Cláusulas Abusivas nos Contratos de Financiamento: A Jurisprudência do STJ e seus Reflxos no Âmbito do TJMG

AutorAmanda Flávio de Oliveira/Luciana Gonçalves Nunes
CargoProfessora decana de Direito Econômico dos cursos de graduação e pós-graduação da UFMG/Doutoranda e Mestre em Direito pela UFMG
Páginas71-95

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1. Introdução

Este artigo busca promover uma reflexão sobre o caráter abusivo de cláusulas contratuais que estabelecem tarifas de abertura de crédito e de emissão de carnê, cobradas pelas instituições financeiras nos contratos de financiamento com alienação fiduciária em garantia, à luz da jurisprudência brasileira.

Para tanto, delimita-se o conceito de abusividade e o tratamento jurídico dispensado à matéria pelas resoluções exaradas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). São apresentados julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que apontam o início da divergência e a evolução do tema, até o firmamento de teses, em sede de recurso repetitivo, no REsp 1.251.331/RS e no REsp 1.255.573/RS.

Adiante, é traçado um breve histórico das decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e os reflexos sentidos a partir da mudança jurisprudencial do STJ. Por fim, são tecidas algumas considerações atinentes à atual posição dispensada à matéria, concluindo-se pela necessidade de se reconhecer a abusividade das cláusulas contratuais em estudo, todavia sem delimitação temporal, ao contrário do firmado pelo STJ.

2. A abusividade segundo o Código de Defesa do Consumidor

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) não define abusividade, devendo esta ser analisada sob o ângulo da boa-fé objetiva, independentemente do elemento subjetivo. Isso porque “em nenhum momento a Lei 8.078/90 exige a má-fé, o dolo do fornecedor para caracterização da abusividade da cláusula”1.

A boa-fé objetiva, por sua vez, “representa o padrão ético de confiança e lealdade indispensável para a convivência social”, de modo que as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas2.

Em suma, entende a melhor doutrina nacional serem consideradas abusivas as cláusulas “que caracterizam lesão enorme ou violação ao princípio da boa-fé objetiva, funcionando estes dois princípios como cláusulas gerais do Direito, a atingir situações não reguladas expressamente na lei ou no contrato”3.

Por conseguinte, é de se destacar que a abusividade de determinadas tarifas bancárias não pode ser definida a priori, perpassando pelo exame

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casuístico, especialmente para fins de identificação de uma possível violação ao princípio da boa-fé objetiva.

3. Os contratos de financiamento com alienação fiduciária em garantia

O financiamento é prática comum de concessão de crédito no mercado de consumo, e que possibilita o parcelamento do pagamento na compra de bens, sejam eles móveis ou imóveis.

O presente artigo, contudo, limita-se à análise de tarifas cobradas nos contratos de financiamento com alienação fiduciária em garantia de bens móveis, tendo como credor fiduciário instituição financeira.

É de se recordar que há regime jurídico dúplice a disciplinar a propriedade fiduciária de bens móveis: (i) o preconizado pelo Código Civil (arts. 1.361 a
1.368), que se refere a bens móveis infungíveis, quando o credor fiduciário for pessoa natural ou jurídica; (ii) o estabelecido no art. 66-B da Lei 4.728/65 (acrescentado pela Lei 10.931/04) e no Decreto-Lei 911/69, relativo a bens móveis fungíveis e infungíveis, quando o credor fiduciário for instituição financeira (STJ, 4ª Turma, REsp 1.101.375/RS, Ministro Relator Luis Felipe Salomão, DJe de 01/07/2013).

Via de regra, o financiamento é realizado por instituição financeira, que atrela o empréstimo em dinheiro à garantia da alienação fiduciária. Em outros termos, o financiamento, pela instituição financeira, vinculase à transferência da propriedade pelo devedor-fiduciante (consumidor) ao credor-fiduciário (instituição financeira), até que seja verificado o completo pagamento. Melhim Chalub elucida:

Em decorrência dessa contratação, constitui-se em favor do credor-fiduciário uma propriedade resolúvel; por força dessa estruturação, o devedor-fiduciante é investido na qualidade de proprietário sob condição suspensiva, e pode tornar-se novamente titular da propriedade plena ao implementar a condição de pagamento da dívida que constitui objeto do contrato principal. 4

Para além da garantia de alienação fiduciária, as instituições financeiras costumavam, ou ainda costumam, exigir o pagamento de tarifas, entre as quais: (i) tarifa de abertura de crédito; (ii) tarifa de cadastro; (iii) tarifa de emissão de carnê5.

A tarifa de abertura de crédito corresponde ao valor cobrado do consumidor para a realização de pesquisa prévia à aprovação do crédito

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solicitado, de modo a ser averiguada a capacidade financeira do cliente e reduzir o risco de inadimplência. Essa tarifa era passível de cobrança até o advento da Resolução CMN 3.518/2007, ou seja, até 30 de abril de 2008, data da entrada em vigor desta resolução.

A tarifa de cadastro, por sua vez, corresponde à realização de pesquisa em serviços de proteção ao crédito, base de dados e informações cadastrais, e tratamento de dados e informações necessários ao início de relacionamento decorrente da abertura de conta de depósitos à vista ou de poupança ou contratação de operação de crédito ou de arrendamento mercantil. Foi instituída pela Circular do Banco Central do
Brasil (BACEN) 3.371/2007 que regulamentou
o art. 3º da Resolução CMN 3.518/2007,
vigorando a partir de 30 de abril de 2008, e hoje
se encontra expressamente prevista na Resolução
CMN 3.919/2010.

Note-se que a atual tarifa de cadastro não
se confunde com a antiga tarifa de abertura de
crédito, porquanto esta era usualmente cobrada sobre qualquer operação de crédito, mesmo que o tomador fosse cliente do estabelecimento bancário; aquela, a seu turno, somente pode incidir no início do relacionamento entre o cliente e a instituição financeira, justificando-se pela necessidade de se ressarcir custos com a realização de pesquisas em cadastros, bancos de dados e sistemas.

A tarifa de emissão de carnê, a seu turno, corresponde ao valor cobrado do consumidor por cada boleto emitido pela instituição financeira. Essa modalidade de tarifa era passível de cobrança até o advento da Resolução CMN 3.518/2007, ou seja, até 30 de abril de 2008, data de entrada em vigor desta resolução. Passou, essa tarifa, a ser expressamente vedada com a Resolução CMN 3.693/2009, vigente a partir de 26 de março de 2009.

A controvérsia sobre a abusividade dessas tarifas foi, em um primeiro momento, tratada pelo STJ, segundo o que diz a Resolução CMN
2.303/1996. Recentemente, em sede de recurso repetitivo6, o tema foi abordado à luz do que dispõe a Resolução CMN 3.518/2007 e seguintes.

A jurisprudência no tema foi alterada em razão do tratamento dispensado pelas resoluções do CMN7. Adiante, serão expostos os posicionamentos adotados pelo STJ e seu reflexo na jurisprudência do TJMG em relação à matéria.

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4. O entendimento firmado no tema pelo STJ à luz da Resolução CMN 2 303/1996

A Resolução CMN 2.303/1996, alterada pela Resolução 2.747/2000, vedava, às instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, a cobrança de remuneração pela prestação de determinados serviços considerados, pela norma, como serviços de caráter obrigatório8.

Segundo a 2ª Seção do STJ, ao tempo da Resolução CMN 2.303/1996, a orientação estatal quanto à cobrança de tarifas pelas instituições financeiras era essencialmente não intervencionista. Em outros termos, era facultada às instituições financeiras a cobrança pela prestação de quaisquer tipos de serviços que não obrigatórios, desde que fossem efetivamente contratados e prestados ao cliente9.

O tema comportava assaz divergência jurisprudencial. Entendia-se, por um lado, que a tarifa de abertura de crédito, de emissão de boletos, entre outras, seriam custos relacionados à cobrança do crédito concedido ao cliente, caracterizando-se como valores inerentes à atividade econômica desempenhada pela instituição financeira.

Por conseguinte, não poderiam ser repassadas diretamente ao devedor, ainda que houvesse previsão contratual nesse sentido, devendo, portanto, ser excluídas tais cobranças. O fundamento pautava-se, a uma, na ofensa ao art. 46, primeira parte, do CDC10; a duas, na incidência do art. 51, inc. IV, do CDC11. O TJMG, inclusive, possuía julgados nesse sentido, como será visto adiante.

Por outro lado, vários julgados defendiam, como regra, a legalidade das tarifas cobradas pelas instituições financeiras. Essa foi a posição unânime da 2ª Seção do STJ, lastreada em acórdão da relatoria do ministro João Otávio de Noronha12, de meados de 2010 até o ano de 2012:

As tarifas de abertura de crédito (TAC) e emissão de carnê (TEC), por não estarem encartadas nas vedações previstas na legislação regente (Resoluções
2.303/1996 e 3.518/2007 do CMN), e ostentarem natureza de remuneração pelo serviço prestado pela instituição financeira ao consumidor, quando efetivamente contratadas, consubstanciam cobranças legítimas, sendo certo que somente com a demonstração cabal de vantagem exagerada por parte do agente financeiro é que podem ser consideradas ilegais e abusivas, o que não ocorreu no caso presente (STJ, 4ª Turma, REsp 1.246.622/RS, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, DJe 16/11/2011).
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Nessa linha de raciocínio, a abusividade da cobrança das tarifas seria exceção, a depender se “demonstrada de forma objetiva e cabal a vantagem exagerada extraída por parte do recorrente que redundaria no desequilíbrio da relação jurídica, e por consequência, na ilegalidade da sua cobrança”14.

No julgamento do REsp 1.270.174/RS, reiterando a legalidade das tarifas, a ministra...

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