A clínica psicodinâmica do trabalho
Autor | Carla Maria Santos Carneiro - Germano Campos Silva - Lila de Fátima Carvalho Ramos |
Páginas | 46-96 |
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Trabalhar não é apenas produzir; é, também, transformar a si mesmo. (DEJOURS, 2012)
Para Seligmann-Silva (2004), a escola da Psicopatologia do Trabalho edificou-se a partir das ideias e pesquisas de Christophe Dejours, sendo este um crítico das abordagens positivistas que estiveram presentes no modelo tradicional de pesquisas voltadas para a saúde no trabalho. A metodologia criada por Dejours tinha, inicialmente, bases na Psicopatologia do Trabalho, porém, com o avanço das pesquisas e a incorporação de conceitos advindos da Ergonomia, da Sociologia e da Psicanálise, evoluiu para uma compreensão original, configurando uma teoria própria.
Pode-se considerar que, de acordo com Dejours:
a Psicodinâmica do Trabalho é uma disciplina clínica que se apoia na descrição e no conhecimento das relações entre trabalho e saúde mental; (...), é uma disciplina teórica que se esforça para inscrever os resultados da investigação clínica da relação com o trabalho numa teoria do sujeito que engloba, ao mesmo tempo, a psicanálise e a teoria social. (DEJOURS, 2004f, p. 28)
A Psicodinâmica do Trabalho (PDT) é, assim, uma abordagem científica, desenvolvida na França na década de 1980 por Christophe Dejours, médico francês com formação em Psicanálise e Psicossomática, professor do Conservai-tore National des Arts et Métiers em Paris, onde dirige o Laboratório de Psicologia
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do Trabalho e da Ação. Dejours tem pesquisado a vida psíquica no trabalho há mais de 30 anos, tendo como foco o sofrimento psíquico e as estratégias de enfrentamento utilizadas pelos trabalhadores para a superação e transformação do trabalho em fonte de prazer (DEJOURS, 2004c).
A PDT é ainda definida como a análise psicodinâmica dos processos intersubjetivos mobilizados pelas situações de trabalho. A Psicodinâmica do Trabalho é, assim, uma ampliação que sintetiza e radicaliza o que constitui a inspiração original da psicopatologia do trabalho e da Psicodinâmica do Trabalho, em que a "normalidade" define o plano da saúde vivenciada, diferente da saúde ideal.
A normalidade (saúde concreta) designa um estado que não está estabilizado por completo, no qual as doenças são, de maneira provisória e relativa, compensadas por uma série de mediações externas, com impacto em todos os níveis, desde o trabalho até as interações sociais. Assim, a PDT se diferencia da definição de saúde mental proposta pela OMS:
[...] a Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma não existir uma definição "oficial" de Saúde Mental. Diferenças culturais, julgamentos subjetivos afetam o modo como a Saúde Mental é definida, tendo a expressão sido usada para descrever o nível de qualidade de vida cognitiva ou emocional. Pode incluir a capacidade de um indivíduo de apreciar a vida e procurar o equilíbrio entre as atividades e os esforços para atingir a resiliência psicológica. Admite-se, entretanto, que o conceito de Saúde Mental é mais amplo que o de ausência de transtornos mentais. (WHO, 2001, p. 1-3)
Para Moraes (2014), a PDT define-se como uma clínica, tendo em vista a importância atribuída à singularidade, à totalidade e à abordagem do trabalho em situações concretas e reais (DEJOURS, 2007; LHUILIER, 2011).
Tem uma metodologia específica, denominada Clínica do Trabalho. Sua base é a escuta clínica das vivências subjetivas do trabalho, em um espaço público, que possibilita a fala, a escuta, a elaboração e a perlaboração dessas vivências1.
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A Psicodinâmica do Trabalho é, assim, uma clínica das defesas mobilizadas para o enfrentamento das situações de trabalho. A abordagem da psi-codinâmica baseia-se em estudar a subjetividade do trabalhador em relação à organização e à natureza de seu trabalho. A dialética se faz presente no momento em que ocorre a interação entre sujeito e organização. Dejours privilegia a centralidade existente na inter-relação entre o sofrimento psíquico decorrente das contradições entre sujeito e realidade de trabalho e as estratégias de defesa utilizadas pelos trabalhadores para a superação do sofrimento e transformação do trabalho em prazer (CÂMARA; FARIA, 2009).
