Classe, Genero, Raca e Colonialismo/A "Interseccionalidade" de Marx.

AutorAnderson, Kevin B.

Nota Preliminar

O trabalho que ora apresentamos ao público leitor brasileiro trata-se da tradução para o português de Class, Gender, Race & Colonialism: The 'Intersectionality' of Marx, livro-panfleto de autoria do professor Dr. Kevin B. Anderson. Originalmente publicado na série Thinking Freedom Pamphlet da editora Daraja Press em 2002, o referido escrito recebeu nova edição feita em parceria com a Monthly Review Press, no ano de 2020.

Nesta reflexão, Kevin Anderson opera na contramão do senso comum teórico que tenta reduzir um pensador da estatura teórica e política de Karl Marx (1818-1883) ao eurocentrismo e ao economicismo. Ao contrário destas conhecidas visões deturpadoras, as pesquisas do professor Anderson evidenciam Marx como um teórico global, um filósofo e militante dedicado às lutas sociais contra as múltiplas formas de exploração e opressão. Em sua profícua investigação, Anderson destaca a práxis revolucionária de Marx e do marxismo como aspectos absolutamente relevantes para a contemporaneidade.

O professor Kevin Anderson é um dos principais pesquisadores marxistas dos Estados Unidos, lecionando as disciplinas de Sociologia, Ciência Política e Estudos Feministas da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. A sua intervenção não se restringe ao trabalho acadêmico. Com forte atuação política nas lutas de movimentos sociais por justiça social, articula a International Marxist-Humanist Organisation (IMHO) [Organização Internacional Marxista-Humanista].

Anderson é autor de inúmeras obras, dentre as quais destacamos: Lenin, Hegel, and Western Marxism: A Critical Study (University of Illinois Press, 1995); Marx nas margens: Nacionalismo, etnias e sociedades não ocidentais. (Boitempo, 2019) e Hegel, Marxism, and its critics through a lens of race, class, gender, and colonialism (Daraja Press, 2020). Ademais, em parceria com o professor Peter Hudis, Anderson editou a obra The Rosa Luxemburg Reader (Monthly Review Press, 2004), bem como o livro que reúne um conjunto de escritos da filósofa Raya Dunayevskaya (1910-1987), em edição intitulada The Power of Negativity: Selected Writings on the dialectic in Hegel and Marx (Lexington Books, 2002).

No que se refere à presente tradução destacamos que o título deste trabalho não poderia ser mais literal, Classe, Género, Raça & Colonialismo: A 'Interseccionalidade' de Marx. Decerto, o objetivo principal de toda tradução consiste em alcançar a maior fidelidade possível ao original. Em que pese seu resultado derivar na elaboração de um novo texto, com autonomia relativa face ao primeiro, é sempre necessário percorrer a finalidade da expressão fidedigna das ideias do autor. Entretanto, cumpre sublinhar que nenhuma tradução é capaz de reproduzir ipisis litteris a identidade para com o texto original. Toda tradução consiste em leitura, pesquisa e interpretação que visa articular as similaridades e diferenças à luz de complexidades históricas, culturais e linguísticas. Destarte, a tradução constitui-se como mediação entre autor e leitor. O sujeito que traduz é, ao mesmo tempo, leitor do original e autor de um novo texto. Portanto, o ato de tradução expressa um ofício voltado a facilitar a vida de novos leitores e leitoras. (a)

Um aspecto referente ao conteúdo da presente tradução precisa ser ressaltado. Tomamos conhecimento do presente trabalho do professor Kevin Anderson no processo amplo de uma pesquisa que empreendemos sobre o tema da crítica da economia política do racismo, no cotejamento das obras de Marx, mas também de autores como August Nimtz, Claudia Jones, Melvin M. Leiman, dentre outros. Nesta investigação, deparamo-nos com obras fundamentais (ainda inéditas no Brasil), tais como The Political Economy of Racism (Pluto Press, 1993), Marx, Tocqueville, and race in America (Lexington Books, 2003) e Left of Karl Marx: The political life of Black Communist Claudia Jones (Duke University Press, 2007) (só para citarmos alguns exemplos).

Partindo do pressuposto de que o trabalho de tradução é fundamentalmente um esforço de pesquisa e investigação, consideramos crucial alertar ao público leitor que as obras supramencionadas podem contribuir em torno das questões tão bem abordadas pelo professor Kevin Anderson. Além disso, a leitura e debate desses autores nos coloca diante da necessidade do constante "retorno"--que na verdade visa o aprofundamento--da práxis social de Marx e do marxismo.

