Compaixao e Critica.

AutorHarris, Angela P.

INTRODUÇÃO (1)

Onde começa a compaixão?

Talvez com a experiência do cuidado. O cuidado acontece no corpo e no momento: uma rápida onda de ocitocina, uma queima de neurônios-espelho, a repentina percepção de um nexo entre o assim chamado Eu e o assim chamado Outro. O cuidado é imprevisível e involuntário, uma reação, uma erupção ao longo das mutáveis superfícies entre você e o não-você, vivenciada de forma súbita, num "piscar de olhos". Kathleen Stewart descreve a reação emocional de um observador à dor de outro:

O jovem mineiro que me mostrou a mina coloca cada cigarro que ele fuma em sua mão, coberta de cicatrizes. Depois eu vi que todos os outros jovens mineiros tinham as costas das mãos cobertas de cicatrizes... Quando meus olhos caíram sobre elas, recuaram, vendo o cigarro aceso ser esmagado, e sentindo a dor... O olho não lê o significado em um sinal; ele pula da marca para a dor e para o cigarro aceso, e então pula para a fraternidade assinalada pelos cigarros acesos. (2) Mas a compaixão também pressupõe julgamento. Corpo e mente, revirando e faiscando, relacionam-se com as normas que nos dizem o que sentir ou não, e o que fazer ou não. Há um conflito, ou uma série de escolhas: sufocar a faísca, ou deixá-la arder em chamas que podem incendiar outros através do contágio emocional; decidir se o que parecia sofrimento era na verdade algo mais: ato reflexo, talvez, ou um cálculo frio; concluir se o sofrimento é demasiado avassalador, demasiado imenso ou demasiado desconcertante para ser enfrentado e, portanto, se é preciso fugir com dificuldade para longe (3). Essas escolhas sugerem que a compaixão tem uma relação com a crítica. Harriet Beecher Stowe, no capítulo final de A cabana do Pai Tomás, interpela diretamente os seus leitores do Norte dos Estados Unidos, acerca do papel desempenhado por eles na escravidão:

Você diz que as pessoas do[s] estado[s] livre[s] não tem nada a ver com isso, e não podem fazer nada? Seria muito bom se isso fosse verdade! Mas não é verdade. As pessoas dos estados livres têm defendido, encorajado e participado disso; e são mais culpadas por isso, diante de Deus, que o Sul, pois eles não tem a desculpa da educação ou do costume... Mas o que qualquer indivíduo pode fazer? Ora, cada indivíduo pode julgar. Há uma coisa que todos os indivíduos podem fazer - eles podem nutrir sentimentos corretos. Uma atmosfera de simpática influência circula cada ser humano; e o homem ou a mulher que se sente forte, saudável e justo, no interesse maior da humanidade, é um benfeitor constante da raça humana. Vejam, então, a sua simpatia neste assunto! Ela está em harmonia com a simpatia de Cristo? Ou ela está deslocada e pervertida pelos sofismas da política mundial? (4) Marx escreveu a famosa frase: "Até agora os filósofos se preocuparam em interpretar o mundo de várias formas; o que é importa é transformá-lo". (5) A teoria crítica difere da filosofia pura em sua motivação de provocar mudanças; para tanto, precisa, necessariamente, mobilizar emoções (6). Transformar relações de poder, como os teóricos críticos amam fazer, implica em provocar raiva, inquietação, ansiedade e até mesmo medo naqueles com um entendimento estabelecido sobre quem são e o sobre lugar ao qual pertencem. Mas os teóricos críticos são motivados não só pelo interesse em provocar e inquietar (7), mas também pelo desejo de incitar compaixão. Stowe pode ser, com justiça, criticada por insinuar que "nutrir sentimentos corretos" é suficiente. Compaixão, no entanto, não é o mesmo que piedade; é o desejo de aliviar o sofrimento de outrem, o desejo de agir (8). Quer dizer, a compaixão, às vezes, pode começar na crítica.

Neste ensaio, estou interessada na relação entre ideologia, crítica ideológica e emoção. Eu defendo que a crítica ideológica, produzida por Marx no século XIX, e por teóricos críticos do Direito nos séculos XX e XXI, se compromete não apenas a persuadir nossas mentes, mas também a mobilizar nossas emoções. Para alcançar isso, os teóricos críticos nos mostram que a ideologia é, com efeito, uma técnica de gerenciamento de emoções. A ideologia torna o sofrimento invisível e a compaixão inapropriada, ao nos assegurar que o status quo é natural, normal e necessário. A crítica ideológica, por sua vez, revela o sofrimento sob a sua fachada de conceitos ideológicos como "capital" e "propriedade". Além disso, tenta nos persuadir de que esse sofrimento é injusto e desnecessário: que a política, e não a natureza, é sua fonte, e que deveríamos agir para atenuar isso.

Portanto, assim como Marx, os teóricos raciais críticos querem que cuidemos dos subordinados (9). No entanto, várias armadilhas nos esperam. Primeiro, o cuidado deve estar conectado com o ultraje moral para produzir um comprometimento com a ação. Cuidado sem indignação é apenas mera piedade, uma emoção que não requer ação, somente o sentimento de simpatia. Teóricos críticos devem empenhar-se em cultivar, no coração de seus leitores, tanto a indignação quanto o cuidado. A segunda armadilha está relacionada à primeira. Observar o sofrimento dos outros pode provocar compaixão, mas também pode reforçar a crença em sua inferioridade, da necessidade que teriam de nossa caridade. De outro lado, uma política enraizada em demonstrações de sofrimento ameaça tornar-se "terapêutica", uma política em que o subordinado busca apenas o reconhecimento de suas feridas e um senso de superioridade moral, ao invés da transformação das relações sociais (10). Terceiro, a teoria crítica deve, simultaneamente, nos convencer de que a injustiça está em todo lugar, e de que a mudança é possível. A teoria racial crítica, por exemplo, assume a posição de que o racismo atravessa nossas instituições, crenças e práticas diárias (11). Os teóricos racais críticos rejeitam, então, a visão de que o racismo poderia ser facilmente desenraizado de nossas vidas. No entanto, participar da batalha parece exigir um certo otimismo de que a melhoria é possível. A teoria racial crítica, portanto, caminha, junto com seus leitores, em uma tênue linha entre a esperança e o desespero.

I - RACIOCÍNIO EMOCIONAL

As emoções ocupam cada vez mais o interesse de estudiosos do Direito, bem como o de cientistas. (12) Por muito tempo o Direito desconfiou das emoções, considerando-as como o oposto da racionalidade. (13) Contudo, os pesquisadores começam a compreender que as emoções se encontram enraizadas de maneira profunda na razão. Elas influenciam o que nós percebemos e como percebemos tais coisas. (14) Elas nos auxiliam a avaliar o valor do que percebemos: avaliação emocional é o que queremos dizer quando estabelecemos uma distinção entre "saber" algo e "compreender" ou "apreciar" alguma coisa. Por fim, as emoções são os motores da ação. Elas nos motivam a agir, nos ajudam a fazer e implementar escolhas, bem como orientam os nossos objetivos. A partir dessa perspectiva, as emoções não são opostas ao que chamamos de "razão" ou "racionalidade", mas sim um componente central destas.

Essa abordagem a respeito das emoções tem implicações para os teóricos críticos, os quais buscam identificar e expor aquilo que pode ser chamado de "ideologia". Para os propósitos do presente texto, ideologia se apresenta como um aglomerado de ideias, crenças e associações que, tomadas em conjunto, formam, de maneira consciente ou inconsciente, aquilo que consideramos como o "senso comum". Essa ideologia, nas palavras de Adam Hunt, "fornece uma justificação ou legitimação para os interesses da classe dominante na sociedade através de um apelo a interesses aparentemente superiores e universais de todas as classes". (15) De acordo com E. P. Thompson, o Direito em si é ideológico, na medida em que ele se vincula à ideia de Justiça ao mesmo tempo que mascara, quando necessário, situações de injustiça. (16) Teóricos Críticos do Direito tem descrito isso como a "função legitimadora" do Direito: todos os conflitos jurídicos se apresentam como uma oportunidade para os advogados declararem que o sistema funciona. (17)

Mas nós não precisamos nos aventurar pelos caminhos tortuosos das tentativas de se avaliar a legitimidade do sistema jurídico como um todo para compreender que as regras jurídicas podem sim servir a um propósito ideológico. Quando os seres humanos eram passíveis de serem comprados, vendidos, legados, alugados e hipotecados, a habilidade de fazer tais coisas definiu nossa compreensão acerca de conceitos como propriedade e personalidade. Quando regras jurídicas incorporam a ideologia, elas auxiliam na legitimação de privilégios sob o pretexto de refletir a verdade. Teóricos críticos do Direito estão comprometidos em descobrir e deslegitimar esse tipo de privilégio oculto. Compreender emoção e razão como elementos inextrincáveis nos ajuda a ver que, se a descoberta de que regras, práticas e instituições aparentemente neutras na verdade beneficiam um grupo às custas de outros é algo que enche a leitora de raiva ou indignação, e a inspira a agir, então a teoria jurídica crítica se apresenta como um projeto que é tanto intelectual quanto emocional. (18)

Essa compreensão dos teóricos críticos do Direito como mobilizadores de emoções, (19) e a importância dessa dimensão para a crítica da ideologia, tem uma história. O objetivo de Stowe de fazer com que as suas leitoras "nutrissem sentimentos corretos" surgiu num, e construiu-se com um, desenvolvimento no século XVIII inglês daquilo que Karen Karen Halttunen chama de "cultura da sensibilidade". (20) Americanos do século XIX adotaram essa cultura da sensibilidade, valendo-se dela para desenvolver uma gramática de direitos. Elizabeth Clark, por exemplo, argumenta que histórias descrevendo "o sofrimento dos escravos" se tornaram populares junto aos leitores do Norte dos Estados Unidos da América ao longo da década de 1830, e contribuíram para o desenvolvimento da ideia de que a liberdade face à dor e à coerção era um direito humano fundamental. (21)

No século XX, Eva Illouz argumenta, a...

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