A competência dos estados membros e do distrito federal para a instituição e a cobrança do IPVA

AutorLuísa Cristina Miranda Carneiro
Ocupação do AutorMestre em Direito Tributário pela PUC-SP
Páginas101-178
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A COMPETÊNCIA DOS ESTADOS MEMBROS E
DO DISTRITO FEDERAL PARA A INSTITUIÇÃO
E A COBRANÇA DO IPVA
Feitas as considerações sobre alguns dos princípios fun-
dantes do Estado brasileiro e assentado o conceito de compe-
tência tributária com o qual trabalharemos, ingressaremos no
objeto central desta pesquisa: o estudo de cada um dos aspec-
tos que norteiam a competência dos Estados-membros e do
Distrito Federal para instituição e cobrança do IPVA.
3.1 O histórico da tributação da propriedade de veícu-
los automotores no Brasil
Analisando a história da tributação da propriedade de
veículos automotores no Brasil, constata-se que, no seu sur-
gimento, houve uma confusão do legislador com relação à es-
pécie tributária (imposto ou taxa) a ser aplicada nesse caso
concreto.
Sob a égide da Constituição brasileira de 1967, o Decre-
to-lei nº 397/68 instituiu a então intitulada “Taxa Rodoviária
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Federal”, que incidia sobre “todo veículo automotor que tran-
sitar no território nacional”.170
Para o cálculo da referida taxa, era necessário aplicar
a alíquota de 0,5% sobre o valor do veículo, que era fixado
anualmente em tabela publicada pelo Departamento Nacio-
nal de Estradas e Rodagem.171
Cabe ressaltar que o valor arrecadado com a aludida taxa
era inteiramente afetado ao “custeio de projetos e obras de
conservação e restauração de estradas de rodagem federal”.172
Da análise da estrutura da Taxa Rodoviária Federal, ve-
rifica-se que sua hipótese de incidência, sua base de cálculo e
sua finalidade eram desconexas. Ora, o fato apto a dar ensejo
à tributação era a circulação de veículo motorizado no terri-
tório nacional, a base de cálculo, o valor do veículo, a contra-
prestação estatal e a conservação de estradas, três realidades
distintas, que não se relacionavam.
Sabe-se que a base de cálculo possui a função de confir-
mar ou infirmar o correto elemento material do antecedente
normativo, uma vez que é ela que faz a mensuração do “fato
gerador”. Exige-se, necessariamente, uma correlação lógica
entre a base de cálculo e a hipótese de incidência, para que o
170. “Art. 1º A taxa rodoviária federal será devida por todo veículo motorizado que
transitar no território nacional e o produto de sua arrecadação será integralmente
aplicado no custeio de projetos e obras de conservação e restauração de estradas de
rodagem federais” (BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei nº 368, de 19 de
dezembro de 1968. Dispõe sobre Efeitos de Débitos Salariais e dá outras providên-
cias. Disponível em: .br/ccivil_03/decreto-lei/del0368.
htm>. Acesso em: 14 fev. 2014).
171. “Art. 2º A taxa rodoviária federal será cobrada na base de 0,5% (meio por cen-
to) sôbre o valor do veículo, fixado anualmente em tabela publicada pelo Departa-
mento Nacional de Estradas de Rodagem” (BRASIL. Presidência da República.
Decreto-Lei nº 397, de 30 de dezembro de 1968. Cria a Taxa Rodoviária Federal, desti-
nada à conservação de estradas de rodagem. Disponível em:
gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0397.htm>. Acesso em: 15 fev. 2014).
172. BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei nº 368, de 19 de dezembro de
1968. Dispõe sobre Efeitos de Débitos Salariais e dá outras providências. Disponível
em: .br/ccivil_03/decreto-lei/del0368.htm>. Acesso em: 14
fev. 2014.
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contribuinte seja tributado nos termos da Constituição, o que
não ocorreu com a Taxa Rodoviária Federal, uma vez que o
valor dos veículos automotores não mede a grandeza do custo
de conservação de rodovias decorrente da circulação daque-
les no território nacional.
Além disso, no caso em comento, o serviço financiado pela
taxa era indivisível (conservação de rodovias), caracterizan-
do, disfarçadamente, um imposto finalístico. Tais caracterís-
ticas, inclusive, já eram contrárias às restrições impostas pela
Constituição de 1967 (art. 18, inciso I173), que determinavam o
caráter vinculado das taxas à prestação de serviços públicos
específicos e divisíveis ou relacionados ao poder de polícia.
Para piorar o cenário, a despeito da existência da Taxa
Rodoviária Federal, diversos Estados e Municípios instituí-
ram suas próprias taxas com o intuito de tributar a proprieda-
de e a circulação de veículos automotores, fazendo-o no pre-
tenso exercício de sua competência tributária para instituir
taxas (arts. 19, II da CF/67, e, posteriormente, 18, I, do mesmo
diploma, com a redação dada pela EC 01/69).
A indesejável proliferação das taxas e a múltipla tribu-
tação de um mesmo fato imponível, (propriedade de veículos
automotores, considerando a base de cálculo eleita) no Brasil,
foi resolvida com a publicação do Decreto-lei nº 999/69, que
instituiu a Taxa Rodoviária Única (TRU).
A TRU era devida anualmente por todos os proprietários
de veículos automotores registrados e licenciados em todo o
território nacional.174Sua arrecadação era feita pelos Estados,
173.
“Art. 18. Além dos impostos previstos nesta Constituição, compete à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir: I - taxas, arrecadadas em razão
do exercício do poder de polícia ou pela utilização efetiva ou potencial de serviços pú-
blicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição;
(...)” (BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1967. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17.10.1969). Dispo-
nível em: .br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67EMC69.
htm>. Acesso em: 14 fev. 2014).
174. “Art. 1º É instituída a Taxa Rodoviária Única, devida pelos proprietários de
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Distrito Federal e Territórios, sendo que, do valor arrecada-
do, 40% era repassado ao DNER e os 60% restantes eram
rateados entre os Estados e seus Municípios, em atenção ao
total arrecadado e ao número de veículos licenciados em cada
território.
Todavia, os vícios da antiga Taxa Rodoviária Federal (in-
compatibilidade entre a base de cálculo e a hipótese de inci-
dência e indivisibilidade do serviço prestado) permaneceram
com a Taxa Rodoviária Única. Assim, percebendo o legislador
o equívoco quanto à espécie tributária utilizada, ainda sob a
égide da Constituição de 1967, foi criado o Imposto sobre a
Propriedade de Veículos Automotores, com a Emenda Cons-
titucional nº 27, de 28 de novembro de 1985. Referida Emen-
da adicionou o inciso III ao art. 23 da CF/67, com a seguinte
redação:
Art. 23. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir im-
postos sobre:
(…)
III – Propriedade de veículos automotores, vedada a cobrança de
impostos ou taxas incidentes sobre a utilização de veículos.
Desde a criação do IPVA, a competência para sua insti-
tuição e cobrança foi conferida aos Estados e Distrito Federal,
que, desde o início, publicaram suas leis contendo as normas
gerais e específicas de incidência do imposto.
Com o advento da Constituição de 1988, houve algumas
alterações na redação do dispositivo constitucional relativo ao
imposto, restando a competência tributária relativa ao IPVA,
consignada da seguinte forma:
veículos automotores registrados e licenciados em todo território nacional. § 1º A
referida taxa, que será cobrada prèviamente ao registro do veículo ou à renovação
anual da licença para circular, será o único tributo incidente sôbre tal fato gerador”
(BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei nº 999, de 21 de outubro de 1969.
