade da pessoa, liberdade de expressão, pensamento e religião, o direito de propriedade de celebrar contratos válidos e o direito à justiça". Estes direitos estariam associados, enquanto instituição, ao sistema judicial. Já os direitos políticos referem-se ao "(•••) direito de participar no exercício do direito político como membro de um órgão investido de autoridade política ou como eleitor dos membros desse órgão" e teriam a sua expressão nas instituições parlamentares. Os direitos sociais incluem "(•••) o direito a um certo bem-estar e segurança económica, ao direito de participar permanentemente na herança social e viver a vida de um ser civilizado de acordo com os níveis dessa sociedade (...)" e materializam-se nos serviços sociais promovidos pelo Estado e no sistema educativo.21

A cidadania exprime, portanto, "(•••) a ligação da pessoa ao Estado [a uma comunidade Política]. É rotulo com que o Estado marca as pessoas que o integram e, a

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quem conferem uma série de direitos e obrigações, tornando-as sujeitos, e não apenas meros súbditos ou estranhos (...) e sobre o qual o respectivo poder é exercido."22

Nesta perspectiva, o estudo da cidadania "(• • ) reporta-nos [obrigatoriamente], por um lado, para o conceito de comunidade política e, por outro, [aos Direitos Fundamentais e] para o modo como essa comunidade se encontra organizada. Ora, enquanto que a modernidade apenas teve lugar para um tipo de comunidade política, o Estado, já a contemporaneidade abre-nos caminho para uma panóplia delas - desde as Regiões Autónomas, na base, até às entidades supranacionais, como a União Europeia, no topo e, no limite, a cosmopolis, a comunidade da dimensão do planeta que os Direitos Humanos nos convocam a construir abarcando todo o género humano, produto da globalização, da interdependência internacional, do esboroar das fronteiras estatais e do reconhecimento da igual dignidade fundamental de todos os seres humanos"23

Deste modo, um Estado coeso, sólido, e democrático é o Estado que respeita a cidadania, que implementa e cria...

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