A codificação e a constitucionalização do direito privado

AutorRogério Andrade Cavalcanti Araujo
Páginas77-104
CAPÍTULO 4
A CODIFICAÇÃO E A
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO
DIREITO PRIVADO
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
Clóvis Beviláqua escolheu como uma das epígrafes ao primeiro volume de sua
obra Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado os seguintes dizeres do
romancista José de Alencar, lapidados quando o famoso escritor ocupava a Pasta da
Justiça no Governo Imperial1:
“Um Código Civil não é obra da ciência e do talento unicamente; é, sobretudo, a obra dos costu-
mes, das tradições, em uma palavra, da civilização, brilhante ou modesta de um povo”.
Esse pensamento ref‌lete com acuidade a ideia que se pretende desenvolver no
presente capítulo: a codif‌icação foi um fenômeno que f‌incou suas raízes na cultu-
ra jurídica nacional de tal sorte que não se pode encetar o estudo dogmático dos
institutos de direito privado sem que antes se busque compreender o impacto do
movimento codif‌icador em nossos espíritos, suas raízes históricas e seus destinos
diante de novas concepções, como a da constitucionalização do direito privado.
Abordemos, pois, essas questões.
CONCEITO DE CÓDIGO CIVIL
Antiga se mostra a discussão acerca da real necessidade de sistematização do
Direito Civil por meio da elaboração de um Código. Ilustres civilistas, a exemplo de
Savigny e de Gabba, alinharam-se contra essa iniciativa2, temerosos que estavam pelo
engessamento que a codif‌icação poderia signif‌icar para o direito. Havia, contudo,
em maior número, entusiastas da ideia. Autores como Louis Josserand3 exaltavam
1. ALENCAR, José apud BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 9. ed. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1951, v. I, p. 7.
2. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil – parte geral. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,
p. 47.
3. JOSSERAND, Louis. Derecho civil. Buenos Aires: Bosch, 1952, v. I, t. I, p. 60, assim trata a questão: “Sola-
mente en Inglaterra y hasta en los Estados Unidos, tierras clásicas de la costumbre, del Common Law, ha
dejado de progresar el derecho escrito, como fruto de la repugnancia de la mentalidad anglosajona respecto
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DIREITO CIVIL BRASILEIRO – PARTE GERAL • ROGÉRIO ANDRADE CAVALCANTI ARAUJO
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suas vantagens a ponto de vaticinarem a prevalência que generalização e sistema-
tização, frutos da codif‌icação, lograriam em todas as nações, até mesmo naquelas
pertencentes ao sistema do common law, em detrimento dos fatores particularistas e
de dispersão jurídica encontrados nos direitos de base consuetudinária. Atualmente,
o que se percebe é o inegável triunfo da codif‌icação nos países de direito continental.
Mas e o que se pode entender, nos dias de hoje, por um Código? Seriam as
modernas codif‌icações diferentes daquelas produzidas pelas civilizações antigas,
tais como o Código de Hamurabi, de Manu ou de Justiniano? Enfrentemos essa
questão, valendo-nos das diferenças existentes entre os conceitos de “códigos”,
“consolidações” e “compilações”4.
Entende-se, assim, por código “a modalidade aperfeiçoada de organização de
um ramo jurídico à luz de princípios e valores convergentes, que se entrelaçam,
formando um todo orgânico e sistemático”5. Atente-se que um Código Civil não se
coaduna com aventuras legislativas, devendo conter o pensamento jurídico nacional
enraizado, cabendo à legislação extravagante o espaço ideal para a inserção de novos
conceitos. Tome-se como exemplo a questão da Lei de Transplantes no Brasil (Lei
9.434/97). Embora trate de matéria tipicamente civil – direitos de personalidade –,
não foi inserida no corpo do Código Civil. Muito bem andou o legislador quanto a
esse ponto.
Ora, a versão original da Lei 9.434/97, em seu artigo 4º, presumia, salvo mani-
festação de vontade em sentido contrário, a intenção de doar em todas as pessoas
nas quais se constatasse a morte encefálica. Não obstante a justiça do dispositivo, o
clamor popular foi tamanho que a sistemática do transplante acabou sendo alterada
pela Lei 10.211/2001, autorizando a coleta de órgãos daqueles que faleciam apenas
após a autorização da família. Constatou-se, portanto, que a ideia inicial, carreada em
legislação extravagante, mostrou-se, após breve período experimental, desgarrada
dos anseios sociais. Forçosa mostrou-se, então, a sua alteração. A experiência citada,
portanto, reforça a ideia de que um Código Civil não é o espaço ideal para aventuras
legislativas, cabendo à legislação extravagante levar a cabo tal mister.
As “consolidações”, ao seu turno, são entendidas de maneira uniforme pela
doutrina como a ordenação de todas as normas já produzidas sobre determinado
tema em um único texto legal. Trata-se apenas de um esforço de organização da
produção legislativa pretérita. No Brasil, como se verá adiante, entre os primeiros
esforços de sistematização das leis civis, fora contratado pelo Governo Imperial o
jurista Teixeira de Freitas, que elaborou, entre tantas obras importantes, a Consoli-
dação das Leis Civis do Império.
a todo trabajo de generalización y sistematización; a pesar de todo, la tendencia a la unif‌icación prevalecerá
un día, allí como en todas as partes, sobre los factores de particularismo y de dispersión jurídicos”.
4. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 40. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 139.
5. NADER, Paulo. Curso de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, v. I, p. 32.
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