As cláusulas de Hardship e a quebra do paradigma da imutabilidade do contrato

AutorLuiz Gustavo Meira Moser
CargoGraduando em Direito pela UFRGS
I - Introdução

O contrato compreende um complexo feixe de direitos e obrigações, capitaneados por princípios norteadores, quais sejam, a liberdade de contratar, a força obrigatória do contrato, a eficácia relativa da convenção, além dos princípios trazidos pelo novo Código Civil, como a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico e a função social do contrato.

Mormente nos contratos de trato sucessivo, a complexidade de sujeitos envolvidos, bem como o objeto prestacional merecem uma tutela especial. Dentro desse contexto, encontram terreno fértil as cláusulas de readaptação contratual ou hardship clauses.

A cláusula de hardship comporta em seu bojo o fim precípuo de salvaguardar o contrato, toda vez que um evento exterior e estranho às partes envolvidas promova uma ruptura tamanha capaz de impor um rigor injusto1 a uma das partes. A finalidade cardinal e inarredável é a modificação ou ajuste da avença. A hardship atua sob a roupagem de um dever de renegociação, ambicionando o restabelecimento da economia do contrato, sem pôr em risco a segurança jurídica das disposições previamente pactuadas. Trata-se, pois, de uma exceção ou relativização da locução pacta sunt servanda. Tal parêmia é excepcionada para se eleger a concepção moderna do adágio rebus sic stantibus. Como salienta Ruy Rosado de Aguiar Jr:

"(...) Não se pode hoje prescindir de certas regras flexibilizadoras do contrato, capazes de permitir o restabelecimento do equilíbrio entre as partes, e mesmo para garantir entre elas o princípio da autonomia da vontade."2(grifamos)

O contrato como consenso, acordo de vontade, surgiu no Direito Romano, em um clima fortemente marcado por formalismo de inspiração religiosa. Desde a mancipatio,3 solenidade na qual as obrigações das partes contratantes eram pesadas em pratos eqüidistantes, atestando a igualdade das prestações, vigorava fielmente a locução pacta sunt servanda. Posteriomente, com o advento do ius gentium4, em fins da República Romana, reconheceu-se a vontade como elemento-chave na formação dos negócios jurídicos, surgindo novos institutos tais como a bona fides5. A partir de então o princípio da intangibilidade dos contratos perde força diante da cláusula rebus sic stantibus, embrião das hardship clauses.

II - A hardship e o paradigma da imutabilidade contratual
a) A intangibilidade do contrato

A imutabilidade contratual traduz a idéia da impossibilidade de alterar ou revisar o conteúdo do negócio celebrado entre as partes. Desde a época romana os contratos se perfectibilizavam sob a condição de formalidades rituais, palavras e gestos. Modificar o que fora anteriormente pactuado era algo impensável.

As novas necessidades, bem como os novos valores sociais, advindos do premente desenvolvimento do comércio e das demais atividades, clamavam por uma pronta solução que fosse condizente com a nova conjuntura social romana. Criou-se, então, para satisfazer aos anseios sociais, novos princípios e regras denominadas ius gentium e ius honorarium6. Nesse contexto surge a cláusula rebus sic stantibus7, instaurando um aparente maniqueísmo, uma vez que a rigidez do princípio conservador e garantidor - pacta sunt servanda - é excepcionada, em uma palavra, subvertida pelo adágio rebus sic stantibus, em nome da justiça contratual. Embora o princípio da imutabilidade dos contratos seja fundamental, sobretudo no âmbito do direito obrigacional, os contratos estão sujeitos a fatores externos que lhes afetam a execução. A superveniência de fatos pode levar à quebra insuportável da equivalência8, fazendo com que as partes somente permaneçam vinculadas à avença se e quando as circunstâncias não alterarem substancialmente o contrato9.

A cláusula rebus sic stantibus, renovada no direito moderno sob o nome de teoria da imprevisão, tem importância, nas palavras de Arnoldo Wald, como conceito amortecedor ou válvula de segurança. É a idéia-força que limita a autonomia da vontade no interesse da comutatividade dos contratos, ou seja, com a finalidade de assegurar a equivalência das prestações.