Institui Taxa Rodoviária Única, incidente sôbre o registro e licenciamento de veícu-
los e dá outras providências. Disponível em: .br/ccivil_03/
decreto-lei/1965-1988/Del0999.htm>. Acesso em: 15 fev. 2014).
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Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir im-
postos sobre:
(…)
III - propriedade de veículos automotores.
(…)
§ 6º O imposto previsto no inciso III:
I - terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal;
II - poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo e
utilização.
Comparando os dois dispositivos em análise (art. 23, III,
da CF/67 com art. 155, III, da CF/88) percebe-se que eles em
muito assemelham-se, apesar de o legislador de 1988 ter ex-
cluído a expressa vedação à cobrança de impostos ou taxas
incidentes sobre a utilização de veículos.
Isso não significa, todavia, que tal vedação não exista com
a nova redação –não há competência constitucionalmente
conferida para tributar a utilização de veículos, consequente-
mente, há vedação. Na essência, ambos os dispositivos expli-
citam a mesma materialidade tributária: ser proprietário de
veículo automotor.
A partir desse contexto, é a leitura do texto constitucional
vigente que deve conduzir à investigação científica do tributo
ora em análise, pois que revelam, explicita e implicitamente,
os critérios balizadores da competência tributária atribuída
aos Estados-membros e ao Distrito Federal.
3.2 A inexistência de lei complementar disciplinando o
IPVA
Vimos que o IPVA foi criado sob a égide da Constituição da
República de 1967, quando já existia a exigência de lei comple-
mentar para dispor sobre normas gerais de Direito Tributário.175
175. Embora existam diferentes correntes doutrinárias sobre o alcance das normas
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Cabe ressaltar, contudo, que o Código Tributário Na-
cional (Lei nº 5.172/66), recepcionado pela Constituição de
1988 como lei complementar ratione materiae,176 não discipli-
na o IPVA, já que sua edição é anterior à criação do referido
imposto.
Não obstante a promulgação da Constituição Federal de
1988 e a exigência, em seu art. 146, III, “a”,177 de lei comple-
mentar para tratar das regras gerais em matéria de legisla-
ção tributária, até hoje não foi publicada tal lei em relação
ao IPVA, permanecendo a existência, unicamente, das leis
estaduais e distritais que definem, a critério do legislador es-
tadual, todos os elementos do imposto que incidirá dentro do
âmbito de competência de cada Estado-membro.
Além disso, também estatui o art. 146 da Carta Maior
que é de competência da Lei Complementar dispor sobre con-
flitos de competência em matéria tributária, e, como será visto
adiante, o IPVA vem dando ensejo a diversos conflitos dessa
natureza, em especial com relação ao seu critério espacial e
sujeito ativo.
Muito já se discutiu a respeito da validade da cobrança
do IPVA pelos Estados e Distrito Federal sem a existência de
uma lei complementar definidora de seus critérios essenciais,
após o advento da Constituição de 1988.
gerais de Direito Tributário, conforme explicado nos itens 2.10.3 e 2.10.4.
176. Apesar de ser formalmente lei ordinária, o Código Tributário Nacional versa
sobre matérias reservadas pela Constituição Federal à lei complementar, razão pela
qual entende-se que foi recepcionado pela atual Carta Magna com o status de lei
complementar ratione materiae.
177. “Art. 146. Cabe à lei complementar: (...) III - estabelecer normas gerais em ma-
téria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas
espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a
dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; (…)” (BRASIL.
Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Disponível em: .br/ccivil_03/constituicao/constituicao.
htm>. Acesso em: 10 fev. 2014).
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Tal discussão mereceu a atenção do Supremo Tribunal
Federal, que decidiu pela constitucionalidade da cobrança,
em razão do disposto no art. 24, § 3º, da Carta Magna, que
trata da competência legislativa plena dos Estados e Distrito
Federal, na hipótese de inexistência de normas gerais edita-
das pela União e, ainda, em decorrência do § 3º do art. 34 do
ADCT,178 que autorizou a edição, pelos Estados, das leis neces -
sárias à aplicação do sistema tributário nacional.
Como exemplo, cita-se:
IMPOSTO SOBRE PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMO-
TORES - DISCIPLINA. Mostra-se constitucional a disciplina do
Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores mediante
norma local. Deixando a União de editar normas gerais, exerce
a unidade da federação a competência legislativa plena – § 3º do
artigo 24, do corpo permanente da Carta de 1988 –, sendo que,
com a entrada em vigor do sistema tributário nacional, abriu-
se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, a
via da edição de leis necessárias à respectiva aplicação - § 3º do
artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da
Carta de 1988.
179
Dessa forma, o entendimento do Supremo Tribunal Fe-
deral, no caso do IPVA, foi no sentido de que a inação do le-
gislador nacional não impede os Estados-membros de exerce-
rem sua competência tributária.
178. “Art. 34. (...) § 3º Promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema
tributário nacional nela previsto.” Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
179. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 167.777-SP.
Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 04 mar. 1997. Órgão Julgador. Segun-
da Turma. Publicação: DJ, 09 maio 1997. Acórdão na esteira de outros julgados que
retratam o entendimento já pacífico do STF sobre o assunto: BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 191.703-SP. Re-
latora: Ministra Néri da Silveira. Julgamento: 19 mar. 2001. Órgão Julgador: Segun-
da Turma. Publicação: DJ, 12 abr. 2002; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agra-
vo Regimental no Agravo de Instrumento nº 279.645-MG. Relator: Ministro Moreira
Alves. Julgamento: 05 dez. 2000. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ,
02 mar. 2001.
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De fato, poderia considerar-se um atentado ao princípio
federativo impedir que os Estados-membros instituíssem um
imposto que foi a eles conferido na repartição das competên-
cias tributárias feita pelas Constituições brasileiras de 1967
(após a EC nº 27/85) e 1988, em decorrência única e exclusiva
da inércia do Poder Legislativo nacional por mais de trinta
anos.
Não se pode negar, todavia, que o crescimento, nos dias
atuais, das discrepâncias dos ordenamentos estaduais (e do
Distrito Federal) e a existência de conflitos de competência
entre os próprios Estados demonstram a carência de uma lei
complementar nacional, no sistema tributário brasileiro, a ba-
lizar a relativa e limitada discricionariedade dos legisladores
estaduais na instituição e cobrança do IPVA.
A par disso, há de lembrar-se que exercer a “competência
legislativa plena”, conforme autorizado pelo Supremo Tribu-
nal Federal, é exercer a competência nos moldes como outor-
gado pela Constituição e dentro dos seus limites.
O fato de ter sido reconhecida a competência dos Estados
e do Distrito Federal para instituir e cobrar o imposto sobre a
propriedade de veículos automotores, mesmo diante da ine-
xistência da lei complementar, significa maiores esforços do
intérprete.
Os parâmetros para instituição e cobrança do IPVA estão
postos no sistema, sendo necessária a interpretação do con-
junto de regras que compõem o ordenamento jurídico, reali-
zando-se as devidas relações de coordenação e subordinação.
Por essa razão, passaremos a analisar cada um dos as-
pectos da norma geral e abstrata relativa ao IPVA, conforme
balizas constitucionais, a fim de identificar qual é essa “com-
petência legislativa plena” conferida às unidades federadas.
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3.3 A legislação de trânsito e o IPVA
Como é de sabença, o Direito é uno. Isto é, nenhuma dis-
ciplina integrante do sistema é inteiramente autônoma, des-
vinculada das demais.180
O Direito Tributário constantemente refere-se a institu-
tos de outros ramos do Direito para compor as estruturas das
normas de natureza tributária, inclusive para delimitar os as-
pectos das regras-matrizes de incidência dos tributos.
Trata-se do fenômeno da intertextualidade, pelo qual a
criação de um texto é dependente de outros textos, sendo que
os intérpretes vão fixando conceitos, conforme sua incorpora-
ção ao sistema linguístico.181
No Direito, diversos conceitos são utilizados e definidos
em seus diferentes ramos (que fazem parte do todo que é o sis-
tema jurídico), de acordo com o que cada um pretende regu-
lar.182 Aqui, cumpre ressaltar os ditames da Lei Complemen-
tar nº 95/98, que demonstram a relação de intertextualidade
entre os diversos ramos do Direito, conforme consignado em
seu art. 11: “Art. 11. As disposições normativas serão redigidas
com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse
180. Como assinala Alfredo Augusto Becker, “o direito forma um único sistema,
onde os conceitos jurídicos têm o mesmo significado, salvo se a lei tiver expressa-
mente alterado tais conceitos, para efeito de certo setor do direito; assim, exemplifi-
ca o eminente autor, não há um “marido” ou uma “hipoteca” no Direito Tributário
diferentes do “marido” e da “hipoteca” do Direito Civil” (BECKER, Alfredo Augus-
to. Op. cit., p. 110).
181. A respeito da intertextualidade, observa Priscila de Souza: “A construção de
um texto sempre será consequência da soma de vários outros textos, de modo que o
dialogismo se apresenta entre os discursos, mesmo que o locutor seja o mesmo nos
dois textos”. Sobre esse fenômeno no direito, a Autora complementa: “a intertex-
tualidade pode ser tida como um cálculo de relações que, no direito, é determinada
pelo próprio sistema” (SOUZA, Priscila de. Op. cit., p. 93-120).
182. (BRASIL. Presidência da República. Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro
de 1998. Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis,
conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabe-
lece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona. Disponível em:
.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp95.htm>. Acesso em: 16 fev. 2014).
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propósito, as seguintes normas: I - para a obtenção de clareza:
a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum,
salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese
em que se empregará a nomenclatura própria da área em que
se esteja legislando; (…)”
Para a presente pesquisa, a legislação de trânsito ganha
relevância, pois delimita critérios para fixação do local de re-
gistro e licenciamento dos veículos, tema abarcado pela Cons-
tituição Federal183 ao prescrever que cinquenta por cento do
valor arrecadado a título de IPVA deve ser repassado ao Mu-
nicípio em que o automóvel esteja registrado e licenciado.
Adentrando no tema, verifica-se que a Constituição Fede-
ral de 1988, em seu art. 22, inciso XI, confere à União a com-
petência para legislar sobre trânsito e transporte. O parágrafo
único do referido dispositivo estabelece, por sua vez, que “Lei
complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre
questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”.
Inexistindo, todavia, lei complementar que autorize os
Estados a legislar sobre questões específicas, como ocorre em
relação às matérias de trânsito e transporte, a competência
remanesce exclusiva da União.
A Carta Maior prevê, também, a competência comple-
mentar comum da própria União, dos Estados, Municípios e
Distrito Federal para estabelecer e implantar políticas de edu-
cação para segurança no trânsito (art. 23, XII).
De outra parte, quem organiza o trânsito nas vias muni-
cipais, estabelecendo regras de circulação, preferências, ve-
locidade, estacionamentos e assim por diante, é o Município;
já nas vias e rodovias estaduais ou que interligam vários Mu-
nicípios, tem-se a competência dos Estados e, nas rodovias
federais, da União.
183. Art. 158, III, da CF. (BRASIL. Presidência da República. Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: .planalto.gov.br/cci-
vil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014).
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A esse respeito, explica Hely Lopes Meirelles:
De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobre
os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-mem-
bro compete regular e prover os aspectos regionais e a circula-
ção intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a or-
denação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art.
30, I e V).
184
Portanto, em outras matérias relacionadas ao trânsito e
transporte, senão aquelas atinentes às políticas de educação
no trânsito e às de circulação local ou regional, a competência
é da União. Esta, exercendo sua competência, editou a Lei
(CTB), o qual, logo em seu artigo primeiro, determina que “O
trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território
nacional abertas à circulação, rege-se por este código”.
Assim, instituiu-se o “Sistema Nacional de Trânsito”,
que, nos termos do art. 5º do mesmo diploma legal, é o con-
junto de órgãos e entidades que
(…) tem por finalidade o exercício das atividades de planeja-
mento, administração, normatização, pesquisa, registro e licen-
ciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de
condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário,
policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos
e aplicação de penalidades.
Tais assuntos, portanto, estão no âmbito de competên-
cia legislativa da União, exercida por meio da Lei nº 9.503/97
(CTB).
O Supremo Tribunal Federal já decidiu, por diversas ve-
zes, declarando a inconstitucionalidade de normas expedidas
por Estados da Federação, que objetivavam disciplinar maté-
rias relacionadas ao trânsito e ao transporte.185.
184. MEIRELLES, Hely Lopes citado por RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Có-
digo de Trânsito Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 34.
185.
Acerca da competência exclusiva da União para legislar sobre o trânsito existem
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Nesse sentido, vale destacar, a título ilustrativo, a decisão
proferida, pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI
nº 2.407-8, in verbis:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI CATA-
RINENSE N. 11.223, DE 17 DE NOVEMBRO DE 1999. ARTS. 5º,
INC. XII, 22, INC. XI, E 23, INC. XII, DA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA. (…)
4. O art. 3º da Lei catarinense n. 11.223/99 traz matéria de cunho
administrativo-penal, contida na esfera de competência exclusi-
va da União, prevista no parágrafo único do art. 22 da Constitui-
ção da República. Diante da inexistência de lei complementar da
União que autorize ‘os Estados a legislar sobre questões especí-
ficas das matérias relacionadas neste artigo’, não é válida a nor-
ma segundo a qual a entidade federada determina o bloqueio do
licenciamento de veículos de proprietários, tal como se dá na Lei
catarinense n. 11.223/99. 5. Ação direta de inconstitucionalidade
julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucio-
nalidade do art. 3º da Lei catarinense n. 11.223/99 e confirmar
os termos da medida cautelar deferida com os efeitos retroativos
desde o nascimento da norma. (…).
186
Sendo as regras atinentes ao registro e licenciamento de
veículos importantes para delimitar o ente competente para
cobrança do IPVA, cabe-nos analisá-las.
Nesse aspecto, o Código de Trânsito brasileiro possui
dois capítulos próprios para disciplinar o tema (Capítulo XI
– Do registro de veículos e Capítulo XII – Do Licenciamento),
estabelecendo, inicialmente, que todo veículo automotor deve
ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado
diversos julgados do Supremo Tribunal Federal: ADI 2064 MC, DJ 05-11-1999 PP-
00002; ADI 2101, DJ 05-10-2001 PP-00039; ADI 2432, DJ 26-08-2005 PP-00005; ADI
2432 MC, DJ 21-09-2001 PP-00042; ADI 2582, DJ 06-06-2003 PP-00300; ADI 2644, DJ
29-08-2003 PP-00017; ADI 2814, DJ 05-12-2003 PP-00018; e ADI 3444, DJ 03-02-2006
PP-00011. .Disponível em: .stf.jus.br>. Acesso em 21 mai. 2016.
186. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
2.407-8. Relatora: Ministra Carmen Lúcia. Julgamento: 31 maio 2007. Órgão Julga-
dor: Tribunal Pleno. Publicação: DJ, 29 jun. 2007.
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ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residên-
cia de seu proprietário.187
A concessão do registro do veículo, pela autoridade com-
petente, é documentada com a expedição dos respectivos cer-
tificados (denominados CRV e CRLV), sendo que é obrigató-
ria a expedição de um novo certificado de registro sempre que
for transferida a propriedade do automóvel ou seu proprietá-
rio alterar o Município de seu domicílio ou residência188 (tudo
para possibilitar o cumprimento do art. 158, III, CF).
