A compensação de danos: entre a responsabilidade civil e a criminal

AutorNelson Rosenvald
Ocupação do AutorPós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre
Páginas361-384
A COMPENSAÇÃO DE DANOS: ENTRE A
RESPONSABILIDADE CIVIL E A CRIMINAL
Nelson Rosenvald
Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário
pela Universidade de Coimbra. Professor Visitante na Oxford University. Doutor e
Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Procurador de Justiça do Ministério Público de
Minas Gerais.
Sumário:1. Introdução. 2. Uma visão comparatista dos veículos compensatórios. 2.1 Espa-
nha – As obscurecidas fronteiras entre a responsabilidade civil e a criminal. 2.2 França – a
parte civil. 2.3 Inglaterra – a completa separação. 2.4. Diretiva 2012/29/EU. 3. A hibridização
da compensação no direito brasileiro. 3.1 O modelo compensatório: entre os juízos cível e
criminal. 3.2 Critérios para a xação do mínimo compensatório. 4. A vítima como parte civil.
5. Conclusão. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Na teoria da responsabilidade jurídica distinguem-se dois tipos de responsabili-
dade: uma que ocorre na relação entre indivíduos e que serve como critério resolutório
de litígios nas questões indenizatórias; outra é a responsabilidade penal, quando o ato
do indivíduo se confronta com as normas de toda a sociedade, surgindo a obrigação de
receber a punição prevista legalmente em virtude de atos delituosos. Apesar de na prática
ambos tentarem regular comportamentos futuros, cuidam-se de sistemas normativos que
possuem distintos conceitos, princípios e procedimentos. Em termos de substâncias se
ambos lidam com a ilicitude, a sanção criminal acarreta um estigma social e seu propósito
primário é o de desestímulo e prevenção geral. A responsabilidade civil também reage a
um ilícito, mas as suas consequências legais enviam uma mensagem diversa.
Com efeito, o oposto a uma penalidade é a compensação. As vezes conhecida como
reparação ou restituição a compensação é geralmente concebida como uma atividade
típica do direito civil, não do direito penal. Porém, quando o direito penal condena
alguém a uma compensação essa ideia é posta em dúvida, desmentindo-se a noção de
que o “enquanto o direito penal proíbe o direito civil precif‌ica”. Some-se a isto o fato
de que quanto mais os procedimentos criminais tendem a distribuir perdas ao invés de
apenas punir, torna-se mais difícil distinguir a responsabilidade penal da civil e se exige
cada vez mais que juízes criminais tenham familiaridade com conceitos de direito civil.
Como qualquer outro sistema jurídico, o direito brasileiro reage de forma bifur-
cada quando uma conduta humana ofende outra pessoa, seja intencionalmente ou por
mera negligência. Oferecemos especif‌icidades quanto aos limites teóricos e práticos que
separam a repressão de comportamentos antijurídicos que ofendem a ordem social e o
direito a uma compensação por parte das vítimas e adotamos um sistema hibrido, que
NELSON ROSENVALD
362
não se encontra nos extremos do isolamento das responsabilidades, ou do apagamento
entre as fronteiras das responsabilidades civil e penal.
Embora seja relativamente simples identif‌icar as clássicas características que
particularizam a responsabilidade criminal – o maior papel da intenção do agente, a
relativa desimportância do fato da vida ter sofrido um dano e a especial característica do
encarceramento como sanção –, ultimamente nada disso parece ser decisivo em separar
as duas responsabilidades.
A expansão do uso de regras de direito civil dentro de um procedimento criminal
corresponde a uma percepção do aumento do signif‌icado do papel da vítima para o direito
penal. Daí a importância do diálogo entre ‘civilistas’ e ‘penalistas’ brasileiros para que o
sistema possa atuar com coerência e harmonia. Infelizmente, o conf‌inamento é próprio
da cultura legal do Brasil. O estudo das duas disciplinas ocorra sem qualquer contato
durante o curso superior e que após a graduação o prof‌issional tenha que escolher por
uma especialização em direito privado ou público, ampliando o fosso que separa essas
áreas do conhecimento jurídico. Isso é compreensível por força da tradição, mas lamen-
tável em termos de uma visão unitária do ordenamento jurídico presidido pelos direitos
fundamentais que se encontram na Constituição de 1988 e pela própria complexidade
e dinamismo das relações sociais que não mais permitem a sobrevivência de esquemas
dicotômicos puros.
Nosso objetivo neste artigo não é o de explorar a importante questão substantiva
da absorção da função punitiva – originária do direito penal – pela justiça cível, pela via
dos punitive ou exemplary damages.1 Pretendemos justamente traçar o caminho inverso:
compreender, procedimentalmente, em nível de direito comparado, a racionalidade dos
veículos compensatórios de danos utilizados pela justiça criminal em substituição ou
concorrência com a justiça cível. A partir daí poderemos indicar onde o direito brasileiro
se situa dentre tais modelos e de que forma este balanceamento indenizatório é efetivado
em nossa ordem jurídica.
Estamos em meio a uma reprivatização do direito penal? este texto é um convite a
um raciocínio jurídico que englobe as responsabilidades civil e penal de forma coerente
e consistente. É sabido que o peso de determinados princípios oscila entre uma e outra
responsabilidade. No binômio justiça/certeza, criminalistas preferem o segundo ao pri-
meiro, enquanto civilistas pendem para o primeiro. Investigar o manuseio do remédio
compensatório “extramuros” é um bom ponto de partida para identif‌icarmos os paralelos
entre as responsabilidades
2. UMA VISÃO COMPARATISTA DOS VEÍCULOS COMPENSATÓRIOS
Todos os sistemas jurídicos compartilham um desaf‌io comum: como reagir diante
de um comportamento humano danoso? Qual é a linha que se deve estabelecer entre a
repressão de condutas antissociais que ameaçam a ordem social e a compensação das
1. Para maiores subsídios sobre a sanção punitiva extracontratual, remetemos o leitor à nossa obra: as funções da
responsabilidade civil, 3. Ed, Ed. Saraiva.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT