Colonialidade e construção nacional: o papel do pensamento jurídico na divisão racial da sociedade brasileira

AutorFelipe Montiel da Silva Júlia Dutra de Carvalho
CargoMestre em Direito a partir do Programa de Pós-Graduação da Universidade La Salle (Canoas/RS) Possui graduação em Psicologia pela UFRGS e Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS
Páginas164-196
COLONIALIDADE E CONSTRUÇÃO NACIONAL:
O PAPEL DO PENSAMENTO JURÍDICO NA
DIVISÃO RACIAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA
COLONIALITY AND NATIONAL CONSTRUCTION: THE ROLE OF
LEGAL THINKING IN THE BRAZILIAN SOCIETY RACIAL DIVISION
Felipe Montiel da Silva1
Júlia Dutra de Carvalho2
Resumo: o estudo ora apresentado questiona a relevância de pro-
jetos de uni cação nacional que silenciam a respeito da coloniali-
dade das relações sociais. Em re exo, o objetivo central da análise
é delimitar o papel que as simbolizações raciais ocuparam na in-
tegração nacional e na constituição da posição subordinada que
o Brasil ocupa em relação aos países de capitalismo central. Para
cumprir o objetivo adotado o estudo observou como alguns juristas
pretendiam solucionar o problema da integração nacional nos sé-
culos XIX e XX. A referida investigação mostrou que a emergência
do Brasil enquanto Estado-nação exigiu que o Direito e os juristas
re etissem sobre a heterogeneidade racial do território brasileiro,
evidenciando que raça e nação são temas vinculados à instituição
do Estado nas zonas neocoloniais. A contradição havida entre a
presença e a ausência da discussão racial na formação do Estado
foi enfrentada a partir do método interdisciplinar, suspendendo-se,
na materialidade, a abstração que orienta a doxa jurídica. Ao  m,
a pesquisa concluiu que o combate à racialização das posições e
espaços sociais é indispensável a projetos nacionais que almejem
a materialização da independência política e econômica do territó-
rio, evidenciado a limitação das simbolizações de nação despidas
da referida característica.
Palavras-chave: Colonialidade; Racismo; Branquitude; Estado; Nação.
1 Mestre em Direito a partir do Programa de Pós-Graduação da Universidade La Salle
(Canoas/RS). Graduado em Direito através da Faculdade de Desenvolvimento do Rio
Grande do Sul. Integrante do Grupo de Pesquisa Teorias Sociais do Direito (TSD) vin-
culado à Universidade La Salle. Advogado.
2 Possui graduação em Psicologia pela UFRGS e Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais pela
PUCRS. Mestra e Doutora em Psicologia Social e Institucional a partir da UFRGS. Professora da
Residência Integrada Multidisciplinar em Saúde Mental Coletiva da UFRGS. Psicóloga Clínica.
ARTIGO
Revista dos Estudantes de Direito
da Universidade de Brasília;
18ª edição
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Abstract: the present study questions the relevance of national uni-
cation projects that silence about the coloniality of social relations. As
a reection, the central objective of the analysis is to delimit the role
that racial symbolizations played in national integration and in the
constitution of the subordinate position that Brazil occupies in relation
to the countries of central capitalism. To fulll the objective adopted,
the study observed how some jurists intended to solve the problem
of national integration in the 19th and 20th centuries. is observa-
tion showed the emergence of Brazil as a nation-state demanded that
the law and jurists reect on the racial heterogeneity of the Brazilian
territory, showing that Race and nation are themes linked to the in-
stitution of the State in neocolonial zones. e contradiction between
the presence and the absence of racial discussion in the formation of
the State was faced from the interdisciplinary method, suspending, in
materiality, the abstraction that guides the legal doxa. At the end, the
research concluded that combating the racialization of social positions
and spaces is indispensable for national projects that aim at materializ-
ing the political and economic independence of the territory, evidenc-
ing the limitation of the symbolizations of the nation stripped of that
characteristic.
Keywords: Coloniality; Racism; Whiteness; State; Nation.
Submissão: 26/03/2020
Aceite: 27/06/2020
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1. INTRODUÇÃO
A contar de 1822 o Brasil encontra a independência política, pre-
tendendo instituir a moderna gura do Estado sobre relações sociais
estruturadas pela colonialidade do poder imediata (QUIJANO, 2002, p.
13-14). No campo da produção, o trabalho remunerado era reserva-
do aos descendentes da Europa, isto é, à branquitude3, extraindo-se
a energia laboral dos corpos subalternamente racializados a partir da
escravização racial fenotípica e de espécie de servidão4 igualmente ra-
cializada (OLIVELLA, 1989, p. 52; QUIJANO, 2005, p. 107-110).
O referencial teórico empregado na pesquisa em execução con-
sidera que a hierarquização racial implicou a deslegitimação cognos-
cente (CARNEIRO, 2005, p. 96), de forma que o grupo que controlou o
reino da produção material passou a controlar o campo da produção
dos sentidos sobre a realidade imediata. Na Modernidade, dentro do
referido contexto, o euro-ocidente impôs a morte epistêmica dos me-
3 A noção de branquitude põe em evidência o papel e os benefícios extraídos pela identida-
de branca no jogo de oposição categorial que a antagoniza em relação aos corpos/espaços
subalternamente racializados, isto é, negros e índios. Em Lourenço Cardoso (2010) o caráter
deliberado da dominação racial ganha relevo a partir dos conceitos de branquitude crítica
e branquitude (a)crítica. A branquitude, compreendida como pertença sócio-histórica, por-
tanto, mutável, à identidade branca, pode assumir, por intermédio individual ou coletivo,
postura crítica através da desaprovação pública do racismo. A branquitude (a)crítica, toda-
via, reside na identidade branca marcada pela conservação dos privilégios raciais forjados
a partir dos históricos genocídios/epistemicídios que constituíram a branquitude como ex-
teriorização corpórea do ocidente. Consideramos, ainda, que a branquitude comporta cisão
geopolítica, ou seja, as elites criollas que habitam as neocolônias formam a branquitude local
ou periférica, encontrando-se em condição de domínio em relação aos corpos subalterna-
mente racializados na periferia do capitalismo. Em relação à branquitude central, ou seja,
em relação aos sujeitos albergados pela identidade branca situados nos países centrais, a
branquitude local cumpre papel subordinado, agindo, com relativa autonomia, em proveito
dos interesses extrativistas (SILVA, 2019, p. 17-66) da branquitude central (SILVA, 2020).
4 Manuel Zapata Olivella suspende a benevolência do regime de servidão dispensado à po-
pulação aborígene-americana. Ao analisar a Lei emitida pela Rainha Isabel em 1503 Olivella
identica que o novo regramento autorizava “o usufruto do trabalho pessoal de um indígena
a favor de um colono espanhol, sistema inspirado na adjudicação de vassalos pelos senhores
feudais (). Um exemplo de como operava a repartição de servos nos brinda Gonzálo Jimé-
nez de esada do relato que faz de suas proezas na conquista, pacicação e domínio dos
antigos reinos de Zipa e Zaque nas planícies de Bogotá: ‘Capitão Juan de Céspedes, detentor
das terras de Ubaque, Cáqueza e Subachoque, com mais de 1.500 índios; Capitão Antônio de
Olalla, detentor da repartição das terras de Suba, com 900 a 100 índios () (OLIVELLA, 1989,
p. 50).” A racialização subalternizada imposta ao “índio” não o humanizou, mas, o assimilou
por meio do sincretismo e da morte física.
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