Interessam a esse estudo, também, os dispositivos do re-
ferido Código que proíbem a emissão dos certificados de re-
gistro e de licenciamento dos veículos em caso de existência
de débitos de natureza tributária189 e não tributária, verdadei-
ras sanções políticas, como trataremos em tópico próprio.
Além disso, cabe pontuar que os conflitos federativos en-
volvendo a ambição pelo IPVA, por parte das pessoas políti-
cas (no caso, Estados, Distrito Federal e também Municípios),
têm levado esses entes a ingressar na competência reservada
à União e legislar sobre questões afetas ao trânsito.
187. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Ins-
titui o Código de Trânsito Brasileiro. Art. 120. Disponível em:
gov.br/ccivil_03/leis/l9503.htm>. Acesso em: 23 mar. 2014.
188.
“Art. 123. Será obrigatória a expedição de novo Certificado de Registro de Veí-
culo quando: I - for transferida a propriedade; II - o proprietário mudar o Município
de domicílio ou residência; (…)” (BRASIL. Departamento Nacional de Trânsito.
Conselho Nacional de Trânsito. Ministério das Cidades. Código de trânsito brasileiro
e legislação complementar em vigor. Disponível em: .denatran.gov.br/pu-
blicacoes/download/ctb_e_legislacao_complementar.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2014).
189.
“Art. 128. Não será expedido novo Certificado de Registro de Veículo enquanto hou-
ver débitos fiscais e de multas de trânsito e ambientais, vinculadas ao veículo, indepen-
dentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas.” “Art. 131. O Certificado de
Licenciamento Anual será expedido ao veículo licenciado, vinculado ao Certificado de
Registro, no modelo e especificações estabelecidos pelo CONTRAN.(…) § 2º O veículo
somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos,
encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente
da responsabilidade pelas infrações cometidas” (BRASIL. Departamento Nacional de
Trânsito. Conselho Nacional de Trânsito. Ministério das Cidades. Código de trânsito bra-
sileiro e legislação complementar em vigor. Disponível em: .denatran.gov.br/
publicacoes/download/ctb_e_legislacao_complementar.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2014).
IPVA.indb 113 06/11/2016 22:38:12
114
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Como exemplo de Município atuando no âmbito de com-
petência exclusiva da União Federal e legislando sobre ma-
téria de trânsito e transporte (fixação de local de registro e
licenciamento de veículos), cita-se a Lei nº 3.958/2005, do Mu-
nicípio de Limeira-SP, que estabeleceu a obrigatoriedade de
as empresas locadoras de veículos registrarem os automóveis
objeto de locação neste Município em seu território, como re-
quisito para concessão de alvará de funcionamento.190
De forma semelhante procederam os Estados da Paraí-
ba191 e Mato Grosso.192
Tais prescrições, pelos Estados e Municípios, com o níti-
do intuito de atrair para si a arrecadação relativa ao IPVA, re-
presentam invasão à competência exclusiva da União Federal
para legislar sobre trânsito e transporte193 que, como visto, já
190. “Art. 2º. Para expedição de alvará de funcionamento inicial ou sua renovação
anual, bem como o exercício das atividades em Limeira, as empresas que exerçam
atividades de locação de veículos ou congêneres referidas deverão observar o se-
guinte: I – que todos os veículos utilizados ou disponíveis para locação na cidade de
Limeira sejam aqui licenciados e emplacados; (…)” (LIMEIRA. Câmara Municipal.
Lei Municipal nº 3.958, de 03 de novembro de 2005. Dispõe sobre a regulamentação
para funcionamento de empresas locadoras de veículos no município de Limeira,
obrigando o licenciamento em Limeira e dá outras providências. Limeira, 2005).
191. “Art. 1º Ficam as empresas locadoras de veículos automotores (ônibus, auto-
móveis e motocicletas) que atuam no Estado da Paraíba proibidas de utilizar, para
locação, veículos licenciados em outros Estados da Federação. Parágrafo único. As
empresas locadoras de veículos automotores (ônibus, automóveis e motocicletas)
têm o prazo de 120 (cento e vinte) dias a contar da publicação desta Lei, para licen-
ciarem seus veículos no Estado da Paraíba” (PARAÍBA. Norma Estadual. Lei nº
8.729 de 23/12/2008. Dispõe sobre a proibição das empresas locadoras de automóveis
que atuam no Estado da Paraíba de utilizarem veículos licenciados em outros Esta-
dos da Federação e dá outras providências. João Pessoa: DOE, 24 dez. 2008).
192. “Art. 1º Ficam as locadoras obrigadas a licenciarem e emplacarem seus veícu-
los no Estado de Mato Grosso. Art. 2º As locadoras de veículos terão um prazo de 90
(noventa) dias para se adequarem a esta lei.” (MATO GROSSO. Secretaria de Esta-
do da Administração. Lei nº 9.572, de 29 de junho de 2011. Cuiabá: DO, 29 jun. 2011).
193.
A Lei nº 3.958/2005, do Município de Limeira, foi julgada inconstitucional pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo ( SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. Argui-
ção de Inconstitucionalidade nº 0209112-58.2013.8.26.0000, do Órgão Especial do Tri-
bunal de Justiça de São Paulo. Julgamento: São Paulo, SP, 02 abr. 2014. Publicação:
São Paulo, SP, 10 abr. 2014. Disponível em: <https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.
do?cdAcordao=7487282&cdForo=0&vlCaptcha=avhxw>. Acesso em 21 mai. 2016.
IPVA.indb 114 06/11/2016 22:38:12
115
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
estabelecem as regras que disciplinam o registro e licencia-
mento de veículos automotores.
3.4 A regra-matriz de incidência tributária do imposto
sobre a propriedade de veículos automotores
O legislador, ao eleger os acontecimentos relevantes ao
desencadeamento de efeitos jurídicos, seleciona propriedades
do fato, constituindo conceitos que compõem a hipótese de in-
cidência das normas. Da mesma forma, ao elencar as relações
que estabelecer-se-ão juridicamente a partir de tais fatos,
constrói os conceitos que integram o consequente normativo.
Todo conceito é seletor de propriedades, razão pela qual
nenhum enunciado prescritivo capta a plenitude do evento ou
do objeto a que se refere. Dessa forma, é imperiosa a análise
das propriedades designadas pelo legislador como relevantes
à constituição das hipóteses e dos consequentes das normas
jurídicas, pois, somente se atendidas em sua totalidade, de-
sencadearão os efeitos dela decorrentes.
A construção normativa em sentido estrito, derivada do
exercício da competência dos entes políticos para instituição
dos tributos, para ter sentido, deve conter, como conteúdo mí-
nimo, os elementos da regra-matriz de incidência tributária
(composta pela hipótese, na qual estão os critérios material,
espacial e temporal, e pelo consequente, informado pelos cri-
térios pessoal e quantitativo). Por esse motivo, investigaremos
a seguir cada um dos critérios da regra-matriz de incidência
do IPVA, a fim de delimitar o campo de atuação dos Estados e
do Distrito Federal com relação a esse tributo.
3.4.1 Critério material
O critério material é o núcleo do conceito mencionado na
hipótese da norma. Nele encontra-se referência a um compor-
tamento, a descrição objetiva de um fato, de possível prática
IPVA.indb 115 06/11/2016 22:38:12
116
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
por um sujeito de direito, apto a dar ensejo à relação obriga-
cional jurídico-tributária.
Ingressando, de pronto, no esquema lógico do critério
material da hipótese tributária do Imposto sobre a Proprie-
dade de Veículos Automotores, procuram- se, dentro desse as-
pecto, seus elementos nucleares, representados por um verbo
e seu complemento.
Não obstante o constituinte tenha deixado de consig-
nar expressamente o verbo que integra o critério material
do IPVA, a interpretação sistemática leva-nos a concluir pela
adequação do termo ser, visto que a significação construída a
partir de tal vocábulo é apta para expressar o fato típico esco-
lhido para dar nascimento à obrigação tributária envolvendo
o referido imposto.
Já o complemento, segundo o comando constitucional,
está representado pela expressão propriedade de veículo au-
tomotor, conforme previsto no art. 155, III, da CF.
A locução deve ser analisada em sua totalidade, pondo
em evidência os fatos sobre as quais o constituinte fez recair
a tributação, bem como aqueles que deixou fora do âmbito
de incidência tributária. Dessa forma, o critério material da
regra-matriz de incidência tributária do IPVA é “ser proprie-
tário de veículo automotor”.
Isso significa que os Estados e o Distrito Federal somente
poderão exercitar sua competência desde que respeitada essa
condição, ou seja, exigir um tributo não vinculado a qualquer
atividade estatal, que incida sobre aquele que exercer a pro-
priedade de um veículo automotor.
Não é por outro motivo que a norma jurídica que trata
sobre o IPVA deverá apresentar, sempre, em sua estrutura,
uma hipótese (por meio da qual apresente a descrição de de-
terminado evento – ser proprietário de veículo automotor em
determinados critérios de tempo e espaço), a qual, uma vez
vertida em linguagem competente (jurídica), dá nascimento
IPVA.indb 116 06/11/2016 22:38:12
117
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
a uma relação obrigacional entre duas pessoas (dever-ser),
em que uma possui o dever de pagar o valor relativo ao IPVA
(sujeito passivo) e a outra, o direito subjetivo a essa presta-
ção (sujeito ativo). Ou seja, somente a propriedade de veículo
automotor tem a possibilidade de desencadear a incidência
tributária do IPVA.
Aqui, cumpre rememorar os ditames dos arts. 109 e 110
do CTN.
O primeiro preceitua que:
os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa
da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, con-
ceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos
tributários.
Enquanto o segundo artigo determina que:
A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o al-
cance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utili-
zados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal,
pelas Constituições dos Estados ou pelas Leis Orgânicas do Dis-
trito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar compe-
tências tributárias.
194
Tais dispositivos levam em consideração que é o vasto
ramo do Direito Privado que abriga grande parte das regras
que regem relações potencialmente tributáveis (como exem-
plos, têm-se a prestação de serviços, doação, sucessão, pro-
priedade, compra e venda de imóvel, dentre inúmeros outros).
Os textos estão em constante relação, como elementos
que são do sistema jurídico, sendo que este próprio regula-
menta como é dada a intertextualidade no âmbito do Direito
positivo.
194. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tri-
butário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em:
nalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014.
IPVA.indb 117 06/11/2016 22:38:12
118
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
De acordo com a disciplina do Código Tributário Nacio-
nal, extrai-se, primeiramente, que a legislação tributária pode
utilizar de institutos do Direito Privado (e.g., compensação,
pagamento), mas as consequências tributárias desses institu-
tos deverão ser buscadas no âmbito do Direito Tributário.
No entanto, o art. 110 do CTN proíbe ao legislador ordi-
nário que altere o alcance dos “institutos, conceitos e formas
de direito privado”, utilizados na linguagem constitucional,
para definir ou limitar competências tributárias.195
Com isso, o Código Tributário Nacional proíbe a burla ao
princípio federativo: a alteração da estrutura básica da Fede-
ração brasileira (da qual a definição de competências tributá-
rias é indissociável).196
Obviamente, vazias de sentido seriam as normas cons-
titucionais responsáveis pela outorga e limitação de compe-
tência, caso pudessem seus destinatários alterar o significado
semântico de seu texto.
Dessa forma, sendo a materialidade do tributo outorgada
pela Constituição Federal um conceito de utilização já esta-
belecida no discurso jurídico, não pode o legislador tributário
recortá-la para além dos contornos dados em outros domínios
do Direito.197 Os conceitos de Direito Privado são importantes
balizas para dirigir o trabalho do legislador tributário.
195. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tri-
butário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em:
nalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014
196. O Ministro Marco Aurélio, no julgamento do Recurso Extraordinário nº
166.772/RS, afirmou que “o conteúdo político de uma Constituição não é conducen-
te ao desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, con-
siderados institutos consagrados pelo Direito” (BRASIL. Supremo Tribunal Fede-
ral. Recurso Extraordinário nº 166.772/RS. Relator: Ministro Marco Aurélio.
Julgamento: 11 out. 2000. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJU 25
maio 2011, p. 17).
197. BRITTO, Lucas Galvão de. O lugar e o Tributo. Op. cit., p. 150-152.
IPVA.indb 118 06/11/2016 22:38:12
119
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Como ressalta Hugo de Brito Machado, tal dispositivo
apenas explicita um mandamento que decorre implicitamen-
te da própria Constituição Federal:
Na verdade, esse dispositivo nem precisaria existir. Embora se
tenha de reconhecer o importantíssimo serviço que o mesmo
tem prestado ao Direito brasileiro, não se pode negar que, a ri-
gor, ele é desnecessário. Desnecessário – é importante que se es-
clareça – no sentido de que com ou sem ele teria o legislador de
respeitar os conceitos trazidos pela Constituição para definir ou
limitar competências tributárias. Mas é necessário porque, infe-
lizmente, a ideia de uma efetiva supremacia constitucional ainda
não foi captada pelos que lidam com o Direito em nosso País.
198
Aqui são também valiosas as palavras do Ministro Marco
Aurélio, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordiná-
rio nº 150.764:
(…) se a lei pudesse chamar de compra e venda o que não é com-
pra e venda, de importação o que não é importação, de exporta-
ção o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria
todo o sistema tributário inscrito na Constituição.
199
Como consequência, a lei tributária não pode considerar,
para fins de regulamentação do IPVA, cuja norma de compe-
tência contém os termos propriedade e veículo automotor, algo
diferente dos conceitos a eles conferidos pelo Direito Privado,
razão pela qual passa-se a analisar o alcance de cada uma des-
sas expressões.
198. MACHADO, Hugo de Brito; citado por PAULSEN, Leandro. Direito Tributário,
Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 16. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 991.
199. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 150.764-1. Re-
lator originário: Ministro Sepúlveda Pertence. Relator para acórdão: Ministro Mar-
co Aurélio. Julgamento: 16 dez. 1992. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação:
DJ, 16 dez. 1992.
IPVA.indb 119 06/11/2016 22:38:12
120
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
3.4.1.1 A expressão veículo automotor
O termo veículo advém do latim vehiculum, e, conforme
o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, pode ser concei-
tuado como “qualquer meio usado para transportar ou con-
duzir pessoas, animais ou coisas, de um lugar para o outro.”200
Importante ressaltar que não é qualquer veículo cuja pro-
priedade pode ser considerada objeto da incidência do IPVA,
mas tão somente a de veículos “automotores”.
Tal vocábulo decorre da junção das palavras auto e motor
ou, como colocado no Dicionário Houaiss, sinônimo de auto-
móvel, cujo conceito atribuído é “(i) a qualidade de um objeto
cujo movimento resulta de mecanismo próprio, sem interven-
ção de força exterior”, “movido a motor”; ou “(ii) qualquer
veículo, movido a motor de explosão, geralmente de quatro ro-
das, que se destina ao transporte de passageiro ou cargas.”201
Nesse sentido, considera-se “automotor” a qualidade do
que tem em si próprio algum dos meios de propulsão, inde-
pendente de quaisquer forças externas.202
Fazendo a junção de ambos os vocábulos, tem-se que veí-
culo automotor é o meio usado para transportar ou conduzir
pessoas, animais ou coisas, de um lugar para o outro, movido
a motor, ou seja, dotado de propulsão própria.
