A cidadania de Zé Francisco e a história ?feita de baixo': os movimentos sociais de luta pela terra. Parte I: da ditadura militar à redemocratização

AutorColin Henfrey
CargoProfessor de antropologia (aposentado) na Universidade de Liverpool, Inglaterra
Páginas10-42
https://cadernosdoceas.ucsal.br
Cadernos do Ceas, Salvador/Recife, n. 240, p. 10-42, jan./abr. 2017 | ISSN 2447-861X
A CIDADANIA DE ZÉ FRANCISCO E A HISTÓRIA ‘FEITA DE
BAIXO’: OS MOVIMENTOS SOCIAIS DE LUTA PELA TERRA.
PARTE I: DA DITADURA MILITAR À REDEMOCRATIZAÇÃO
The citizenship of Zé Francisco and the making of history 'from below':
Social Movements in the struggle for land. Part 1: from the military
dictatorship to re-democratisation
Colin Henfrey
Professor de antropologia (aposentado) na
Universidade de Liverpool, Inglaterra.
Informações do artigo
Recebido em: 20/12/2016
Aceito em: 03/03/2017
Resumo
Este artigo deriva de matéria a ntropológica e oral
coletada através de 40 anos, principalmente na
Chapada Diamantina baiana. Dá um panorama da
luta pela terra nas décadas de 1970 e 1980, desde a
Bahia até o Acre. Porém sua ênfase principal é nas
raízes desta luta, na dinâmica da própria história
camponesa, nos n íveis locais e r egionais. Examina a
incorporação desta dinâmica e as suas afiliações
políticas em torno da questão da reforma agrária nos
princípios da Nova República, quando, na prática, o
MST já substituía o INCRA como o motor principal da
tentativa de democratizar a estrutura agrária no país.
Este artigo fornece um contexto histórico para a
questão dos assentamentos e da agricultura familiar
na política agrária contemporânea, dominada pelo
agronegócio. A realidade atual será avaliada na
segunda parte deste artigo, que retomará a história
das mesmas comunidades da Chapada aqui
estudadas, dos anos 90 até o presente. A forma
narrativa deste trabalho se explica no próprio texto.
Palavras-chave: campesinato. Luta pela terra.
Movimentos sociais. Reforma agrária.
Meu Brasi de Baxo, amigo,
Pra onde é que você vai?
Nesta vida do mendigo
Que não tem mãe nem tem pai?
Não se afrija, nem se afobe,
O que o tempo sobe,
O tempo mesmo derruba;
Tarvez ainda aconteça
Que o Brasi de Cima desca
E o Brasi de Baxo suba
(PATATIVA DO ASSARÉ, 1978).
Sobre a história feita de baixo: do despejo ao assentamento
Numa madrugada de agosto 1975, encontr ei, pela segunda, vez com José Francisco
Correia, conhecido como Zé Francisco, no escritório do STR (Sindicato de Trabalhadores
Rurais), no município de Andaraí, na Chapada Diamantina. Nosso primeiro encontro, uns dias
antes em Salvador, havia sido acertado pelos advogados da CPT (Comissão Pastoral d a
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Terra), recentemente fundada. Esta assumia a missão de defender as comunidades de
pequenos produtores rurais - agregados, independentes, rendeiros e posseiros - da onda de
despejos provocados pela valorização da terra, oriunda do crédito subsidiado do Banco
Mundial para ‘modernizar’ a agricultura brasileira ‘de cima’ durante o regime militar, já com
onze anos no poder, como capataz do capitalismo globalizado. O motivo de a Chapada atrair
essa especulação era o asfaltamento da BR 242: esse, saindo de Salvador, passa pelo Vale do
Paraguaçu e sobe a Chapada até o Vale do São Francisco e o oeste baiano, assim ligando a
antiga capital colonial à nova, Brasília, a mil e quatrocentos quilômetros de distância.
O motivo da viagem de Zé Francisco até Salvador era a luta da sua comunidade de
cinquenta e duas famílias contra seu despejo da terra onde trabalhavam, no município de
Iramaia, nas cabeceiras do rio Paraguaçu. Depois, admitiu ele que estranhou, neste primeiro
encontro comigo, o estrangeiro alto e branco. Todavia, o que eu reparei na hora foram seus
olhos observadores (fixados num homem baixinho, preto e analfabeto), sempre dando a
impressão de pensamento cuidadoso. Convidou -me para visitá-lo: combinamos nos
encontrar em Andaraí, cidadezinha a uns 400 quilômetros de Salvador, nascida com os
diamantes no século XIX e a única na região que tinha um Sindicato de Trabalhadores Rurais
(STR). Dali, avisou-me, iríamos ao município próxim o de Itaetê, entre Andaraí e Iramaia,
onde a sua família e outras que haviam sido despejadas de Limpanzol moravam agora ‘na
rua’, no pequeno povoado de Rumo.
