Classificação Indicativa: a Dicotomia entre a Posição Protecionista e Autonomista e seus Reflexos na Legislação Brasileira

AutorHelena Roldan Antunes; Luana Dias
Páginas235-244

Page 235

1. Introdução

A Convenção dos Direitos da Criança (1989) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) apresentam, dentre outros direitos, a liberdade de expressão e opinião, que, sendo direitos civis, pressupõem certa autonomia de seus destinatários. Paralelamente, os dois documentos se fundam na doutrina da proteção integral da criança. Ela é um contraponto à antiga doutrina brasileira da “situação irregular”, na qual o menor de idade só seria sujeito de direitos quando estivesse num estado social de risco (as situações eram definidas por lei, mas basicamente estavam relacionadas à pobreza) e o Estado só intervinha de maneira autoritária e repressiva, colocando a responsabilidade sobre a “irregularidade” na própria criança1.

A doutrina da proteção integral foi ganhando mais força no Brasil na década de 1980, num momento em que a sociedade ansiava pela democracia e os movimentos sociais lutavam intensamente pelo respeito aos direitos humanos, incluindo os direitos das crianças. Josiane R. P. Veronese explica que, de acordo com essa doutrina, “toda criança e adolescente são merecedores de direitos próprios e especiais que, em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvimento, estão a necessitar de uma proteção especializada, diferenciada e integral”2.

A consolidação da democracia e dos princípios constitucionais da liberdade de expressão e proteção integral da criança, acompanhada da evolução tecnológica, em especial da comunicação de massa, modificou o cenário da sociedade, impulsionando o levantamento de questões e a regulamentação da

Page 236

classificação indicativa para um melhor relacionamento entre o poder público, a sociedade e as famílias.

A classificação indicativa tem fundamentação no direito ao conhecimento e à proteção da criança e do adolescente.

O ponto de discussão acerca da liberdade de expressão e opinião da criança e do adolescente gira em torno de como ela se acomoda diante da doutrina da proteção integral, se é que se acomoda, pois alguns autores acreditam que esses elementos são contraditórios, conforme veremos mais adiante. Examinar a contradição entre proteção e autonomia das crianças e dos adolescentes no âmbito da liberdade de expressão se faz necessário devido aos debates não pacificados acerca da adoção de medidas regulatórias por parte do Estado, como a classificação indicativa de obras culturais — que tem fundamentação no direito ao conhecimento e a proteção da criança e do adolescente.

2. O debate teórico entre proteção e autonomia

Os textos da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Estatuto da Criança e do Adolescente deixam explícito o acolhimento da doutrina da proteção integral. Como já foi exposto, essa doutrina visa dar uma proteção especial às crianças e aos adolescentes tendo em vista serem eles pessoas em desenvolvimento que precisam de direitos específicos. O preâmbulo da Convenção remonta à Declaração dos Direitos da Criança de 1959 ao reafirmar o que já tinha sido estabelecido na Declaração: “a criança, em virtude de sua falta de maturidade física e mental, necessita proteção e cuidados especiais, inclusive a devida proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento”. Este conceito, por sua vez, foi um pressuposto para o ECA, que não se preocupou em defini-lo, mas o expôs no art. 1º, ao dizer que a lei trata da proteção integral da criança e do adolescente.

Maria G. da Cunha Frota aponta como direitos de proteção estabelecidos na Convenção sobre os Direitos da Criança: proteção contra abuso e negligência; proteção especial e assistência para a criança refugiada; educação e treinamento especiais para crianças portadoras de deficiência; proteção contra utilização pelo tráfico de drogas, exploração sexual, venda, tráfico e sequestro; proteção em situação de conflito armado e reabilitação de vítimas desses conflitos; proteção contra trabalho prejudicial à saúde e ao desenvolvimento integral; proteção contra uso de drogas; e garantias ao direito ao devido processo legal, no caso de cometimento de ato infracional3.

Tendo em vista esse extenso rol de direitos protetivos, bem como a doutrina da proteção integral enquanto base dos documentos, podemos interpretar que o viés dos direitos da criança e do adolescente contemporâneos é o de conferir certa incolumidade aos seus destinatários. Por outro lado, os arts. 12 e 13 da Convenção e o art. 16, II, do ECA estabelecem a liberdade de opinião e expressão como direitos da criança e do adolescente. Ora, tais liberdades, como observa Irène Théry4, implicam certa responsabili-dade dos agentes. Uma responsabilidade derivada da capacidade jurídica do sujeito, a qual os menores de idade ainda não têm. É por esse motivo que a autora indica uma contradição na Convenção (crítica que poderia estender-se ao ECA): como proteger e ao mesmo tempo libertar um indivíduo? Já Esther M. de Magalhães Arantes não encara a questão como uma contradição, mas como uma tensão entre proteção e autonomia, entre sujeito de direitos e pessoa em desenvolvimento, entre prioridade absoluta e os demais interesses existentes na sociedade5.

