O mundo de Comenius: entre conflitos e guerras uma luz para a prática pedagógica

AutorAlvori Ahlert
Páginas440-451

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Introdução

A crise* da Modernidade continua provocando buscas por respostas a tantas questões não resolvidas pela ciência, que se julgava infalível durante os últimos séculos, e pela educação por ela influenciada. Nesta busca cresce o interesse em olhar melhor no passado quanto ao desenvolvimento da construção e reconstrução de conhecimentos dentro de um processo pedagógico. Entre muitas teorias em gestação, existem tentativas em fazer uma investigação sobre as diversas formas de conhecimento, não suficientemente valorizadas pela história racionalista do Iluminismo. Trata-se de recuperar a diversidade de culturas e saberes, cujas entranhas ainda guardam contribuições que, atualizadas, podem iluminar nossos quefazeres educativos. Esta diversidade mostra-se cada vez mais rica nos momentos de ruptura histórica, constituindo-se em verdadeira “pedagogia do conflito”, no dizer de Boaventura de Souza Santos (1996). Segundo ele, os conflitos devem ocupar o centro da experiência pedagógica emancipatória. É preciso vulnerabilizar e desestabilizar os modelos da epistemologia dominante fazendo uma hermenêutica no sentido de um resgate do sofrimento humano. É preciso produzir imagens desestabilizadoras para produzir indignação, rebeldia e inconformismo.

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Por isso, conhecer os conflitos históricos que geraram rupturas epistemológicas educacionais constitui-se em importante contribuição para iluminar nossa caminhada hoje.

Jan Amos Comenius teve importante contribuição e influência nos processos de formação, educação e pesquisa no período em que a sociedade ocidental passou do Feudalismo para o Modo de Produção Capitalista. Sua obra está ajustada ao seu tempo, dando respostas ao que o novo demandava. Tanto suas obras pedagógicas, quanto suas obras como reformador social, podem, através de uma releitura, iluminar nossas necessidades de pedagogias do conflito. Sua utopia de ensinar tudo a todos, numa proposta essencialmente comunitária e participativa, pode ser fonte para a reconstrução de utopias para nossos dias.

Fazendo referência aos quatrocentos anos do nascimento de Comenius, este trabalho objetiva reconstruir o período histórico da vida de Comenius, sua origem, seu desenvolvimento na Comunidade dos Irmãos Morávios, na Boêmia, e o sofrimento que a Guerra dos Trinta Anos lhe impôs, influenciando profundamente sua obra como teórico praxista e místico do século XVII.

O mundo de Comenius

A obra de Comenius é um dos patrimônios mais importantes da história da Pedagogia Ocidental. Sua vida, sua história, sua produção de conhecimentos, suas obras se desenrolaram na Europa central, na Moravia, no Reino da Boêmia, mais tarde Tchecoslováquia, hoje República Tcheca e Eslováquia. Jan Amos Comenius nasceu em 28 de março de 1592, na cidade de Uherskí Brod, filho de moleiro, oriundo de Komna, da região do Eslavo. Mencionar estas cidades e regiões tem importância, pois elas são o centro de uma tensão político-social-religiosa da época. Lá surgiu um dos principais movimentos religiosos de contestação do status quo conhecido como Movimento Hussita, dos primórdios do século XV, liderado por João Huss. Comenius é filho dessa tradição protestante da Boêmia que contestou os abusos da Igreja e do Estado que mantinham a população dominada pelo medo e pela mentira.

A Europa viveu durante cinco séculos sob o domínio da Escolástica que buscava readaptar a fé à razão, fruto do intercâmbio com os países árabes que trouxeram o pensamento aristotélico no período das Cruzadas.

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Foi um período intermediário entre o Feudalismo e o nascimento do modo de produção capitalista.

“Esta nova fase vivida na Europa a partir do século XI significou profundas transformações sociais, políticas, econômicas e religiosas. O crescimento das cidades fez surgir um novo pobre, o pobre urbano dependente total da benevolência dos novos ricos, frutos do processo comercial e industrial emergente. Velhas certezas começaram a cair e a própria unidade do Império germânico começou a se esfacelar. Novas exigências religiosas colocavam em xeque o monasticismo ascético medieval. A crise do antigo regime forçou e encorajou o surgimento de movimentos de contestação ao Império Eclesiástico centrado em Roma e questionavam a nova sociedade abastada” (Ahlert, 1996, p. 32).

Estas situações conflitantes lançaram as bases do movimento da Reforma. Seu principal precursor foi o Movimento Hussita da Boêmia, liderado por João Huss, nascido na Boêmia, em 1373. Huss era sacerdote, professor e reitor da Universidade de Praga. Com sua pregação eloqüente e profética, fundamentada nas Sagradas Escrituras, mobilizou multidões na Europa. Seu objetivo era restaurar a verdade e a justiça, flagrantemente seqüestradas pela Igreja da época. Huss, influenciado por Wycliff, pregador inglês, atacou a corrupção da Igreja fundamentado em escritos bíblicos os quais havia traduzido para a língua tcheca e seus dialetos, para que o povo dominado pudesse ter acesso aos escritos que julgava serem a verdade e a justiça. Assim, conscientizou o povo sobre as falsidades propagadas pela Igreja que propunha a salvação mediante dinheiro e conquistas próprias, o que conflitava com a doutrina da graça de um Deus misericordioso das Sagradas Escrituras.

“Huss ensinava que só Cristo é a cabeça da Igreja e a Bíblia a única autoridade em questão de fé. Para escoimar de abusos o clero, propunha a abolição da hierarquia e a pobreza absoluta para os sacerdotes. Ao mesmo tempo, Page 443...

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