Naqueles anos, do Sul do país até a Amazônia, através dos 8,5 milhões de quilômetros
quadrados da paisagem b rasileira, a ação do capital no processo de acumulação primitiva
estava destroçando, por meio da grilagem, milhares dessas comunidades camponesas e seus
meios de sobrevivência em distintos ambientes locais, desenvolvidos durante séculos ‘à
margem da história’ dominante do latifundismo. A distinção do caso de Limpanzol, no
município de Iramaia, no pé da serra da Chapada, era que aquela comunidade resistia à
transformação tão súbita e violenta do que eles chamavam ‘este mundão veio’. Implícita
nesta frase frequente de Zé Francisco e seus companheiros estava a noção que o mundo
natural não era para ser transformado daquele modo e de fora: devia ser reproduzido pelas
comunidades morando e trabalhando nele. Ou mais exatamente - porque sem dúvida
milhares de tais comunidades ameaçadas reclamavam sem ser ouvidas - a distinção das
famílias de Limpanzol era que o caso deles exigirem seus direitos foi um dos primeiros
conflitos de terra mencionado na imprensa depois de anos de censura pela ditadura .
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Em meados de 1975, uma pequena reportagem saiu no semanário da nova oposição,
Movimento, sobre este e outro conflito, em Camamu, na zona cacaueira do Sul da Bahia. No
caso de Limpanzol, o suposto dono local, cujos direitos os despejados questionavam, tinha
vendido a fazenda Floresta, englobando as roças e benfeitorias deles, a um investidor de fora;
no outro, de Camamu, a empresa norte-americana Firestone, expandindo sua produção de
borracha, despejava dezenas de famílias das roças que cultivavam por gerações.
Foi assim que eu, como jovem pesquisador inglês de antropologia na Bahia, ouvi falar
daqueles dois casos e resolvi conhecê-los. Foi gr aças à confiança e apoio dos advogados da
CPT que comecei uma relação, tanto pessoal como profis sional, com Zé Francisco, seus
parentes e companheiros. Essa relação perdura ao longo de quarenta anos e três gerações,
até este momento. Deu-me o privilégio de assistir ao nascimento e crescimento de um dos
movimentos sociais que, para mim, levantam as questões: quem faz a história de baixo, e
como? E quanto e de que formas pode influir no futuro dos brasileiros?
O Limpanzol de hoje oferece uma resposta. O local do antigo povoado virou uma das
três agrovilas do assentamento de reforma agrária Boa Sorte do Rio Una. É um dos maiores
na Bahia, com 340 famílias assentadas, incluindo dezenas dos netos de Zé Francisco e seus
companheiros. Ele mesmo não chegou a conhecê-lo como assentamento: faleceu em 2000,
quatro anos antes do seu acampamento ser transformado em um assentamento de 17.400
hectares, organizado pelo MST, com a participação da sua filha Valdete e vários dos seus
netos, como militantes de base (UFBA/Projeto Geografar , 2015). Zé Francisco, todavia,
participava nos anteriores acampamentos do MST na Chapada, que, nos anos ‘90 em diante,
transformaram os municípios vizinhos de Itaetê, Iramaia e outros na região de uma economia
de pecuária extensiva em outra, de agricultura familiar. E tudo indica que, antes de falecer,
ele previa, tanto quanto sonhava, a reviravolta da paisagem do latifundismo e capitalismo
especulativo para um novo mundo veio, sustentando e sustentado pela comunidade, hoje
muito maior, que vive nele.
Para discutir a primeira questão de quem faz a história de baixo e como, este artigo
descreve as raízes do movimento que produziu esta transformação. Quanto à segunda, de
que formas pode influir no futuro brasileiro, seu aspeto central será a controversa viabilidade
da agricultura familiar dos assentamentos, desprezados como ‘favelas rurais’ pelos
representantes do agronegócio que chegaram a dirigir o ministério da Agricultura (PAGINA
RURAL, 20 09). Será que o resultado dos movimentos sociais do campo, com essas raízes

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