A fim de verificar o alcance da expressão, cita-se, como
exemplo, a bicicleta, que enquadra-se como veículo, mas não
é dotada de autopropulsão, estando, portanto, fora do campo
de incidência do IPVA.
200.
FIGUEIREDO, Cândido; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel
de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
201. Idem, ibidem.
202. SILVA , Paulo Roberto Coimbra. IPVA – Imposto sobre a propriedade de veícu-
los automotores. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 28.
IPVA.indb 120 06/11/2016 22:38:12
121
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Outro exemplo abrange os maquinários que possuem auto-
locomoção (guindastes, escavadeiras, empilhadeiras etc),
203
mas
que, apesar de serem “automotores”, não se classificam como
veículos, pois que não possuem como função o transporte de
pessoas ou bens, mas o cumprimento de outras tarefas, devendo,
também, ficar de fora do campo de incidência do imposto em tela.
Já foi objeto de discussão se a expressão veículo automotor
abrangeria as embarcações e aeronaves. Em sendo, conceitual-
mente, embarcações e aeronaves veículos (destinados ao trans-
porte de pessoas ou bens) automotores (dotadas de propulsão
própria), verifica-se que eles se amoldam ao critério material
do imposto em questão. Isso porque não se encontra, na Cons-
tituição, qualquer restrição com relação ao meio utilizado pelo
veículo para sua locomoção (se terrestre, aéreo ou marítimo, por
exemplo).
Todavia, o Supremo Tribunal Federal já firmou o entendi-
mento de que aeronaves e embarcações estariam excluídas do
campo de incidência do IPVA.
204
Dentre os fundamentos utilizados pelo Supremo Tribunal
Federal para concluir, tem-se, primeiramente, o fato de o IPVA
ser sucessor da Taxa Rodoviária Única, razão pela qual uma aná-
lise dessa sucessão histórica levava a crer que a intenção do le-
gislador constitucional era tributar apenas veículos terrestres.
205
203. Exemplo citado por Gladston Mamede: “Entre os veículos utilitários, é preciso
redobrado cuidado, excepcionando situações nas quais se percebe uma
incompatibilidade entre a ideia central na autorização constitucional e determina-
dos tipos de maquinário que possuem na autolocomoção apenas um elemento aces-
sório de sua principal razão de ser. Não são propriamente veículos motorizados
com a finalidade de locomoção e/ou transporte, mas máquinas que dispõem de me-
canismos de autolocomoção como forma de otimizar os resultados de sua atuação”
(MAMEDE, Gladston. Imposto sobre a propriedade de veículos automotores. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 56).
204. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 134.509-AM.
Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgamento: 29 maio 2002. Órgão Julgador: Tribu-
nal Pleno. Publicação: DJ, 13 set. 2002.
205. Conforme voto do Ministro Francisco Rezek: “Verifiquei que temos neste caso
um imposto que, na trajetória constitucional do Brasil, sucede à Taxa Rodoviária
Única, e não me pareceu, examinados os sucessivos textos constitucionais recentes
IPVA.indb 121 06/11/2016 22:38:12
122
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Questionável tal fundamento, pois, apesar de serem tem-
poralmente sucessores, o IPVA e a TRU são tributos distintos,
não havendo menção, no caso do IPVA, ao meio ao qual o veí-
culo cuja propriedade é sujeita a tributação locomove-se (se
terrestre, aéreo ou aquático), a sua finalidade (profissional,
pessoal, lazer etc.) ou outros fatores que não são menciona-
dos pelo constituinte como componentes da materialidade do
tributo.
De qualquer forma, o segundo motivo levantado pelos Mi-
nistros, em suas razões de decidir, é de grande relevância para
a presente pesquisa: segundo os julgadores, não é viável a tri-
butação, pelo IPVA, das aeronaves e embarcações, pois tais
veículos não estão sujeitos ao registro ou licença municipal.
Nesse sentido, raciocinou o Ministro Francisco Rezek:
Penso no que seriam as consequências de se abonar a constitu-
cionalidade dessa exação. Penso em como se deveriam alterar
normas relacionadas com registros e cadastros. Penso no IPVA,
que o constituinte manda ser arrecadado por Estado e repartido
depois com o Município onde está licenciado cada veículo. Penso
em como se afetarão navios e aviões aos municípios…
206
Expressou o mesmo entendimento o Ministro Sepúlveda
Pertence, relator do voto-vista:
Este campo material de incidência do imposto sobre proprie-
dade de veículos automotores resulta ainda de outras normas
constitucionais, a começar pela contida no § 13 do mesmo art. 23
da Constituição Federal, também acrescentada pela Emenda nº
27/1985, que, tratando da destinação do produto da arrecadação
do imposto, dispõe que cinquenta por cento constituirá recei-
ta do Município onde estiver licenciado o veículo. Essa locução
que, em qualquer momento, tenha sido intenção do constituinte brasileiro autori-
zar aos Estados, sob o pálio do imposto sobre a propriedade de veículos automoto-
res, a cobrança sobre a propriedade de aeronaves e de embarcações de qualquer
calado.” (Idem, ibidem).
206. Voto do Ministro Francisco Rezek. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recur-
so Extraordinário nº 134.509-5/AM. Julgamento: 29 maio 2002. Órgão Julgador: Tri-
bunal Pleno. Publicação: DJ, 13 set. 2002, p. 64.
IPVA.indb 122 06/11/2016 22:38:12
123
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
adverbial de lugar somente pode ser referida aos veículos auto-
motores em circulação nas vias terrestres, porque estes, em face
da legislação e pela ordem natural das coisas, estão sujeitos a li-
cenciamento nos municípios de domicílio ou residência dos res-
pectivos proprietários.
207
Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal decidiu que
no caso de aeronaves e embarcações, seria impossível fazer o
cumprimento da transferência obrigatória de receitas deter-
minada pelo artigo 158, inciso III,208 da CF.
A Corte Suprema demonstrou, portanto, entendimento
de que a repartição da receita do IPVA para os Municípios
é conditio sine qua non ao legítimo exercício da competência
tributária. Ou seja, a competência tributária atribuída pela
Constituição Federal está atrelada, de forma indissociável,
ao repasse de receita por ela estipulada, para fins de prote-
ção e garantia da eficácia do pacto federativo/autonomia dos
Municípios.
Esse entendimento é de suma importância para o presen-
te estudo, pois, como será abordado a seguir, alguns Estados
estão desconsiderando o local de registro do automóvel para
realizar a cobrança do IPVA em local onde supostamente o
veículo transita com maior frequência.
Tal atitude contraria frontalmente o entendimento do
Supremo Tribunal Federal acima exposto, baseado no art.
158, III, da CF, eis que representam a pretensão de cobrar o
IPVA independentemente do local de registro do veículo e,
portanto, desconsiderando a regra de repartição de receita do
imposto esculpida na Constituição.
207. Ressalte-se que o Ministro Sepúlveda Pertence citou, em seu voto, entendi-
mento expressado em julgamento anterior, ainda sob a égide da Constituição de
1967, sobre o mesmo assunto.
208. “Art. 158. Pertencem aos Municípios: (…) III – cinquenta por cento do produto
da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores
licenciados em seus territórios.” (BRASIL. Presidência da República. Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: .planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014).
IPVA.indb 123 06/11/2016 22:38:12
124
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
3.4.1.2 Os institutos da “propriedade”, “posse” e “domí-
nio” e a definição do critério material do IPVA
O legislador constituinte, ao atribuir a competência tri-
butária aos Estados-membros e ao Distrito Federal, incluiu
a aptidão para instituição do Imposto sobre a propriedade de
veículos automotores.
