Combate' à corrupção no Brasil: da necessidade de superação do direito penal simbólico

AutorAmanda Bastos Alves
Ocupação do AutorDoutoranda em Direito Penal Contemporâneo pela UFMG, Mestra e Graduada em Direito pela mesma Universidade, com intercâmbio de graduação na Université Panthéon-Sorbonne, ex-membro do Grupo de Estudos Casa Verde e analista em direito na Procuradoria de Justiça Criminal do MPMG
Páginas115-156
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 115
“Combate” à corrupção no Brasil:
da necessidade de superação do
direito penal simbólico.
Amanda Bastos Alves1
1. O direito penal é a via de solução para o problema da
corrupção no Brasil?
A via do direito penal para a solução de graves problemas
econômicos e sociais é objeto de frequentes críticas p or parte da
criminologia. Não se pode esperar que um dos instrumentos mais
poderosos de manutenção e reprodução da dominação e da exclu-
são sir va, igualmente, para reparar questões sociais complexas que
se originam justamente em abusos dos poderes político e econômico
(KARAM, 1996, p. 80).
A despeito desta inaptidão do sistema penal, o que se nota, de
forma expressiva, é um furor persecutório, que atravessa os discursos
midiáticos, políticos e jurisdicionais. Esta tendência, em especial no
que concerne à criminalidade dourada, está relacionada à redução
da estratégia do combate a tais crimes a uma questão exclusivamente
penal. Ora, tal postura, além de carregar alto teor emotivo, veiculado
à ideia de direito penal como retribuição, reforça a crise da função
preventiva do direito penal2 – pois soma altas expectativas e, diante
de seu fracasso preventivo, descrédito.
Neste contexto, a resposta penal aos anseios populares adqui-
re contornos altamente simbólicos, resultando no que Baratta chama
1
Doutoranda em Direito Penal Contemporâneo pela UFMG, Mestra e Graduada
em Direito pela mesma Universidade, com intercâmbio de graduação na Université
Panthéon-Sorbonne, ex-membro do Grupo de Estudos Casa Verde e analista em
direito na Procuradoria de Justiça Criminal do MPMG.
2
S obre as funções instrumentais do direito penal, sendo elas a prevenção geral,
positiva e negativa e a prevenção especial, negativa e positiva, Baratta assim resume:
“Em todas as teorias instrumentais a função útil da pena é a defesa dos bens jurídi-
cos e da sociedade. Isso signica: o controle dos comportamentos delituosos deve-
ria manifestar, na prática, uma relevante diminuição do seu número” (BARATTA,
1994, p. 17).
116 • CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRÍTICA CRIMINOLÓGICA
de espetáculo. Para ele, na política criminal, e na política, em geral,
vê-se uma espécie de encenação, engano, no qual não se pretende
tanto mudar a realidade, mas sim a imagem da realidade nos espec-
tadores (BARATTA, 1994, p. 22). Segundo o criminólogo italiano,
as funções simbólicas tendem, então, a prevalecer sobre as funções
instrumentais do sistema penal, neste cenário:
O décit de tutela real dos bens jurídicos é compen-
sado pela criação, junto ao público, de uma ilusão de
segurança e de um sentimento de conança no orde-
namento e nas instituições que tem uma base real cada
vez mais fragilizada (BARATTA, 1994, p. 22).
O sistema penal, ademais, apontado como instrumento ro-
tulador, seleciona alguns indivíduos e os etiqueta como responsáveis
pelas mazelas da sociedade. Desta forma, facilita a perseguição de
adversários políticos e diculta a busca pelas raízes estruturais dos
desvios. A reação punitiva, assim, gera a sensação de satisfação, a par-
tir da identicação do inimigo, mas, ao mesmo tempo, desvia as aten-
ções e afasta a busca de soluções verdadeiramente ecazes (KARAM,
1996, p. 82.).
Para descrever este fenômeno, que envolve uma expectativa
desmesurada na utilidade do direito penal para corrigir questões so-
ciais complexas, tem-se usado, então, o termo direito penal simbóli-
co. O discurso simbólico residiria justamente na defesa de um direito
penal que é capaz de solucionar graves questões sociais, por meio da
pena (HASSEMER, 1995, p. 26), o que se distancia sobremaneira da
realidade empírica, revestida de uma complexidade bastante desaa-
dora.
