A cláusula geral de responsabilidade civil objetiva no código civil
Autor | Glaucia Rodrigues Torres de Oliveira Mello |
Cargo | Bacharelanda em Direito na Universidade Federal Fluminense (UFF). Residente Jurídica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro |
Páginas | 112-138 |
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A responsabilidade é um dever jurídico sucessivo conseqüente da violação de um dever jurídico primário 2 . A violação de um dever jurídico primário acarreta o chamado ilícito, que, na maioria das vezes, causará algum tipo de dano a outrem, dando origem a um novo dever jurídico, sucessivo, e de reparação do dano causado.
O ato ilícito, por seu turno, é de extrema importância para a matéria, uma vez que é ele que configura o fato gerador da responsabilidade civil. Da noção de ato ilícito, porém, é ínsita a noção de culpa. A partir disso, a maioria das definições dadas estabelecePage 113uma íntima relação entre o seu conceito e o de culpa. Isso, contudo, gera grandes entraves no que tange ao tema da responsabilidade objetiva.
Sendo a culpa lato sensu elemento constitutivo do ato ilícito, quando não houver culpa, consequentemente não haverá a responsabilidade de indenizar. Nesse sentido, onde se enquadraria a responsabilidade objetiva ou, também chamada, responsabilidade sem culpa?
Neste artigo analisaremos o surgimento e aplicação da teoria do risco, consagrada no Brasil pelo parágrafo único do artigo 927 do Novo Código Civil, marco para a efetiva aplicabilidade da responsabilização sem culpa e, consequentemente, eficaz reparação das vítimas.
Pretende-se fazer uma análise abstrata do instituto da responsabilidade objetiva, sem descer a minúcias de suas espécies, traçando um caráter geral da aplicação do instituto no ordenamento brasileiro.
A responsabilidade civil como concebida pelos juristas da Modernidade tem indubitavelmente o seu cerne depositado na noção de culpa. O sistema de ideais liberais e individualistas que predominava à época da elaboração da concepção impunha um sistema de responsabilização que deixasse largo espaço para a livre atuação da vontade privada.
No séc. XIX, muitos juristas anunciavam a conhecida máxima “nenhuma responsabilidade sem culpa”, ou como resumia Rudolf Von Ihering “sem culpa, nenhuma reparação”. A regra da culpa tem seu lugar em decorrência desse individualismo liberal pregado neste século, segundo o qual a liberdade de atuação individual só poderá ser restringida pela imposição de responsabilidade por danos, quando lhe seja imputada uma conduta dolosa, imprudente ou negligente, passível de reprovação.
O próprio Código Civil brasileiro de 2002 parece ter adotado como regra a teoria da culpa como base da responsabilidade civil. Nada obstante, como será demonstrado no presente, essa afirmação é um tanto quanto questionável diante de certos casos em que, porPage 114força de disposições do próprio código, ou mesmo por força de outras normas não codificadas, será aplicada a responsabilidade civil objetiva.
Importante ressaltar que a noção de culpa do agente na conduta lesiva, para fins de responsabilização civil deve ser entendida como culpa lato sensu, abrangendo como visto o dolo e a culpa stricto senso. O dolo é a consciência de que a conduta pode gerar consequências que causarão dano a alguém. É a intenção deliberada de ofender o direito ou prejudicar o patrimônio de outrem por conduta comissiva ou omissiva.
José de Aguiar Dias refere-se à previsibilidade do resultado como elemento indispensável à culpa. Segundo o autor:
A culpa é a falta de diligencia na observância da norma de conduta, isto é, o desprezo, por parte do agente, do esforço necessário para observá-la, com resultado, não objetivado, mas previsível, desde que o agente se detivesse na consideração das consequências eventuais da sua atitude. 3
Note-se ainda que a própria tríade da caracterização da culpa - negligência, imprudência e imperícia – desvenda visivelmente o caráter moral e psicológico que costumase conferir ao conceito. A imputação de maior ou menor grau de caráter moral à culpa influenciou de grande maneira a estruturação do sistema moderno de responsabilidade civil, assegurando uma justificativa ética ao dever de indenizar.
De fato, a culpa parece ser elemento essencial à possibilidade de responsabilização, chegando a ser intuitivo da natureza humana que deve haver culpabilidade para que possa haver a correspondente repreensão. Nenhum ser humano em sã consciência admite ou se conforma com a hipótese de ser responsabilizado por fato de que não teve culpa. A verdade é que o homem tende a se eximir intimamente de qualquer responsabilização se não sente que concorreu com culpa para a ocorrência de determinado resultado. Por este motivo, a culpa parece ter sido erigida a elemento fundamental da responsabilidade civil, ao lado da conduta, do dano e do nexo de causalidade ente ambos.