Mormente os contratos de trato sucessivo estão condicionados à manutenção do atual estado das coisas. Nesse contexto, entra em cena a cláusula de hardship, entendida como uma cláusula rebus sic stantibus10 mais evoluída e direcionada não à resolução contratual, mas sim à manutenção e longevidade dos contratos. Cláusulas fortemente impregnadas pelo senso de justiça contratual, segundo o qual ninguém contrata para experimentar prejuízos, são verdadeiras cláusulas-processo, uma vez que se perfaz no decorrer da execução contratual. A hardship promove, pois, uma conciliação, uma verdadeira "simbiose" entre o interesse individual das partes e a necessidade social de manutenção do que fora anteriormente pactuado, sob a roupagem dos ideais de justiça e segurança, finalidades inarredáveis do Direito.

b) O remédio jurídico para a longevidade contratual

Pode-se traduzir hardship por "adversidade", "infortúnio" ou mesmo "necessidade". Tal cláusula prima por reduzir os danos que podem resultar a uma das partes toda vez que o contrato sofrer alterações estruturais em seu equilíbrio. Tratam-se, pois, de cláusulas flexibilizadoras, dotadas de dinamicidade, o que facilita a adaptação da avença11. Chegamos então à primeira característica das hardship clauses, qual seja, a flexibilidade12. Esse mecanismo autoriza aos contratantes redigirem a cláusula de modo a permitir a adaptação do contrato às circunstâncias que se põem no caso concreto. É elemento de construção da avença, uma vez que vai sendo moldado ao longo da execução contratual, tanto pelas partes, que negociarão as modificações de seu conteúdo, quanto pelos eventos perturbadores, os quais direcionarão o rumo das negociações. Vislumbra-se, portanto, a sobrevivência do contrato13. A flexibilidade comporta, no entanto, certos limites. A imprecisão não pode ser total, sob pena de se tolerar o vago, o incerto. Os elementos essenciais da operação de readaptação devem ser determinados ou ao menos determináveis.

O critério da exterioridade14 é também elemento-chave da hardship. O evento que desequilibrou o contrato deve fugir do controle razoável das partes. Assim, não se poderia razoavelmente prever a ocorrência de fatos que desequilibrem substancialmente a avença. A mudança deve resultar em fim fundamentalmente diverso daquele que tinha sido esperado.

O apelo à eqüidade delega uma coloração moral ao processo de readaptação contratual. Embora possa conter uma definição vaga e imprecisa, a eqüidade atua como sinalizadora do percurso da adaptação. Exerce, portanto, uma função corretiva toda vez que alguma das partes tente locupletar-se por meio da cláusula:

A ausência de automatismo é característica inovadora das cláusulas de readaptação: enquanto uma cláusula monetária opera, em regra, de maneira automática, sem a intervenção das partes ou de um juiz e resulta na substituição de uma nova prestação no lugar daquela que tornou-se iníqua, a cláusula de hardship não tem efeito automático. A hardship consiste, via de regra, em provocar uma renegociação do contrato, o rearranjo das disposições, quando se operar um desequilíbrio. Nesse mesmo sentido, o autor Regis Fabre define a hardship como uma cláusula de readaptação contratual que se desenvolve ao longo da execução contratual, " une chose vivante"15. Destaca-se a idéia da dinamicidade da cláusula, de algo que se transforma, perfaz-se ao longo da execução contratual.

III - O dever de renegociar
a) A incidência da boa-fé objetiva

O princípio da boa-fé exerce função balizadora no campo de aplicação das cláusulas de hardship. Sobretudo na fase de condução da renegociação, a boa-fé, conjugada com os deveres anexos de lealdade e cooperação entre as partes, deve ser levada em consideração como princípio norteador16. Boa-fé entendida objetivamente, não se exigindo a consciência das partes quanto ao enquadrar da conduta dentro de um dever genérico e despersonalizado.

A boa-fé subjetiva comporta a idéia naturalista, contrapondo-se à má-fé. Diz-se o estado de...

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