No curso da elaboração da presente tradução pudemos alcançar um daqueles verdadeiros "achados" de pesquisa. A partir de Anderson nos dirigimos à leitura de um dos volumes da Collected Works, de Marx e Engels. Dentre os documentos, chamou-nos atenção a Carta de Marx à Laura e Lafargue em 5 de março de 1870. Nesta correspondência, Marx discordou veementemente da noção pseudocientífica de que a raça branca seria uma espécie de Deus entre as outras raças humanas. Para Marx, o autor desta tese infame--Arthur de Gobineau--nutria um extremo "rancor contra a raça negra". E continuou na sua explicação, "para essas pessoas, é sempre uma fonte de satisfação ter alguém que eles pensam ter o direito de [desprezar]". (b)

A referida passagem do acervo pessoal de Marx, na comunicação com a sua filha Laura e o seu genro Lafargue é apenas uma dentre tantas outras referências que reforçam o conjunto dos argumentos articulados neste escrito agora em português, no sentido de demonstrar a rejeição filosófica e política de Marx frente ao paradigma racista e colonialista e, particularmente, evidenciando sua contraposição à noção de supremacia racial branca. (c) O mito do Marx racista e eurocêntrico pode ser lido de acordo com a sentença "tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar". (d) Basta ler Amor e Capital para se concluir que: "é muito evidente que Marx e Jenny não eram racistas, porque não se opuseram ao casamento da filha com um homem mestiço, e porque Marx expressou com estrondo sua posição contra a escravidão". (e)

Por fim, cumpre mencionarmos que a presente tradução foi facilitada pela forma acurada da escrita do autor, comumente lastreada em importantes fontes bibliográficas. Em raríssimos momentos, porém, apenas quando julgamos estritamente necessário, optamos pela inserção de notas da tradução, com o objetivo de auxiliar na melhor compreensão possível acerca da sua elaboração. Preservamos as notas e referências bibliográficas tal como foram apresentadas no texto original em inglês. No entanto, adicionamos ao texto as referências já traduzidas e publicadas em língua portuguesa. As citações realizadas pelo autor, sempre que possível, reproduziram a forma como foram traduzidas em edições publicadas no Brasil.

Decerto, o trabalho que neste momento vem à tona através da edição realizada pela Revista Direito & Práxis será uma referência crucial para iluminar reflexões e ações inscritas na perspectiva de superação do capital-imperialismo e das clivagens raciais e de gênero.

  1. Introdução

    Hoje está cada vez mais evidente que a emancipação do trabalho perante o processo de alienação e exploração capitalista consiste numa tarefa que continua a nos desafiar. O conceito de trabalhador elaborado por Marx não se limitou aos homens brancos europeus, ao contrário, incluiu irlandeses e negros superexplorados e, portanto, trabalhadores duplamente revolucionários, bem como mulheres de todas as raças e nacionalidades. A investigação empreendida por Marx e a elaboração do seu conceito de revolução foi além, incorporando uma ampla gama de sociedades agrárias não-capitalistas de sua época, da Índia à Rússia, da Argélia aos povos indígenas das Américas, muitas vezes enfatizando suas relações de gênero. Em seus últimos escritos, ainda parcialmente inéditos, ele direcionou suas análises tanto para o leste, quanto para o sul. Fora da Europa Ocidental, Marx percebeu importantes potencialidades emancipatórias entre os camponeses e suas antigas estruturas sociais comunais, mesmo quando estavam sendo suplantadas pelo processo de subsunção formal do trabalho ao capital. Em seu último artigo publicado, estabeleceu a perspectiva de aliança entre estes estratos não operários e a classe trabalhadora da Europa Ocidental.

    "Proletários [Proletarier] de todo o mundo, uni-vos!". (f) Foi com estas palavras ressoantes que Karl Marx e Friedrich Engels concluíram notoriamente o Manifesto Comunista em 1848. (1) Isto sugere uma ampla luta de classes envolvendo milhões de trabalhadores e trabalhadoras, na superação das fronteiras nacionais e regionais com vistas ao enfrentamento de inimigos coletivos--o capital e a propriedade privada. Neste mesmo Manifesto, Marx e Engels escreveram em outra passagem bem conhecida, que "os trabalhadores não têm pátria", e ainda que "as diferenças e antagonismos nacionais entre os povos [Völker] diminuem cada vez mais" com o desenvolvimento do mercado capitalista mundial. (2)

  2. Um breve resumo: Teoria Geral do Capital e do trabalho [labour] (g)

    No Manifesto, somos apresentados a grandes forças sociais, o proletariado ou classe trabalhadora e seus oponentes lutando uns contra os outros em escala internacional, onde diferenças culturais, nacionais e geográficas foram ou estavam sendo superadas, à medida que a ordem do capital consolidava-se como forma de governo do mundo e os trabalhadores organizavam sua resistência a este processo. Marx e Engels formularam o Manifesto em um nível muito elevado de generalização, abstraindo das especificidades da experiência de vida dos trabalhadores da Europa Ocidental e da América do Norte, e prevendo que o destino do proletariado nestas localidades logo se tornaria a sorte dos trabalhadores em todas as partes do mundo, que naquela época, em sua maioria, eram camponeses trabalhando em sociedades predominantemente agrárias.

    É neste sentido que Marx e Engels também escreveram que o capitalismo "por meio de sua exploração do mercado mundial deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países". Eles acrescentaram: "A estreiteza e...

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