Competência, conexão e litispendência na lei de ação civil pública

AutorMarcelo Abelha Rodrigues
Páginas245-292
CAPÍTULO 8
COMPETÊNCIA, CONEXÃO E LITISPENDÊNCIA
NA LEI DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA
1. A COMPETÊNCIA NA LEI DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA
1.1 Introito
Na medida em que passou-se a enxergar o processo como método estatal de
concretização dos direitos fundamentais1, tornou-se imperioso revisitar seus institu-
tos clássicos que nasceram e se desenvolveram sob uma matiz da máxima segurança
traçada pelo liberalismo com, limitação do poder do juiz, culto à forma e ainda com
rigidez legislativa2.
Praticamente todos os institutos clássicos do processo vem passando por esta
transformação pós constituição de 19883 – da jurisdição4 à coisa julgada5 – fruto dessa
nova perspectiva com que deve-se enxergar o direito e a sua proteção. Demorou muito
para que a doutrina6 começasse a enxergar a necessidade de dar ao tema da competên-
cia o mesmo dinamismo e f‌lexibilização que já havia sido feito às condições da ação e
pressupostos processuais7, ao procedimento8, à defesa9, às convenções processuais10, às
1. SARLET, Ingo Wolfgang. Ef‌icácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva cons-
titucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.; SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme;
MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Ed. RT, 2012.; OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Processo
Civil na Perspectiva dos Direitos Fundamentais. In: Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do
Rio Grande do Sul. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/ppgdir/article/view/49187. Acesso em: 10.07.2020.
2. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Ed. RT, 2004.; SILVA, Ovídio A. Baptista da;
GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Ed. RT, 2002.
3. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional
no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7547/neoconstitucio-
nalismoeconstitucionalizacao-do-direito. Acesso em: 20.07.2020.
4. MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito
aos precedentes no Brasil. Revista de Processo, n. 172, São Paulo: Ed. RT, p. 175-232.
5. CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas. 3. ed. Salvador: JusPodivm. 2019.; THEODORO JR., Hum-
berto; FARIA, Juliana Cordeiro.; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Coisa julgada inconstitucional. 2.ed. Rio de Janeiro: América
Jurídica, 2003.
6. Por todos ver CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e ef‌iciência processual: f‌lexibilização, delegação e coordenação de com-
petências no processo civil. Tese apresentada no concurso de provas e títulos para provimento do cargo de Professor Titular.
Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2017.
7. DIDIER, Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. São Paulo, Saraiva, 2005.
8. GAJARDONI, Fernando Fonseca. Flexibilização Procedimental: um novo enfoque para o estudo do procedimento no direito
processual. São Paulo: Atlas. 2008.; DIDIER JR., Fredie. Sobre dois importantes (e esquecidos) princípios do processo: adequação
e adaptabilidade do procedimento. In: Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: Gênesis, 2001, n. 21.
9. SICA, Heitor Vitor Mendonça. O direito de defesa no processo civil brasileiro. São Paulo, Atlas, 2011.
10. CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Limites da liberdade processual. Santa Catarina: Foco Editora. 2019.
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AÇÃO CIVIL PÚBLICA E MEIO AMBIENTE • MARCELO ABELHA RODRIGUES
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nulidades11, aos pedido e a causa de pedir12, às partes e intervenções de terceiros13, aos
requisitos formais dos recursos14, ao ônus da prova, às tutelas provisórias15, às medidas
executivas16 etc.
Quando se pensa em dar um olhar menos rígido para o tema da competência,
naturalmente emerge uma reação contrária conservadora contra a redução de poder
(por quem pode perdê-lo), contra a quebra da segurança e da possibilidade de ofensa à
isonomia processual inclusive sob a perspectiva do dever de isenção do julgador. Fle-
xibilizar a competência implicaria em trazer uma insegurança?
Não por acaso dizia Carnelutti, sabiamente que “a lei está; o fato move-se. A lei é um estado; o fato, um
desenvolvimento. A lei é o presente; o fato não pode ser mais do que passado ou futuro. A lei está fora do
tempo; o fato está dentro”.17
O que tem se observado é que de forma muito tímida, aqui e acolá permite-se evoluir
no campo da f‌lexibilização da competência, em situações excepcionais e principalmente
diante da necessidade que o caso concreto apresenta ao aplicador do direito.
Há situações, especialmente nos conf‌litos ambientais de grande extensão, que ou
se encontra uma forma de f‌lexibilizar a competência – e essas possibilidades existem no
CPC – ou se reconhece a impossibilidade de prestar uma justiça tempestiva, ef‌iciente
e efetiva.
O normal ainda é, portanto, pensar no tema da competência no seu modo estático,
sob as vestes de um modelo de regras rígidas e abstratamente previstas pelo legislador,
com pressupostos de incidência objetivos e com quase nenhum espaço para que que se
modif‌icasse os critérios do texto legal, tal como se este roteiro fosse a única forma de
garantir a preservação do juiz natural.