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Malgrado, com o passar dos tempos, face ao acelerado ritmo de mudanças visto pela sociedade, a culpa passou a se mostrar obsoleta como meio de aferição da responsabilidade, tendo em vista as complexidades probatórias surgidas da urbanização e industrialização. A doutrina passou a entender o elemento culpa como sendo insuficiente para o alcance de um efetivo dever de reparação.
Como muito bem explica Anderson Schreiber em sua recente obra:
Se a concepção psicológica da culpa assegurou uma justificativa filosófica à reparação do prejuízo provocado pelo ato ilícito, impôs, por outro lado, forte ênfase sobre a verificação de um comportamento reprovável por parte do autor do dano. Resultado disso foi não apenas a consagrada idéia de “pás de responsabilité sans faute”, mas, muito além, a atribuição à culpa de uma certa preponderância na etiologia do ato ilícito. A associação da conotação psicológica da culpa com uma rigorosa exigência de sua demonstração conduziu, gradativamente, à modelagem jurisprudencial e doutrinaria de um obstáculo verdadeiramente solido para a reparação dos danos. 4
Estes, dentre outros fatores, foram indicativos de que a culpa como único modo de aferição de responsabilidade, ora baseado numa ideologia individualista, não mais se coadunava com as necessidades da sociedade emergente, sendo certo que já apontava a necessidade de outra uma etapa evolutiva na trajetória da responsabilidade civil.
Tendo em vista as diversas transformações sociais, econômicas e tecnológicas pelas quais passou a sociedade, especialmente no sec. XX, gradativamente surgiram situações onde a prova de culpa como pressuposto para a responsabilização civil se esvaía. A regra da culpa, fincada em um individualismo liberal, segundo o qual a liberdade de atuação só poderia ser restringida pela atuação culposa, pregada exaustivamente no sec. XIX, não mais se coadunava com as emergentes situações quotidianas e com as novas tendências sociais que passavam a se enraizar na consciência coletiva.
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O crescimento da indústria, aliado ao surto de densificação demográfica, acabou dando lugar a uma nova e extensa gama de acidentes e danos, que por sua vez, em função de sua natureza, eram no mais das vezes “anônimos” e de quase impossível comprovação. O requisito da demonstração da culpa nesses acidentes, essencial nos moldes da teoria subjetiva da responsabilidade civil, tornava inviável o alcance de alguma reparação. A demonstração tornava-se verdadeira prova diabólica, diante da condição de vulnerabilidade do empregado, do parco conhecimento sobre o maquinário das fábricas ou ainda por conta do anonimato de certos acidentes dentro das fábricas.
Sobre o assunto, explica José Fernando de Castro Farias:
A teoria tradicional condicionava a responsabilidade civil à existência da falta, exigindo-se do operário, para a obtenção da reparação do dano, provar que o acidente fora resultado de uma imprudência cometida pelo empregador. Essa abordagem obedecia a uma lógica individualista e tornava-se incompatível com a complexidade das práticas industriais, em que o risco de acidente era cada vez maior, de forma que a visão tradicional passa a ser considerada completamente injusta em relação aos operários, a quem se impunha a necessidade de uma prova impossível. 5
De fato, diante dessa ebulição desenvolvimentista da sociedade, que trouxe consigo a grande dificuldade probatória, afigurava-se injusta e inadequada a necessidade de demonstração efetiva da culpa nessa nova sociedade, mais complexa, e na qual as diversas atividades geravam riscos variados e constantemente agravados pelo surgimento de ainda mais novas tecnologias.
Várias foram as alternativas apresentadas para suprir as necessidades de superação das injustiças. Mecanismos como a admissão de culpa pela teoria do abuso de direito e da culpa negativa, as presunções de culpa, a teoria do risco e a transformação da responsabilidade aquiliana em contratual foram propostos6 . Certo é que a propagação daPage 117teoria do risco foi a mais eficaz dentre as apresentadas na consecução do objetivo a que se propunham.
A adoção das presunções de culpa representava em verdade uma solução intermediária para o problema, marcada principalmente pelos valores de uma sociedade ainda fortemente impregnada pelas concepções liberais burguesas, e que não queria abrir mão da culpa como pressuposto da responsabilidade. Era unicamente o apego formal à teoria da culpa que justificava a inclusão da culpa presumida, cada vez mais absoluta, sob o manto da responsabilidade subjetiva.
A concepção mais moderna da responsabilidade já não tem no autor do dano o seu centro, mas sim, a vítima. O que importa é que o dano seja ressarcido, ou seja, que a vítima esteja amparada, e não que o autor não seja responsabilizado por algo que não fez com culpa. Foi precisamente a equidade, o sentimento de solidariedade pessoal e a...
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