Comentários à Lei N. 6.019, de 1974 com as alterações dadas pelas Leis NS. 13.429 E 13.467 de 2017: trabalho temporário e terceirização
Autor | Ângela Maria Konrath |
Páginas | 583-622 |
Ângela Maria Konrath
COMENTÁRIOS À
LEI N. 6.019, DE 1974
COM AS ALTERAÇÕES DADAS PELAS
LEIS NS. 13.429 E 13.467 DE 2017:
TRABALHO TEMPORÁRIO E TERCEIRIZAÇÃO
Ângela Maria Konrath
Visão geral do tema
Em 1973, quando o Deputado Federal João Alves, da Arena/BA, apresentou o Projeto de Lei que resultou na
Lei n. 6.019/1974, iniciava-se no Brasil a abertura para a intermediação de mão de obra na modalidade de contra-
to de trabalho temporário destinado a atender necessidade transitória de substituição de pessoal ou a acréscimo
extraordinário de serviços.
O Brasil e o mundo viviam a crise dos anos 70, desencadeada após os anos dourados do capitalismo, pautada
em diversos fatores entre os quais destacam-se: a crise do petróleo e o embargo da OPEP aos Estados Unidos e
à Europa; a expansão do Estado intervencionista estruturado para promoção dos direitos sociais; a explosão de-
mográfica pós as grandes guerras; a redimensão da esperança de vida ao nascer e o envelhecimento da população
dados os avanços da medicina; o esgotamento do modelo fordista de produção em linha de montagem – do con-
trole concentrado na empresa da matéria-prima até a entrega do produto ao consumidor final; a ranhura no tripé
do Estado do bem-estar social (saúde, previdência e assistência); o surgimento de uma sociedade de massas em
que os modelos de comportamento, a participação política e a vida cultural seguem padrão generalizado através
do uso dos meios de comunicação em massa.
Soma-se a isso a expansão das telecomunicações, o aumento das redes de transporte físico, os deslocamen-
tos reais e virtuais que incrementaram o contato entre relações de qualquer natureza, encolheram o tamanho do
mundo e redimensionaram a globalização econômica.
Esse quadro abriu espaço para que três líderes mundiais – Margareth Thatcher (Inglaterra), Ronald Reagan
(Estados Unidos) e Helmut Khol (Alemanha) – implementassem políticas neoliberais, defendendo a retirada do
Estado da economia, a abertura econômica, a privatização das estatais e a desregulamentação da economia.
Nos métodos de produção, migrou-se da linha de montagem fordista para o sistema toyotista: a produção
enxuta; o fim do estoque; a automação flexível; a intensificação do trabalho; a qualidade total; a divisão fragmen-
tada do trabalho pela terceirização.
Essas mutações trazidas pela era da acumulação flexível do neoliberalismo e da reestruturação produtiva,
pautadas na lógica da produção de mercadorias e valorização do capital, provocaram nas décadas que se seguiram
o desemprego estrutural, a precarização das condições de trabalho e a desmedida degradação entre o ser humano
e a natureza.1
1. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 3. ed. São Paulo: Boitempo Editorial,
2000. p. 15.
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A perda de empregos estáveis e centrais ao processo produtivo, substituídos por um sistema de contrata-
ção precária e flexível, de importância marginal ao percurso de produção, é característica do que ocorreu entre
os anos de 1970 e 1990, podendo ser interpretada como uma fase cíclica do modo de produção capitalista, an-
tecedendo as mudanças econômicas e sociais que marcaram o mundo do trabalho a partir das novas técnicas
de produção trazidas pela evolução científica, acentuadas no desenvolvimento tecnológico e promovidos pela
inteligência artificial.
A precarização do trabalho é manifesta nas mudanças das formas de organização e de gestão do trabalho,
na retirada de direitos clássicos surrupiados da legislação trabalhista e social, na ausência marcante do papel do
Estado em suas políticas sociais2.
Nessa dinâmica, a organização sindical fragmenta-se, enfraquecendo as possibilidades de luta e resistência
dos trabalhadores que passam a concentrar seus esforços na mera manutenção de empregos reduzidos à busca da
subsistência, diluindo-se cada vez mais a potencialidade de realização e reconhecimento da pessoa na atividade
que realiza.
A intermediação da mão de obra por meio de contratos temporários e da terceirização de serviços está no
eixo deste processo e por isso volta a cena de disputa política continuamente marcada pela divisão dos interesses
sociais e econômicos entre os que detém o poder econômico e os que possuem apenas sua força de trabalho.
No espaço contemporâneo, o argumento que lhe é favorável acena para a necessidade de adaptação às novas
exigências do mercado globalizado, mais enxuto, flexível e dinâmico.
