Citizenship as a security device: for a transitional justice in the area of migrations/A cidadania como dispositivo de seguranca: por uma justica de transicao em materia de migracoes.

Autorde Moraes, Ana Luisa Zago
CargoTexto en portugues - Ensayo
  1. Introducao

    Quando um pais e tomado por um regime autoritario e suas instituicoes passam a ser instrumentalizadas na direcao da perseguicao politica dos opositores ou dos que sao considerados inimigos pelo regime, as praticas autoritarias projetam-se praticamente para todos os setores que envolvem a esfera publica e suas politicas. Contudo, existem algumas areas que, pela sua posicao estrategica no seio das organizacoes politicas modernas, assumem um verniz autoritario que se desenvolve mesmo em periodos mais democraticos. Este e o caso das politicas migratorias.

    Em um mundo definido pela nacionalidade, os nacionais de outros paises sao tidos em primeiro plano como potenciais inimigos. As legislacoes construidas no interior dos Estados para qualificar e lidar com o estrangeiro situado no territorio nacional guiam-se em regra pelo signo da desconfianca. A tradicional logica westfaliana mostrou a sua face mais sombria nas deflagracoes de guerras mundiais e na criacao de multidoes de apatridas e refugiados.

    Em meio ao predominio do interesse nacional surgem, todavia, vetores dissonantes que apontam para a possibilidade e para a necessidade de esforcos em prol da paz no mundo, da cooperacao e solidariedade entre as nacoes e da construcao de um espaco internacionalista, que possa trazer verdadeiramente um contraponto a tendencia binaria do mundo moderno presente na exclusividade das relacoes entre aliados e inimigos.

    E nesse espaco comum dos povos que se aloja a reivindicacao dos direitos humanos, e entre eles do direito de qualquer ser humano de ter sua dignidade preservada e seus direitos fundamentais respeitados pelas autoridades publicas do pais onde ele se encontra e de poder construir a sua vida em paises diferentes daqueles que lhe concederam a nacionalidade. Trata-se de um direito de migrar.

    No entanto, em momentos repressivos, de autoritarismos institucionais assumidos em regimes ditatoriais, o estrangeiro que se situa no territorio nacional acumula a sua situacao estrutural de vulnerabilidade com a vulnerabilidade gerada pela selecao como inimigo do regime autoritario.

    No caso das ditaduras civis-militares de seguranca nacional que assolaram o continente latino americano nas decadas de 60 a 80 do seculo passado tanto os nacionais como os estrangeiros que coubessem no alargado rotulo de "subversivos" sofriam contra si o andamento de uma politica sistematica de perseguicao e eliminacao gerada pelos governos de forca. Nesse sentido, havia uma indistincao entre nacionais e estrangeiros, mas estes, porem, pela sua condicao vulneravel, atraiam formulas e procedimentos ainda mais autoritarios, como os atos expulsorios perpetuos, que mesmo apos um processo de transicao politica rumo a democracia e a implementacao de leis de anistia, continuaram sendo validos.

    Foi o que ocorreu no caso brasileiro como se buscara evidenciar neste artigo. O reconhecimento de um certo atrelamento entre politicas migratorias e perseguicao politica e o resultado de um processo de depuracao democratica, apos o pais ter amargado mais de duas decadas de ditadura, que se consolida no avanco de uma justica de transicao. Um dos resultados desse processo de justica transicional foi a criacao da Comissao Nacional da Verdade em 2011 e a conclusao dos seus trabalhos em dezembro de 2014.

    Em seu relatorio final, a Comissao Nacional da Verdade (CNV) compilou informacoes, testemunhos e consideracoes referentes ao periodo da ditadura civil-militar brasileira (1964-1984), bem como apresentou recomendacoes, dentre elas a responsabilizacao criminal dos responsaveis por praticas de violencia e tortura utilizando o aparato do Estado, a revisao da Lei da Anistia de 1979 e a desmilitarizacao das policias. Tratou-se, portanto, de um importante marco para a justica de transicao no Brasil.

    O artigo traz o olhar sobre a questao migratoria apresentado no relatorio da CNV, em especial a visao sobre a repressao ao imigrante, sem olvidar outros aspectos como o monitoramento dos emigrados do Brasil no exterior, bem como daqueles que deixaram involuntariamente o solo patrio, inclusive solicitando refugio nos paises de acolhida. Assim, pretende responder aos seguintes questionamentos: (a) como se operava a politica migratoria durante a Ditadura civil-militar brasileira?; (b) qual a possibilidade de uma justica de transicao em materia de migracoes?

    O metodo de abordagem sera o historico-estrutural, valendo-se de pesquisa empirica por amostragem, mediante casos exemplares, bem como de pesquisa quantitativa. A escolha desse metodo, sistema analitico voltado a interpretacao das transformacoes nas estruturas politicas, institucionais, culturais e economicas, a partir da perspectiva historica de medio e longo prazos, decorreu da necessidade de levar em consideracao as peculiaridades do tratamento do estrangeiro durante a Ditadura civil-militar brasileira, em tempos em que se discute a revogacao do Estatuto do Estrangeiro de 1980.