O princípio do juiz natural deve ser enxergado sob dois prismas: um primeiro formal que pode ser visto sob
um viés negativo, referente à vedação de tribunais criados excepcionalmente para julgar determinado caso,
ou seja, de exceção e constituídos após o que será julgado e outro material atinente seu conteúdo abrange e
outro positivo que signica um direito de todos de ser julgado por uma autoridade competente. O segundo
prisma, material, é o que legitima o juiz que tenha independência e seja isento, imparcial.
Veremos que esta rigidez, em determinados casos, pode ser fator de inef‌iciência
e inefetividade da tutela jurisdicional, para não falar em genuíno limitador do acesso à
justiça.
Assim, passemos à análise clássica da competência na Lei de Ação Civil Pública.
No item 3.5 voltaremos ao tema da f‌lexibilização da competência nas ações coletivas.
11. BEDAQUE, Jose Roberto dos Santos. Nulidade processual e instrumentalidade do processo. In: Revista de Processo. São Paulo:
Ed. RT, 1990, outubro/dezembro, ano 15, n. 60.
12. RODRIGUES, Marco António dos Santos. A Modif‌icação do Pedido e da Causa de Pedir, GZ Editora, Rio de Janeiro, 2014; MES-
QUITA, Luís Miguel Andrade. A Flexibilização do Princípio do Pedido à Luz do Moderno Processo Civil», Revista de Legislação
e Jurisprudência, novembro – dezembro 2013, Ano 143º, n. 3983
13. TEMER, Sof‌ia. Participação no Processo Civil: Repensando Litisconsórcio, Intervenção de Terceiros e Outras Formas de Atuação.
Salvador: JusPodivm. 2020.
14. JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. 8. ed. São Paulo: Ed. RT, 2017.
15. SILVA, Ovídio Baptista da. SILVA. Curso de Processo Civil: processo cautelar (tutela de urgência).3. ed. rev. São Paulo: Ed. RT,
2000.
16. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de execução civil. 7. ed. São Paulo: Gen. 2019.
17. CARNELUTTI, Francesco. A arte do direito. Campinas: Bookseller, 2000, p. 35.
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CAPítUlo 8 • ComPEtêNCIA, CoNExão E lItISPENdêNCIA NA lEI dE Ação CIVIl PúblICA
1.2 O modelo estático previsto no procedimento coletivo
O tema da competência ganha relevo em sede da Lei n. 7.347/85, porque o legis-
lador tardio emendou o referido diploma com algumas peculiaridades que o tornam
um sistema exótico no trato do tema relativo à coisa julgada, jurisdição e competência,
como será visto alhures.
Torna-se uma tarefa mais fácil conceituar competência utilizando o conceito de
jurisdição. A comparação entre os dois temas permite a um só tempo identif‌icar o que
é a competência e o que é a jurisdição, mas muito mais que isso (que soa até óbvio),
serve ainda para descobrir que são peças distintas, porém dependentes, de um mesmo
quebra-cabeça.
Utilizando-nos da perfeita metáfora empregada por José Carlos Barbosa Moreira
para isolar conceitualmente um instituto do outro, jurisdição da competência, tem-se que
“o poder inerente à função jurisdicional está presente em todos os órgãos, larga ou estreita que seja a faixa
da respectiva competência, e guarda em todos eles características essenciais idênticas. As lâmpadas podem
brilhar com desigual intensidade, iluminar maior ou menor espaço, mas a corrente elétrica que alimenta os
vários pontos de luz é sempre a mesma. Não inui aí sequer a forma – unitária ou federada – que se adote para
o Estado: nas federações, como nos Estados unitários, o Poder Judiciário, enquanto poder estatal, é uno”.18
Assim, se a jurisdição é o poder (e vistos sob outro ângulo o dever e a função tam-
bém), então a competência é a parte, o limite, a fatia desse poder que é entregue aos
órgãos jurisdicionais. Essa “entrega”, “distribuição” de poder se faz mediante critérios
estabelecidos pelo legislador. Ao estabelecer essa “distribuição” do poder, o legislador o
faz mediante critérios que politicamente julgou relevante seguir. E quando assim o faz,
acaba por estabelecer limites de atuação desse poder. Esses critérios estão relacionados
com a pessoa, com a matéria, com o território (geográf‌ico) etc.
Não obstante o CPC tenha sido até cansativo em matéria de competência dos órgãos jurisdicionais, su-
plementando subsidiariamente as regras constitucionais acerca do tema, ainda assim não poderia prever
todas as hipóteses e situações que são variáveis de Estado para Estado. E justamente por isso que o tema da
competência se vê presente em leis estaduais de organização judiciária e até mesmo nos regimentos internos
dos tribunais, por expressa permissão constitucional (art. 96, I, da CF/88).
Já a lei de ação civil pública, muito embora deva se socorrer do CPC (art. 15), não
f‌icou à míngua de dispositivos acerca do tema. Assim é o que se vê no art. 2º:
Art. 2º As ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá
competência funcional para julgar a causa.
Parágrafo único. A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente
intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto.”
Originariamente o texto contido no caput do dispositivo constituía a única regra
sobre a competência prevista na Lei n. 7.347/85. Depois de sucessivas alterações, idas
e vindas em medidas provisórias, perpetrou-se, após a Emenda Constitucional n. 32, a
18. José Carlos Barbosa Moreira. Direito aplicado II. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 48.
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