Não obstante, é difícil vislumbrar-se resultado positivo num sistema descomprometido com a pessoa que
depende do trabalho para obter seu sustento e estruturado para reduzir custos e aumentar vantagens competitivas
entre as empresas, sem partilhar com o trabalhador os resultados da genialidade humana, concentrando nas mãos
de poucos a maior parte do proveito econômico que advém de todo esse processo, valendo referir a advertência
feita por Alain Supiot:
“O aspecto mais preocupante desta evolução é que ela não é uniforme isso cita uma fractura interna no
Direito do Trabalho, entre, por um lado, os trabalhadores que gozam plenamente os direitos da pessoa
garantidos pelo contrato de trabalho ‘típico’, e, por outro, aqueles que um contrato de trabalho ‘atípi-
co’ lança para o domínio do trabalho-mercadoria. Essa dualização do salariato manifesta, de uma certa
maneira, a falência do Direito do Trabalho, entendido como o lugar de harmonização das duas faces
do trabalho: o trabalho como bem transaccionável (o trabalho abstracto, força de riquezas exteriores e
quantificáveis), e o trabalho como expressão da pessoa (ou trabalho concreto, fonte de riqueza interior
não quantificável)”3.
Como forma de gerir a força de trabalho, a terceirização tem promovido, ao longo de seu percurso, a fle-
xibilização dos contratos, a transferência de responsabilidade, a atribuição dos custos trabalhistas a um terceiro,
acentuando a inversão do número de empregados contratados diretamente pela empresa em relação ao número
de terceirizados.
Apresenta ainda outras configurações, em sistemas de falsas cooperativas de trabalho, pejotização do tra-
balhador e prestação de serviços em formato ONG, com pagamento de salários mais baixos, jornadas de trabalho
mais extensas, elevados índices de acidentes e sonegação de direitos básicos.
Por conta disso, as alterações inseridas na Lei n. 6.019, de 1974 sugerem uma postura crítica e refratária
acerca da intermediação da mão de obra, haja vista que a terceirização tem se mostrado como a principal forma
de precarização do trabalho no Brasil e no mundo, em todos os setores e em todas as atividades, e os contratos
temporários têm muitas vezes sido instrumentos de sonegação de direitos.
2. “Em 1973, uma nova crise do capitalismo ocorre, tornando o mercado instável e flexível. Para a superação da crise, o capitalismo
busca a globalização econômica, a fim de abrir novos mercados produtores e consumidores. O neoliberalismo é o receituário que
viabiliza a globalização, reduzindo as barreiras dos Estados-nação e tornando as legislações locais uniformes, o que é feito pela
desregulamentação. Para dar conta de um mercado flexível, o sistema de produção deve adequar-se, o que se dá por um proces-
so de reestruturação, abandonando-se o modelo taylorista-fordista e adotando-se o modelo toyotista”. RAMOS, Alexandre Luiz.
Fundamentos para uma nova teoria da relação de emprego no Brasil do século XXI e a dignidade da pessoa humana. Florianópolis,
2006. Tese. Curso de Pós-Graduação em Direito – CPGD, Universidade Federal de Santa Catarina, p. 5.
3. SUPIOT, Alain. Crítica do Direito do Trabalho. Tradução de António Monteiro Fernandes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2016. p. 336-7.
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Promulgadas em ambiente de fissura democrática4, as Leis ns. 13.429 e 13.467 de 2017 ampliaram sobrema-
neira as possibilidades de intermediação de mão de obra, desprezando a construção doutrinária e jurisprudencial
dos institutos pertinentes ao contrato de trabalho temporário e a terceirização dos serviços.
Seguindo a ótica do legislador da Reforma Trabalhista, o Supremo Tribunal Federal – STF firmou a seguinte
tese de repercussão geral no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional – a ADPF
324: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, in-
dependentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa
contratante”5.
Na sequência da decisão do STF que valida a terceirização nas atividades fins das empresas, o Presidente da
República (Michel Temer/MDB) promulgou o Decreto n. 9.507, no dia 21.09.2018 (DOU 24.09.2018) dispondo
sobre a terceirização dos serviços na administração direta e em autarquias, fundações, empresas públicas e socie-
dades de economia mista controladas pela União. Ou seja, a ocupação dos cargos e empregos públicos se dará pela
via transversa da terceirização.
O texto do Decreto 9.507 de 2018 mina a efetividade da regra do art. 37, inciso II, da Constituição da Repú-
blica, que estabelece o concurso público como requisito de acesso ao cargo ou emprego público, o que certamente
demandará o pronunciamento do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
Caberá aos operadores jurídicos o primeiro olhar sobre este plano, antes mesmo que os trabalhadores te-
nham a chance de se organizar para a reivindicação direta.
Por conta disso, é fundamental que o foco do intérprete mire a Constituição e as normas internacionais
ratificadas pelo Brasil, detendo-se sempre que as alterações violem os princípios que regem o Direito do Trabalho.
4. “A ‘reforma’ trabalhista é fruto do golpe parlamentar de 2016, e assim como diversos marcos flexibilizatórios da legislação do traba-
lho decorreram do golpe de 1964” (ALVES, Pedro Daniel Blanco; MÁXIMO, Fabrício; CARVALHO, Laura. O trabalho temporário na
“reforma” trabalhista. In: MAIOR, Jorge Luiz Souto; SEVERO, Valdete Souto. Coord. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso
trabalhista. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 111).
5. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=388429>. Acesso em: 30 ago. 2018.
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