Sendo tensão ou contradição, a questão é espinhosa de todo jeito. Saber conciliar proteção e autonomia é um dos grandes desafios dos direitos da criança e do adolescente na atualidade. Há quem defenda uma abordagem mais protetora, assim como quem defenda uma mais libertária. Tal discussão está longe de atingir uma unanimidade doutrinária.

Page 237

2.1. Abordagem protetora

Antes de apresentarmos a visão mais protetora em relação à infância, é preciso apontar brevemente uma interpretação histórica do conceito de infância adotada por alguns autores que defendem essa visão. Philippe Ariès6, em sua mais importante obra, História Social da Criança e da Família, observa que até por volta do século XII a infância não era representada na arte, provavelmente não por imperícia dos artistas ao retratar crianças, mas porque elas não tinham espaço nesse mundo. A partir do século XIII as crianças já são representadas, porém retratadas como adultos pequenos. A forma de retratá-las e a frequência de suas aparições vão se aprimorando e intensificando ao longo dos séculos seguintes, mas é no século XVII que elas ganham verdadeiro destaque nas obras de arte, sendo a inocência infantil evidenciada nas representações.

Por qual motivo passaram a destacar a inocência das crianças nas representações nessa época? Joshua Meyrowitz7 sinaliza a alfabetização como causadora dessa diferenciação. Isso porque ela permitiu ao homem adulto acumular conhecimento de forma gradual, o que o diferenciava das crianças, estas que, ainda que soubessem ler, não tinham bagagem intelectual similar à dos adultos, logo, elas eram mais “inocentes”. A partir desse momento, houve uma cisão entre o infantil e o adulto.

Com base nessa interpretação histórica, Meyrowitz indica que estamos próximos do “fim da infância”. Esse discurso um tanto quanto hiperbólico se funda na ideia de que nas últimas décadas as crianças estão perdendo o caráter de inocência devido à cultura televisiva. A televisão tem a capacidade de revelar informações mais complexas às crianças com muita facilidade, informações que antes só seriam obtidas por meio de longas leituras — reservadas aos adultos. Assim, as barreiras do conhecimento e da maturidade que separavam crianças e adultos começam a se dissolver. Além disso, as relações familiares de hoje já não são mais as mesmas que as do auge do mundo patriarcal: a submissão, num sentido quase escravocrata de posse humana, dos filhos em relação aos pais não é tão frequente; também é perceptível que em certas famílias as crianças protagonizam as tomadas de decisão. Essa “inversão de papéis” observada por Meyrowitz é vista com olhos críticos pelos protecionistas.

Partilhando do pensamento de Meyrowitz, Flávio Brayner discute o projeto pedagógico da formação do “aluno-cidadão”, se posicionando contra a abordagem que a escola faz acerca desse tipo de formação: “... ao atribuir a qualidade de cidadão aos nossos alunos (ou desejar que eles já o sejam), estamos sobrecarregando-os de uma responsabilidade de agir em um mundo e de resolver problemas que fomos nós, adultos, que criamos”8.

Brayner defende a ideia de que a escola deve formar alunos com as competências necessárias para que futuramente possam intervir nos espaços em que se encontrarem. Essa visão de conceber a cidadania como algo pós-infância é adotada também por Alba Zaluar:

As crianças, como seres ainda em socialização, deveriam ser preparadas para assumir esses direitos e deveres na idade adulta, o que lhes retira responsabilidades jurídicas assim como alguns direitos civis e políticos (votar e ser votado, direito à propriedade etc.). Criança não é, em suma, pessoa jurídica inteira, estando sob a tutela de seus pais ou de outras autoridades.9

A liberdade de expressão, ainda analisando sob a óptica de Brayner, não pode ser negada aos alunos, no entanto deve ser tratada com restrições. Em primeiro lugar, o aluno não pode achar que sua opinião é a única válida e, consequentemente, impermeável. Ademais, é necessário haver uma preocupação com o conteúdo daquilo que é expresso, porque não é qualquer tipo de fala que constrói um “aluno-cidadão”.

A abordagem protetora dos direitos da criança se funda, portanto, na dessemelhança entre adultos e

Page 238

crianças: aqueles têm autonomia, e estes, heteronomia. Nessa perspectiva, a disparidade não deve ser enfrentada; ao contrário, deve ser mantida, sob pena de acabarmos com a infância. E mais: a liberdade de expressão das crianças e dos adolescentes deve ser até certo ponto tolhida, para evitar essa ruptura de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT