Circunstâncias Acidentais do Fato Típico

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas227-250

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8.1. Conceito e significação

O crime apresenta elementos que se agregam e reúnem para conferir-lhe, sob um primeiro aspecto, o da tipicidade, a configuração jurídica. Dessa maneira, em um primeiro momento, o delito compõe-se pelo preenchimento de suas características legalmente estipuladas, ou seja, por meio de aspectos de fato ou normativos que se verificam no conjunto do episódio. Há circunstâncias, portanto, que estruturam e constróem o crime, porque participam do tipo legal delitivo e integram na lei a sua definição.

Circunstâncias constitutivas, também denominadas elementares ou essenciais, são aquelas que expressam os elementos necessários ao aperfeiçoamento jurídico do crime sob o ângulo de sua tipicidade. Vale dizer: são as circunstâncias que definem o delito e possibilitam a sua subsunção típica.

Como escrevemos em outra oportunidade450, a definição em lei dos crimes dá origem ao tipo (o tatbestand do Direito alemão ou a fattispecie do Direito italiano), que é a fórmula descritiva dos fatos proibidos implicitamente de serem realizados e que lhes serve de fôrma ou molde abstrato. Cometido um fato que se ajuste, integralmente, à definição legal do delito, realiza-se a sua adequação e se perfaz o enquadramento típico. A tipicidade do fato sempre se concretiza com supedâneo nos elementos descritivos de sua contemplação legal, posto deem eles existência e corpo ao crime. Esses elementos, chamados circunstâncias elementares ou constitutivas (essentialia), formam o preceito primário do tipo.

Circunstância elementar ou constitutiva do fato criminoso, destarte, é aquela que integra o tipo legal delitivo abstrato e compõe a descrição do crime. E a adequação típica ocorre com a perfeito enquadramento do fato concreto (a ocorrência da vida no plano fenomênico ou naturalístico) ao seu modelo legal. Consequentemente, as circunstâncias elementares ou constitutivas da definição legal do crime (tipo) é que

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conferem tipicidade ao fato concreto, quando este reproduz a hipótese abstrata, ao ser com ela cotejado, assim como um espelho reflete a imagem.

Todavia, ao contrário do que sucede com as circunstâncias elementares ou constitutivas do tipo (que são necessárias e imprescindíveis para a própria tipicidade do fato), podem ainda ocorrer circunstâncias acidentais. Estas nada influem para o efeito da tipicidade e alteram, unicamente, a sanctio juris cominada ao delito.

Nessa quadra, e como bem pontua Frederico Marques, é evidente que o crime, como lesão a um bem jurídico, não desenha sempre a mesma estrutura e gravidade, nem mesmo quando o interesse penalmente tutelado se apresenta idêntico451. Mesmo cunhados os fatos em idêntica figura delitiva, podem eles apresentar variações e matizes nas gradações de sua gravidade. Para aquilatar o nível de gravidade do delito é necessário, então, recorrer às chamadas circunstâncias acidentais, que servem de termômetro da temperatura do crime. Assim, é sempre preciso formular um juízo de valor sobre a conduta humana explicitada no tipo, para medida da pena a ser aplicada. Sob esse prisma, as circunstâncias acidentais não denotam qualquer efeito atinente à adequação típica do fato e podem ou não existir, indiferentemente, sem que impeçam o episódio de ter tipicidade (por isso são acidentais, em contraposição às essenciais). Não por outro motivo, a órbita de influência da circunstância acidental circunscreve-se ao preceito secundário do tipo (sanctio juris), não ao preceito primário.

Essa a razão pela qual a doutrina pontifica que circunstâncias acidentais são aquelas que, estranhas e alheias ao tipo, dão ao crime não um elemento para a sua existência, mas um modificador de sua reprovabilidade. Alteram somente a quantidade, nunca a qualidade do delito.

As circunstâncias acidentais gravitam ao redor do crime e existem em função dele. Porém, o delito não existe em função delas, pois alcança o seu aperfeiçoamento jurídico independentemente da ocorrência dessas circunstâncias452. Para Cigna, a acidental

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é um preceito coprimário que regula a sanção em suas diversas contingências453. Em suma: circunstâncias acidentais são as que não contêm novos elementos, mas que apenas particularizam, para medida da sanctio juris, os elementos já existentes no tipo.

Exemplo: matar alguém é a descrição típica do crime de homicídio (art. 121, CP). O alguém, empregado na dicção legal do delito, como é cristalino, concerne ao ser humano. Destarte, a eliminação da vida de qualquer pessoa encontra tipicidade no art. 121 do CP. Nada importa, para este efeito, a condição da vítima. Mas se aquele que é morto é pessoa menor de 14 ou com mais de 60 anos, ou pessoa enferma, circunstâncias que não são essenciais à tipicidade da conduta criminosa, a pena deve ser agravada com espeque no art. 121, § 4º, in fine, ou art. 61, n. II, "h" (respectivamente), do diploma penal (as circunstâncias menor de 14 anos e idoso - maior de 60 anos - assim como a condição da vítima de pessoa doente representam, portanto, dados meramente acidentais do crime).