Com efeito, alguns aspectos próprios do funcionamento do
sistema penal colocam em xeque sua funcionalidade, podendo ser
apontados como exemplos as cifras negras, a impunidade e a seleti-
vidade (BARATTA, 1994, p. 22). A crise de suas funções preventivas
tem sido, assim, denunciada de forma corrente.
Especicamente no caso brasileiro, nota-se que, contempo-
raneamente, a gura da corrupção tem concentrado atenção particu-
lar dos discursos punitivistas3. Casos emblemáticos recebem o nome
3
A respeito da atualidade e importância do tema da corrupção no discurso ocial
ESTUDOS EM HOMENAGEM AOS 10 ANOS DO GRUPO CASA VERDE • 117
de escândalos, com repercussão midiática expressiva4 e operações
grandiosas, mobilizando todo o sistema penal – desde as grandes
operações de investigação até as condenações5.
Nota-se, neste debate, a participação de toda a sociedade.
Membros do pode r judiciá rio, Mini stério Pú blico6, ocupantes de car-
gos eletivos – bem como pretensos candidatos, Academia, mas tam-
bém os cidadãos, de modo geral, que consomem notícias jornalísticas
e manifestam-se nos mais diversos meios – mídias sociais, grupos de
whatsapp, debates familiares e, em alguns casos, mobilizações sociais.
E tal reação não é de se estranhar: o tema move paixões e uma sensa-
ção coletiva de posição de vítima, haja vista que a tal corrupção atinge
interesses coletivos e impacta na vida de cada um da sociedade7.
do sistema penal, vide considerações de Luís Greco e Adriano Teixeira (GRECO e
TEIXEIRA, 2017, p. 23), em que os autores mencionam, do ponto de vista políti-
co-jurídico, a lei de combate à corrupção, n° 12.846/2013 e as “10 Medidas contra
a corrupção”.
4
Conforme aponta Venício A. de Lima, a mídia e o jornalismo são atores funda-
mentais nas crises políticas, podendo fazer ou desfazer reputações ou conceder vi-
sibilidade (LIMA, 2012, p. 445). Não são a expressão da “opinião pública”, mas sim,
como aponta o autor, um de seus formadores. Inclusive, segundo conclui, muitas
das mais importantes crises políticas do mundo contemporâneo têm, justamente,
como origem, um escândalo político midiático – a que se chama EPM. Sob o fun-
damento de contribuir para a publicidade e, em última instância, para a própria res
publica, a mídia incorpora o jornalismo investigativo, denunciando casos de cor-
rupção, e impactando sobremaneira no modo de pensar da população que consome
as notícias (LIMA, 2012). Na mídia, há um espaço de disputa política. Nesse campo
político, o poder se utiliza do poder simbólico, p ara criar e manter uma crença
na legitimidade. S egundo esclarece Lima, o poder simbólico tem a capacidade de
intervir no curso dos acontecimentos, inuenciar ações e crenças, bem como, até
mesmo, criar fatos (viola-se a presunção de inocência, restringe-se o direito de res-
posta...). A forma como a mídia apresenta um escândalo investigativo midiático
compõe o próprio escândalo (LIMA, 2012, p. 443).
5
Como exemplo, pode-se mencionar os notórios casos recentes do “Mensalão” e da
“Lava Jato, assim denominados no âmbito midiático.
6
Sobre a atuação política do Ministério Público, vide a iniciativa chamada “10 Me-
didas Contra a C orrupção”, de respaldo popular, que visa a criação de novos tipos
penais, além de diversas outras medidas de pretenso combate à corrupção (dispo-
nível em: . Acesso em 06 jan. 2018). Com
efeito, não se trata de uma instituição, tão somente, com atuação no processo penal,
mas sim de promotora de ativismo judicial, conforme atesta Rodrigo Anaya Rojas
(2013).
7
Sobre este temor coletivo que é percebido nas sociedades contemporâneas, vide o
notório trabalho do sociólogo Ulrich Beck, em que explica a sociedade dos riscos e
suas consequências deletérias (BECK, 2011).

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