Dejours (1993b) considera que:
[...] a Psicodinâmica do Trabalho se desdobra sobre um trabalho de campo radicalmente diferente do lugar da cura. Afirmar que ela é uma clínica implica que a fonte de inspiração é o trabalho de campo, e que toda a teoria é alinhavada a partir deste campo. (DEJOURS, 1993, p. 137)
Macêdo (2015b) também sinaliza que a organização do trabalho deve abordar o aspecto social do trabalho e as dinâmicas intersubjetivas indispensáveis à psicodinâmica do reconhecimento, necessário para o alcance da personalidade e da inteligência, da proteção do ego e da própria saúde no meio laboral.
Essa articulação permite dizer que, para essa Clínica, é o sujeito que luta contra a loucura do trabalho, as patologias por ele ocasionadas e a doença mental evidenciada nesse meio. É o sujeito que luta pela sua saúde mental; é o sujeito da contradição, do conflito com ele mesmo, que hesita sobre si mesmo quando confrontado com o real.
A Clínica tem como ponto central a relação entre o sujeito e a organização do trabalho como determinante do sofrimento mental; já a liberdade do trabalhador é condição necessária à estabilidade psicossomática. É, a Clínica, construída com referenciais teóricos da Psicopatologia, evoluindo para uma abordagem autónoma com objeto, princípios, conceitos e métodos particulares. Trata-se de um referencial particular no campo da saúde mental e do trabalho que tem oferecido uma grande contribuição às pesquisas e intervenções nesta área no Brasil (MACÊDO, 2015b).
Dejours (1992) afirma que a perlaboração coletiva do vivido no trabalho via fala/escuta transforma a relação subjetiva dos trabalhadores com a situação de trabalho. Isso significa que a elaboração psíquica envolve, ao mesmo tempo, o pensar, o sentir e o falar, não permitindo a distinção entre pensamento e ação. Essa ideia é central para a articulação entre a teoria do sujeito e a teoria social, essencial à prática. O diálogo que a PDT estabelece com a Psicanálise
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exerce influência significativa nos seus pressupostos teóricos, mas ambas se diferenciam na prática.
Macêdo (2010) refere-se a Dejours (1994; 1997; 2004) afirmando que a Psicodinâmica do Trabalho é uma ciência que investiga a saúde psíquica no trabalho, sabendo-se que o trabalho não significa só exercer atividades produtivas, mas relacionar, conviver. O quadro 1 expõe seus fundamentos:
Quadro 1 Fundamentos da PDT
Fonte: Fleury; Macêdo, 2013.
Segundo Fleury e Macêdo (2013), para orientar os trabalhos teóricos e práticos desenvolvidos com base na abordagem da PDT, alguns pressupostos são essenciais:
I a centralidade do trabalho para o sujeito na constituição da sua subjetividade;
II a não neutralidade do trabalho em relação à saúde mental e à constituição da identidade do sujeito;
III a possibilidade de mudança das situações de trabalho tendo em vista que elas existem em função das decisões humanas e não por fatalidade;
IV a possibilidade, a direção dessas mudanças ocorre com uma modificação do trabalho e não com a adaptação dos trabalhadores ao trabalho existente.
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Ainda fazem parte dos conceitos básicos da PDT: a sublimação2, a ressonância simbólica, a mobilização subjetiva (vivências de prazer e de sofrimento e estratégias defensivas e de enfrentamento), a ressignificação do sofrimento e a identificação com o trabalho subjetivo. As construções que norteiam tais elementos em especial a mobilização subjetiva e seus componentes serão tratadas de modo mais abrangente ao longo desta pesquisa, traçando, assim, os aspectos mais relevantes da PDT.
Como visto, a Psicodinâmica do Trabalho é, ao mesmo tempo, uma disciplina clínica e teórica. É clínica por apoiar-se na descrição e no conhecimento das relações entre trabalho e saúde, sendo um modo de desvelar as mediações que ocorrem entre o sujeito e o real do trabalho (DEJOURS, 2012b).
A tradução deste real ocorre pela escuta do clínico sobre a fala do trabalhador, dando visibilidade às situações de trabalho, às vivências dos trabalhadores no seu cotidiano. É teórica porque busca registrar os resultados da investigação clínica das relações de trabalho, conforme acentuam Fleury e Macêdo (2015b).
Macêdo (2016a) afirma que em Psicodinâmica, a interação entre as palavras clínica e trabalho ganha um sentido que extrapola o significado, pois durante muito tempo esteve associada à prática médica, sendo sua origem etimológica Kline o leito; klinicos o médico; klinike cuidado médico com o doente acamado. Etimologicamente, clínica é expressão associada quase que exclusivamente ao meio médico; da mesma forma, os sinónimos apresentados para a palavra 'clínica' são ambulatório, consultório, laboratório e hospital.
Dejours (2008) entende a Clínica do Trabalho como um modo de acessar a relação entre o sujeito e o real de trabalho e de dar visibilidade às situações de trabalho e às...
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