A cidade murada: interdição e medo

AutorLiliane Vasconcelos
CargoDoutorado em Letras (Literatura Brasileira), pelo programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia, UFBA, (2016). Doutorado Sanduíche no Programa de Pós- Graduação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ (2015). É professora da Graduação em...
Páginas107-125
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 45, n. 251, p. 639-657, set./dez., 2020 | ISSN 2447-861X
A CIDADE MURADA: INTERDIÇÃO E MEDO
The walled city: interdiction and fear
Liliane Vasconcelos
Universidade Católica de Salvador (UCSAL).
Informações do artigo
Recebido em 22/08/2020
Aceito em 18/09/2020
doi>: https://doi.org/10.25247/2447-861X.2020.n251.p639-657
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Atribuição 4.0 Internacional.
Como ser citado (modelo ABNT)
VASCONCELOS, Liliane. A cidade murada: interdição e
medo. Cadernos do CEAS: Revista Crítica de
Humanidades. Salvador/Recife, v. 45, n. 251, p. 639-657,
set./dez., 2020. DOI: https://doi.org/10.25247/2447-
861X.2020.n251.p639-657
Resumo
O trato, a convivência com o concidadão parecem ter se
exaurido do cotidiano das cidades contemporâneas, pelo
simples fato de o pacto de convívio ter entrado em declínio, ou
praticamente ter se desajustado da proposta inicial da cidade,
uma vez que a sociabilidade com o diferente se reduz na mesma
medida em que aumenta o distanciamento do Outro. Nesse
sentido, o trabalho busca analisar as imagens de convivência
presentes na cidade de Salvador, representadas pela literatura e
pelo cinema contemporâneo, que trazem no cerne da narrativa
os espaços da cidade contemporânea e a relação dos
personagens com eles. Como forma de expressar esse
fenômeno ou até mesmo de buscar tornar os muros imaginários
mais visíveis é que as narrativas A rainha do cine Roma de
Alejandro Reis (2010), Salvador negro rancor de Fábio Mandingo
(2011), Ó pái, ó de Monique Gadenberg (2007) e Estranhos de
Paulo Alcântara (2009) representam Salvador, a partir dos seus
medos e enclaves contemporâneos. A fim de alcançar esse
resultado, este trabalho elege a mirada dos Estudos Culturais,
que investem nos diversos contextos da cidade enquanto texto,
bem como em uma ótica multidisciplinar, alicerçada nos estudos
urbanos. A pesquisa permitiu identificar, nas obras, que a
solidariedade e os afetos humanos presentes nos espaços
públicos da Cidade são diariamente sufocados por crueldade,
miséria e barreiras à ampla convivência entre os diversos
segmentos da sociedade.
Palavras-Chave: Cidade contemporânea. Convivência.
Representação. Literatura. Cinema.
Abstract
The deal, the coexistence with the fellow citizen seems to have
been exhausted from the daily life of contemporary cities, due
to the simple fact that the cohabitation pact has gone into
decline, or practically misfits the initial proposal of the city, since
sociability with the different reduces to the same extent that the
distance from the Other increases. In this sense, the work seeks
to analyze the images of coexistence present in the city of
Salvador, represented by literature and contemporary cinema,
which bring to the heart of the narrative the spaces of the
contemporary city and the relationship of the characters with
them. As a way to express this phenomenon or even to try to
make the imaginary walls more visible, the narratives A rainha
do Cine Roma by Alejandro Reis (2010), Salvador negro rancor by
Fábio Mandingo (2011), Ó Pái, Ó by Monique Gadenberg (2007)
and Estranhos de Paulo Alcântara (2009) represent Salvador,
based on their contemporary fears and enclaves. In order to
achieve this result, this work chooses the look of Cultural
Studies, which invests in the different contexts of the city as a
text, as well as in a multidisciplinary perspective, based on urban
studies. The research made it possible to identify, in the works,
that the solidarity and human affections present in the pu blic
spaces of the City are daily suffocated by cruelty, misery and
barriers to the wide coexistence between the different segments
of society.
Keywords: Contemporary city, Coexistence. Representation.
Literature. Movie.
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 45, n. 251, p. 639-657, set./dez., 2020
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A cidade murada: interdição e medo | Liliane Vasconcelos
Introdução
O cenário urbano atual das cidades brasileiras é marcado por uma erupção de
contrastes socioeconômicos que emanam no seu cotidiano, percebemos, contudo, que as
diferenças e os afrontamentos entre ricos e pobres, próximos e diferentes contribuem para
que cada vez mais aumentem na cidade a intolerância, o individualismo, a violência e a
insegurança nos espaços públicos das metrópoles, tais como na capital baiana.
Ainda que possamos observar um convívio mínimo entre os grupos sociais ou uma
suposta ur banidade em Salvador, notamos que as barreiras e interdições se sobrepõem a
essas relações. O trato, a convivência com o concidadão parecem se exaurir no dia a dia da
capital baiana, pelo simples fato de o pacto de convívio ter entrado em declínio, ou
praticamente ter se desajustado da proposta inicial da cidade, uma vez que a sociabilidade
com o diferente se reduz na mesma medida em que aumenta o distanciamento do Outro.
Neste contexto, os muros e as barreiras, visíveis ou não, aparecem destacados na
paisagem atual que representa Salvador nas narrativas contemporâneas. A fim de balizar o
estudo tecemos como objetivos Verificar como as narrativas selecionadas constroem a
representação urbana de Salvador na contemporaneidade, e discutir como as linguagens
literárias e cinematográficas promovem uma reflexão acerca das relações das personagens
com os espaços descritos nas obras como instituidores do imaginário social de Salvador
Sem perder de vista, é claro, que as imagens da cidade contemporânea colaboram para se
pensar a crise do urbano e da urbanidade.
A capital baiana, de acordo com a teoria dominante, foi fundada em 1549 e já possuía
traçado urbano original, que se reduzia a uma praça, da qual partiam ruas longitudinais e
transversais. Era fechada por duas portas: a do sul, Porta de Santa Luiza, na altura do antigo
prédio da Secretaria da Agricultura e Viação, hoje Palácio dos Esportes; e a do norte, Porta
de Santa Catarina, no começo da Rua da Miser icórdia. À medida que foi crescendo, a cidade
rompeu o primeiro muro, avançou com a porta do sul até a atual área de São Bento, e a do
norte se mudou para a direção do Carmo, situando-se mais especificamente no meio da
ladeira do Pelourinho, sendo o acesso denominado de Portas do Carmo.
Os descobridores portu gueses eram homens do Renascimento mas como
urbanistas pertenciam ainda à )dade Média SM)T(  p  De fato como afirma
Robert Smith, o sistema de construção da cidade, o arruamento e o local em que foi

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