    Pretendemos, a partir desse metodo, resgatar os acontecimentos e textos normativos do passado, para compreender de onde surgiram as atuais normas que regem a politica migratoria, a (in)existencia de rupturas na legalidade autoritaria, a despeito da ultima transicao democratica e da abertura, pela Constituicao da Republica Federativa do Brasil de 1988, ao atual sistema de protecao internacional da pessoa humana.

    A pesquisa empirica, atraves de casos exemplares de perseguicao, criminalizacao e expulsao de estrangeiros durante a ditadura civil-militar sera implementada com base nos estudos de casos assim selecionados: (a) discriminacao dos processos da Comissao de Anistia, em que o requerente era estrangeiro, apos consulta aos Conselheiros da Comissao de Anistia; (2) (b) analise do Relatorio da Comissao Nacional da Verdade; (3) (c) selecao de processos de expulsao que tramitaram no Departamento de Estrangeiros (Deest), que faz parte da Secretaria Nacional de Justica, no ambito do Ministerio da Justica (MJ). (4) Para as analises quantitativas, foram buscadas as bases de dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia Estatistica (IBGE) e do Departamento de Estrangeiros do Ministerio da Justica.

    A politica migratoria dos "anos de chumbo" pode ser extraida da atuacao do Ministerio das Relacoes Exteriores (MRE), esmiucada pela Comissao Nacional da Verdade, em especial o monitoramento de brasileiros no exterior e a negativa da expedicao de passaportes para estes e de vistos para estrangeiros, bem como dos casos estudados no relatorio relativos a entrada, permanencia e saida ou retirada compulsoria de estrangeiros no Brasil.

    Ainda na chave do processo justransicional brasileiro, a atuacao da Comissao de Anistia do Brasil, mormente nos casos de estrangeiros anistiados, tambem tem contribuido nao apenas para reconhecer perseguicoes politicas promovidas no contexto de uma politica migratoria autoritaria como tambem para sinalizar a necessaria superacao desse autoritarismo em materia de migracoes e promover acoes de reparacao.

  2. A Fragilidade do "Estrangeiro" em um Mundo de Nacionalismos

    Em um mundo estruturado pelo principio politico do Estado-Nacao, a condicao de possibilidade para que um individuo possa desfrutar de direitos e que ele seja considerado um nacional (5). Nao basta ter nascido humano. Quando o foco da politica deslocou-se da posicao do individuo perante uma ordem natural ou divina para a sua posicao diante do Estado soberano, deslocou-se o reconhecimento da dignidade humana, antes identificavel com o nascimento, para o crivo juridico estabelecido na decisao soberana.

    A lei tida como expressao soberana de um Estado, e que na sua versao liberal abraca-se ao povo como seu titular, parte da premissa humanista voltada a um homem abstrato, a uma entidade coletiva chamada de "povo", composta por seres humanos com direitos inalienaveis descritos em declaracoes de direitos humanos. Tais seres humanos, porem, sao assumidos abstratamente, nao estao referidos a nenhuma comunidade historica ou real existente no mundo, sua existencia concreta se dara a partir da sua identificacao entre os nacionais de um Estado soberano, dependera dela (6).

    Tal identificacao esta a principio associada ao sangue ou ao solo, isto e, ter nascido no territorio do Estado ou ser descendente dos seus nacionais. Contudo, o nascimento amparado por uma dessas condicoes nao e tambem suficiente para resolver todos os casos ou para impedir a perda da nacionalidade.

    Individuos que sao nacionais de um outro Estado sao frequentemente vistos com desconfianca pelo Estado-Nacao, sao como emissarios de um possivel inimigo, sao tolerados enquanto for vantajosa a sua presenca para fins economicos, sociais ou politicos. A legislacao nacional que os considera, via de regra, esta construida sob o signo da desconfianca e se volta aos interesses nacionais, nao cogita da migracao como um direito, mas sim como uma concessao, quase caridosa, do Estado. Aos estrangeiros que "nao causarem problemas" e que forem acolhidos pelos nacionais em suas relacoes, acena-se com um instituto analogo ao precioso vinculo nacional: a naturalizacao.

    O cenario fica muito mais complicado e muito mais claro em sua precariedade humanista quando o individuo nao nacional nao mais possui o respaldo da sua nacionalidade de origem, passa a ser um proscrito, teve cancelado o seu vinculo juridico com o Estado, seu nascimento foi desclassificado, por alguma razao foi detectado como um organismo nocivo na comunidade politica, seja por sua etnia, pelo seu credo, por suas conviccoes politicas, ou simplesmente por ter tido sua subjetividade juridica erigida em um Estado dividido em guerras intestinas, ou em um Estado devastado por acoes de outros Estados. A tal individuo a protecao juridica conferida pelo seu proprio Estado nao mais socorre, no limite foi banido, desnacionalizado, ou perseguido de modo atroz. A ele nao resta alternativa senao buscar refugio ou asilo em outro Estado nacional.

    A existencia do...

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