Colapso do bem jurídico-penal, e Alexy: cai o muro de Alice

AutorAntonio Araújo
Páginas99-113

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Um sistema criminal lastreado em bens jurídicos abriga “elementos de instabilidade” (ARAÚJO, 2014) natos ao Iluminismo romântico de segunda geração, pós-arcadismo: alfaiate de arquipélago a bens sob medida. Tanto que o engajamento visceral e neoclássico de Goya não os retorquiu, nem teve como predizê-los. Dentre os principais instabilizadores:

• fluidez temporal (cf. BUSATO e HUAPAYA, 2007, p. 33) — o que é bem jurídico hoje provavelmente não o será, ressaltando-o os matizes bio, etno e infojurídicos. A fluidez é um caractere do maneirismo, estágio inicial da arte moderna. Ela antecipou a saga ou tendência que, séculos mais tarde, radicou-se qual uma...

[...] síndrome psicológica das sociedades capitalistas. [...] a fluidez não poderia ser inteiramente explicada sem que se vincule esse fenômeno à forma de representação através da qual as sociedades capitalistas legitimam-se a si mesmas [...] Nas sociedades modernas, a representação é um processo puramente sociomórfico; já não é mais uma legitimação da verdade da existência comunal sobre fundamentos meta-históricos. É, antes, uma exigência para a pacificação negociada entre os indivíduos, para habilitá-los a acomodar seus interesses pessoais. A sociedade moderna não se reconhece como miniatura de um cosmos maior, mas como um contrato amplo entre seres humanos. Assim, a conduta humana se conforma a critérios utilitários que, a seu turno, estimulam a fluidez [...]. Na verdade, o

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homem moderno é uma fluida criatura calculista, que se comporta, essencialmente, de acordo com regras objetivas de conveniência [...] No conceito de representação consistente com esse ponto de vista, a imparcialidade substitui a verdade [...] Em tal situação de vácuo meta-histórico, não dispõe o indivíduo do piso firme necessário para que sua identidade se desenvolva. O homem moderno é o tolo enganado por uma fé mal colocada [...] Mas já que o centro ordenador de sua vida não está em parte alguma, sua identidade é de sua própria criação. Essa forma de cultivo da individualidade acaba em narcisismo [...] Em conseqüência, numa visão fluídica, com a interpretação da sociedade como um sistema de regras contratadas, o indivíduo é levado a compreender que tanto a sua conduta quanto a conduta dos outros é afetada por uma perspectiva. Torna-se um perspectivista [...] O perspectivismo permeia o pensamento de Maquiavel [...] [que] distorce sistematicamente a linguagem teórica por despojá-la de qualquer substância ética, prática em que Hobbes mais tarde seria soberbo. Por exemplo, com Maquiavel, a prudência é vazia de conteúdo ético, é mero cálculo a serviço de interesses [...]. (RAMOS, 1989, p. 53-59. Cf. VOEGELIN, 1952; WHITEHEAD, 1967, p. 201, 240)

• relativismo programático (cf. GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, 1999, p. 90) — a noção de bem desvirtua, gera uma reificação e programação da existência humana, com o “viver” desnaturando-se na judicialização “vida”: hall, sabatina e cartilha de animação suspensa. Fenômeno ou desvio que Ramos (1989, p. 50-52, 59) batizou de síndrome comportamentalista.

O comportamento é uma forma de conduta que se baseia na racionalidade funcional ou na estimativa utilitária das conseqüências, uma capacidade — assinalou corretamente Hobbes — que o ser humano tem em comum com os outros animais. Sua categoria mais importante é a conveniência. Em conseqüência, o comportamento é desprovido de conteúdo ético de validade geral. É um tipo de conduta

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mecanomórfica, ditada por imperativos exteriores. Pode ser avaliado como funcional ou efetivo e inclui-se, completamente, num mundo determinado apenas por causas eficientes. Em contraposição, a ação é própria de um agente que delibera sobre coisas porque está consciente de suas finalidades intrínsecas. Pelo reconhecimento dessas finalidades, a ação constitui uma forma ética de conduta. A eficiência social e organizacional é uma dimensão incidental e não fundamental da ação humana [...] A síndrome comportamentalista é uma disposição socialmente condicionada, que afeta a vida das pessoas quando estas confundem as regras e normas de operação peculiares a sistemas sociais episódicos com regras e normas de sua conduta como um todo [...] Exposto a um mundo infiltrado de relativismo moral, o indivíduo egocêntrico sente-se alienado da realidade e, para superar essa alienação, entrega-se a tipos formalistas de comportamento.

• sublimação bifocal (cf. JESCHECK, 1993, p. 231) — predicado que abstraiu orto e filogeneticamente o bem, qual núcleo concretizador. E fê-lo uma indefinição, aporia ou variável holográfica, gravitando ora o monismo personalista, ora o coletivo, quer, ainda, um dualismo: “[...] a influência da evolução social sobre o atual desenvolvimento do direito penal gera a tendência de dissolução do conceito de bem jurídico, passando-se dos [...] bens jurídicos individuais aos mais vagos e intangíveis [...]” (BECHARA, 2009, p. 21).

Esta alternativa entre um conceito de bem jurídico preciso e crítico, mas alheio às necessidades da prática, e um conceito de bem jurídico prático e mais próximo da realidade, porém vago e inconsistente, agudiza-se ainda mais em uma sociedade moderna e complexa como a que temos atualmente. [...] enfrentam ao Direito Penal com a questão de se é possível limitar ainda sua missão de proteção do “Direito de outro”, ou é necessário passar a proteger instituições, unidades ou funções sociais, o que evidentemente significa uma maior indefinição do conceito de bem jurídico. (HASSEMER e CONDE, 1989, p. 106-107)

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• pretensão totalitária (cf. ZAFFARONI, 1989) — alquimia de que “[...] todo bem jurídico demanda uma tutela penal” (Id. Ibid., p. 41). Prometeica, a criminalização de quase tudo banaliza o Direito Penal, interditando, neutralizando-lhe a subsidiariedade inata:

A esse respeito, observa-se, antes de mais nada, que até a segunda metade do século XX, o princípio de proteção de bens jurídicos, ou o conceito de bem jurídico, era utilizado como critério de crítica e limitação à intervenção punitiva do legislador. Na atualidade, ao contrário, o mesmo conceito passa a ser utilizado para justificar e exigir a intervenção do direito penal, vale dizer, para reclamar a tutela penal, em vez de operar seu filtro. Criam-se, neste contexto, novos bens jurídicos que certamente seriam mais bem protegidos em outros ramos do direito, de forma a evitar uma inflação penal como a que já se vê nos dias de hoje. Igualmente, criam-se normas penais a tutelar situações que não podem receber a denominação de bens jurídicos em sentido restrito. (BECHARA, 2009, p. 21-22. Cf. FERRAJOLI, 1997, p. 468)

• codificação e confissão ideológicas (cf. BRUNO, 1959) — o bem qual algoritmo devoto, imerso em softwares de papel «Constituição e “Códigos” Penal, Civil...», a criptografar, lacrar ou cifrar interesse$ que “[...] a consciência comum do grupo ou das camadas sociais nele dominantes eleva à categoria de bens jurídicos” (Id. Ibid., p. 15).

[...] doutrina dominante claramente expressa pelo presidente do Congresso Continental e primeiro presidente da Corte Suprema, John Jay: “As pessoas a quem o país pertence...

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