Igual: no homicídio, o tipo (art. 121, CP) não requer uma particular maneira de execução, de sorte que qualquer meio que produza o exício da vítima possibilita a adequação típica: tiros, facadas etc. No entanto, se o homicídio é realizado com emprego de veneno, fogo, explosivo ou asfixia (circunstâncias não essenciais à tipicidade), a sanctio juris do delito é exasperada, ex vi do art. 121, n. III, § 2º, do CP (essas circunstâncias, por isso, são simplesmente acidentais).

Da mesma forma, é da essência do crime de aborto (arts. 124 a 126, CP) existir um processo de gestação em curso e ser provocada a interrupção do estado gravídico da mulher, com a consequente morte do produto da concepção. A interrupção provocada da gravidez e a morte do nascituro constituem elementos indissociáveis do aborto criminoso. Já a morte da própria gestante ou uma lesão grave nela produzida como sequela do aborto ou das manobras abortivas não se erige como fator indeclinável ao aperfeiçoamento da figura criminosa. Pode-se perfeitamente cogitar de aborto independentemente da morte da mulher grávida ou de uma lesão grave nela causada, ocorrências estas, pois, inteiramente desgarradas da essência jurídica do crime. Contudo, se ocorre a morte da gestante ou se nela se produz lesão grave, têm-se circunstâncias que influem somente na quantidade da pena do aborto consensual (art. 126, CP) ou sofrido (art. 125, CP), circunstâncias, por conseguinte, meramente acidentais (art. 127, CP).

No crime de incêndio (art. 250, CP), verbi gratia, é indiferente à subsunção típica do fato o local em que se deita fogo. Entretanto, se alguém puser fogo em casa habitada, em embarcação ou lavoura (art. 250, § 1º, n. II, alíneas "a", "c" e "h", CP), circunstâncias não essenciais e, assim, unicamente acidentais do delito, incidirá sobre a pena gravame que implicará sua majoração.

No dano (art. 163, CP) desponta irrelevante a maneira como foi destruída, inutilizada ou deteriorada a coisa alheia. Porém, se uma destas ações incriminadas é praticada com emprego de substância inflamável ou explosiva (art. 163, § único, n. II, CP) a sanctio juris cominada deve ser exasperada.

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De outra parte, pouco importa o motivo que, como antecedente anímico, impulsionou o agente a cometer um homicídio. Todavia, se o crime é perpetrado por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima (art. 121, § 1º, CP), a pena deverá ser reduzida na quantidade legalmente estipulada.

Outrossim: havendo imputabilidade, a lei penal não distingue a idade do sujeito ativo para efeito de enquadramento típico do fato. Quer tenha o agente do crime 25, 40, 50 ou 80 anos, a conduta criminosa que cometer terá tipicidade. Mas se o sujeito ativo possui idade superior a 70 anos ou inferior a 21 (até 18), sua pena é atenuada (art. 65, n. I, CP), transluzindo-se, desse modo, uma circunstância acidental do delito.

A acidental, portanto, enfeita e adorna o crime, mas não o estrutura nem lhe dá a configuração jurídica.

Em colocação figurada: se a cabeça de um homem é arrancada, ele não subsiste como ser humano, uma vez que lhe foi extirpado um elemento essencial. Se, porém, sua vestimenta e indumentária são retiradas, o ser humano persiste. Logo, a vestimenta é mera circunstância da pessoa, pois em nada compromete ou altera a sua essência454.

Verifica-se das explanações expendidas, na expressão de Esmeraldino Bandeira, que as elementares apresentam o crime despido (na sua forma fundamental, simples e reitora - n.a.) e as acidentais o mostram vestido (na sua forma circunstanciada - n.a)455. As

acidentais, destarte, denotam acessoriedade, id est, peculiaridades que emprestam ao episódio delituoso outra feição, mas produzem apenas efeitos periféricos.

Como escreve Pannain, os elementos constitutivos imprimem ao crime sua configuração peculiar, a qualidade e o título, enquanto as acidentais valem para caracterizá-lo em sua quantidade criminosa e punitiva456, refletindo unicamente sobre a consideração de sua gravidade. Acidentais, na exata ponderação de Jimenez de Asúa, são as circunstâncias que modificam as consequências da responsabilidade, mas sem alterá-la ou suprimi-la457. Vêm de fora da figura típica, como alguma coisa que se acrescenta ao crime já configurado, para impor-lhe a marca de maior ou menor reprovabilidade458.

Não há nenhum empecilho à incidência de acidentais no crime tentado (v. n. 9.5).

8.2. Previsão legal

O princípio da legalidade (v. n. 1.2) submete sob sua disciplina o crime e a pena e determina que ambos não existem fora da órbita legal (art. 1º, CP). Nessa conjuntura, se crime e pena somente podem ser considerados diante de texto expresso de lei, é insofismável que qualquer...

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