Neste ponto, também, constata-se que o legislador cons-
tituinte utilizou-se do conceito de Direito Privado para definir
a competência tributária relativa ao IPVA.
Analisando-se, então, o Direito Privado correlato, pode-
se dizer que “propriedade” é direito subjetivo, que, como tal,
manifesta-se, invariavelmente, na forma de relação jurídica.
O direito de propriedade está inserido no âmbito dos chama-
dos “direitos reais”209 ou “direito das coisas”, 210 que, em suma,
reúnem as regras que norteiam o aproveitamento das coisas
pelos seres humanos.211
209. De acordo com o Código Civil: “Art. 1.225. São direitos reais: I - a propriedade;
II - a superfície; III - as servidões; IV - o usufruto; V - o uso; VI - a habitação; VII - o
direito do promitente comprador do imóvel; VIII - o penhor; IX - a hipoteca; X - a
anticrese; XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; XII - a concessão
de direito real de uso” (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.406, de 10 de
janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: .br/
ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 15 mar. 2014).
210. Terminologia utilizada pelo Código Civil Brasileiro: Livro III – artigos 1.196 a
1.510 (ibid.). Aqui cabe a ressalva realizada pela Professora Maria Helena Di-
niz: “A determinação do conceito do direito real traz consigo uma série de proble-
mas concernentes às suas relações com o direito pessoal, no sentido de se verificar
se constituem dois institutos idênticos ou de natureza diversa” (DINIZ, Maria Hele-
na. Curso de Direito Civil Brasileiro. v. 4 – Direito das Coisas. 29. ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2014, p. 24).
211. Nelson Kojranski esclarece que “direitos das coisas” e “direitos reais” possuem
idêntico conceito, sendo que ambos se referem aos mesmos objetos e à mesma ma-
téria jurídica (KOJRANSKI, Nelson. Direitos reais. In: MARTINS FILHO, Ives
Gandra da Silva (Coord.). O novo código civil: Estudos em homenagem ao Professor
Miguel Reale. São Paulo: LTr, 2003, p. 981).
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IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Cabe ressaltar que, pela premissa aqui adotada de que
o Direito regula as condutas intersubjetivas, não é plausível
considerar que os Direitos Reais regulamentam as relações
entre os seres humanos e as coisas, já que estas últimas não
são sujeitos de direito.212
Em verdade, consideramos que tal ramo do Direito cuida
da relação entre o titular do direito sobre a coisa e outro ou
outros sujeitos determinados, na qual aquele tem o direito de
exigir destes uma atitude de respeito pelo exercício de deter-
minados poderes sobre um bem.
Por essa razão, cabe aqui fazer a ressalva de que a ex-
pressão direito das coisas deve ser usada com cautela (os insti-
tutos nela abrangidos não se referem propriamente a direitos
das coisas, mas direitos subjetivos envolvendo tais objetos, em
relação a outros sujeitos).
Cumpre ressalvar, também, a expressão direitos reais,
que em sua literalidade expressa uma tendência essencialis-
ta, a existência de uma concretude material que, em verdade,
também é construída pela linguagem. Isso porque as relações
de direito são estruturas conceituais, e os direitos reais, assim
como os pessoais, são intersubjetivos.
De qualquer forma, o corte realizado para estudo dos “di-
reitos reais” ou “direito das coisas”, com as devidas ressalvas
terminológicas, abrange a análise das categorias dos direitos
que regem os negócios jurídicos e os direitos subjetivos à pos-
se, uso, gozo e/ou disposição de uma coisa.
Nesse sentido, sobre o objeto dos Direitos Reais, explica-
nos Caio Mário da Silva Pereira:
212. No ensinamento de Kant, não se pode aceitar a instituição de uma relação jurí-
dica diretamente entre a pessoa do sujeito e a própria coisa, já que todo direito,
correlato obrigatório de um dever, é necessariamente uma relação entre pessoas
(apud DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. v. 4 – Direito das Coi-
sas. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 25).
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
No direito real existe um sujeito ativo, titular do direito, e há
uma relação jurídica, que não se estabelece com a coisa, pois que
esta é o objeto do direito, mas tem a faculdade de opô-la erga om-
nes, estabelecendo-se desta sorte uma relação jurídica em que é
sujeito ativo o titular do direito real, e sujeito passivo a generali-
dade anônima dos indivíduos (…).
213
Dentre os institutos de Direitos Reais, analisaremos mais
detidamente a posse, o domínio e a propriedade, tendo em
vista que o conhecimento de tais institutos é fundamental
para delimitar o campo de atuação do legislador tributário no
tocante ao IPVA.
Não raro temos visto casos em que os Estados e o Distrito
Federal utilizam, para fins de cobrança dos impostos sobre a
propriedade, situações em que estão presentes outros institu-
tos do Direito das Coisas além da propriedade (como a posse
e o domínio).
Como exemplo, temos a cobrança do IPVA, feita por al-
guns Estados,214 aos locatários (possuidores) de veículos au-
tomotores. Daí a relevância de uma análise cuidadosa sobre
esses institutos de Direito Civil, a fim de traçar o âmbito de
abrangência da norma constitucional de atribuição da com-
petência tributária relativa ao imposto.
Ingressando propriamente no tema, tem-se que a pos-
se é o exercício, de fato, de alguns poderes inerentes à
propriedade.215
213. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 4, 19. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2007, p. 02-03.
214. Como exemplo, cita-se o Estado de São Paulo (SÃO PAULO (Estado). Assem-
bleia Legislativa. Lei nº 13.296, de 23 de dezembro de 2008. Estabelece o tratamento
tributário do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA. São
Paulo, 23 dez. 2008) e Santa Catarina (SANTA CATARINA . Assembleia Legislativa.
Lei nº 7.543, de 30 de dezembro de 1988. Disponível em:
br/Consulta/Views/Publico/Frame.aspx?x=/Cabecalhos/frame_lei_88_7543.htm>.
Acesso em : 14 mar. 2014).
215. De acordo com o art. 1.196 do CC: “Considera-se possuidor todo aquele que tem
de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”
(BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui
IPVA.indb 126 06/11/2016 22:38:12
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IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Posse, assim como os diversos outros vocábulos no uni-
verso jurídico, é expressão ambígua, designando o fato jurídi-
co correspondente ao vínculo de sujeição da coisa à vontade
de uma pessoa, e, também, o Direito Real sobre a coisa possuí-
da que fundamenta a defesa desse vínculo.216
A posse relaciona-se com o direito de uso e de gozo do
bem e sua aquisição dá-se com a obtenção do poder de in-
gerência socioeconômica sobre uma coisa.217 Costuma-se des-
dobrar a posse em (i) direta e (ii) indireta, segundo o poder
que tenha cada um dos seus detentores, distinção esta que é
traçada no próprio Código Civil.218
Passando-se para o exame da figura da detenção, vê-se
que esta faz-se presente quando alguém (o detentor) conser-
va a posse da coisa em nome de outrem, em cumprimento de
ordem ou instrução deste.219 O detentor é servidor da posse,
submetendo a coisa à vontade de outrem.
Assim, a detenção distingue-se da posse, pois na primeira
há uma relação de dependência e subordinação entre o de-
tentor da coisa (também denominado servidor ou fâmulo da
posse) e outra pessoa (o chamado senhor da posse).
o Código Civil. Disponível em: .br/ccivil_03/leis/2002/
l10406.htm>. Acesso em: 15 mar. 2014).
216. COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito civil. Direito das Coisas e direito auto-
ral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 30.
217. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. v. 4... cit., p. 83.
218. “Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporaria-
mente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela
foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto”
(BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui
o Código Civil. Disponível em: .br/ccivil_03/leis/2002/
l10406.htm>. Acesso em: 15 mar. 2014).
219. Sobre a detenção, dispõe o art. 1.198 do CC: “Considera-se detentor aquele
que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em
nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas. (...)” (BRASIL. Presi-
dência da República. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.
Disponível em: .br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso
em: 15 mar. 2014).
IPVA.indb 127 06/11/2016 22:38:13
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Como afirma Maria Helena Diniz, o detentor (ou “fâmulo
da posse”) é aquele que
(…) em virtude de sua situação de dependência econômica ou
de um vínculo de subordinação em relação a uma outra pessoa
(possuidor direto ou indireto), exerce sobre o bem não uma pos-
se própria, mas a posse desta última em nome desta, em obe-
diência a uma ordem ou instrução.
220
Dessa forma, diferenciando os institutos da detenção e
da posse, tem-se que o detentor submete a coisa à vontade de
outrem, enquanto o possuidor submete a coisa a sua própria
vontade.221
Além disso, o possuidor, ao contrário do detentor, é titular
dos direitos possessórios sobre a coisa.222 São exemplos de de-
tentores os empregados (motoristas, empregados domésticos,
caseiros, almoxarifes), o amigo que hospeda-se em uma casa
etc.
Por sua vez, a prescrição normativa que regula a proprie-
dade estatui que, assentada a vontade das partes, então deve
ser a prerrogativa do proprietário em exercer, como sujeito
ativo, o direito de uso, gozo e disposição do bem em relação
aos demais sujeitos, constituídos e reconhecidos perante o
220. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. v. 4... cit., p. 55.
221. É nesse sentido que dispõe o art. 1.204 do CC: “Adquire-se a posse desde o mo-
mento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos po-
deres inerentes à propriedade” (grifo nosso) (BRASIL. Presidência da República.
.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 15 mar.
2014).
222. Como exemplo, o possuidor pode valer-se das ações possessórias (ou interdi-
tos), como a ação de reintegração de posse e outras, para proteger seu direito de ser
mantido na posse em caso de turbação, ser restituído em caso de esbulho e segura-
do de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado (art. 1.210 do CC).
Além do direito aos interditos, de acordo com Fábio Ulhoa Coelho, existem outros
quatro efeitos da posse: direito aos frutos, à indenização por benfeitorias, irrespon-
sabilidade pela perda ou deteriorização da coisa e aquisição da propriedade por via
de usucapião (COELHO, Fábio Ulhôa. Op. cit., p. 19).
IPVA.indb 128 06/11/2016 22:38:13
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IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
direito posto, que passam a ficar, desse modo, cometidos do
dever reflexo de não turbar e de não impedir o exercício do
referido direito.
Nesse sentido, prescreve o art. 1.228 do CC:223
O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e
o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a
possua ou detenha.
É esse feixe de direitos subjetivos que constitui o direito
de propriedade, sendo que, apenas se preenchidos tais requi-
sitos, estaremos diante de “propriedade”, no sentido técnico,
empregado pelo legislador e considerado pelo constituinte na
atribuição da competência tributária.
A propriedade é, assim, o mais importante dos direitos
reais. Todos os demais institutos do âmbito desses direitos
apresentam-se em relação a algum dos elementos do direito
de propriedade: exteriorização (posse), desdobramento (uso e
usufruto) ou limitação (servidão e direitos reais de garantia).
Todavia, para que o direito de propriedade exista, é ne-
cessário que todos os seus elementos estejam completos, ou
seja, o proprietário somente o é se tiver, cumulativamente, os
poderes de usar (desfrutar, aproveitar), gozar (fruir, explorar
economicamente) e dispor (destruir, abandonar ou alienar) da
coisa, bem como reivindicá-la de quem a possua ou detenha
indevidamente (buscar em juízo ordem de proteção ao direito
de propriedade).224
Assim, proprietário e possuidor podem ou não coinci-
dir na mesma pessoa. A consciência ocorrerá quando, além
dos poderes de usar e gozar, o sujeito também for detentor
dos direitos de dispor e reivindicar do bem. São exemplos de
223. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Institui o Código Civil. Disponível em: .br/ccivil_03/
leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 15 mar. 2014
224. COELHO, Fábio Ulhôa. Op. cit., p. 68.
IPVA.indb 129 06/11/2016 22:38:13
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
possuidores não proprietários o locatário, o comodatário e o
depositário de bens móveis ou imóveis.
Feitas essas considerações, relembra-se que, na atribui-
ção da competência relativa ao IPVA, a Constituição da Repú-
blica utilizou o termo propriedade.
Sabe-se que não se pode olvidar que qualquer pretensa
definição da hipótese de incidência, em lei estadual ou distri-
tal, extrapole esses lindes fixados pelo legislador constituinte.
Por esses motivos, não podem prevalecer leis que determi-
nem a incidência do IPVA sobre a mera posse ou detenção do
veículo, já estas representam apenas alguns dos elementos do
direito de propriedade.
Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça, analisando
discussão envolvendo o IPTU, imposto que também recai so-
bre a propriedade, já decidiu no sentido de que somente o
proprietário ou quem exerce a posse como forma de exteriori-
zação da propriedade (animus domini) podem figurar no polo
passivo da relação tributária relativa ao imposto:
PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO DO ART. 535
DO CPC. ALEGAÇÃO GENÉRICA. SÚMULA 284/STF. IPTU.
CONTRIBUINTE. AUSÊNCIA DE ANIMUS DOMINI. CONDO-
MÍNIO. MERO ADMINISTRADOR. 1. A alegação genérica de
violação do art. 535 do Código de Processo Civil, sem explicitar
os pontos em que teria sido omisso o acórdão recorrido, atrai a
aplicação do disposto na Súmula 284/STF. 2. O fato gerador do
IPTU, conforme dispõe o art. 32 do CTN, é a propriedade, o do-
mínio útil ou a posse. O contribuinte da exação é o proprietário
do imóvel, o titular do seu domínio ou seu possuidor a qualquer
título (art. 34 do CTN). 3. A jurisprudência do STJ é pacífica no
sentido de que somente a posse com animus domini é apta a ge-
rar a exação predial urbana, o que não ocorre com o condomínio,
in casu, que apenas possui a qualidade de administrador de bens
de terceiros. 4. “Não é qualquer posse que deseja ver tributada.
Não é a posse direta do locatário, do comodatário, do arrendatá-
rio de terreno, do administrador de bem de terceiro, do usuário
ou habitador (uso e habitação) ou do possuidor clandestino ou
precário (posse nova etc.). A posse prevista no Código Tributário
como tributável é a de pessoa que já é ou pode ser proprietá-
ria da coisa.” (in Curso de Direito Tributário, Coordenador Ives
IPVA.indb 130 06/11/2016 22:38:13
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IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Gandra da Silva Martins, 8ª Edição - Imposto Predial e Territo-
rial Urbano, p.736/737). Recurso especial improvido.
225
Nesse sentido, são as lições de José Eduardo Soares de Melo,
ao asseverar que a posse do veículo (a título precário ou mera
detenção), por si só, não representa o fato imponível do imposto,
não se vinculando à propriedade do bem, nem ao menos demons-
trando capacidade econômica do sujeito passivo (elemento ínsito
ao proprietário).
226
A posse e a detenção, portanto, são atributos intrínsecos a
um direito maior, que é o direito de propriedade. Com este últi-
mo, porém, não se confundem,
227
apenas contribuem para a for-
mação da “situação jurídica” propriedade, entendendo essa ex-
pressão como o plexo de relações que têm, num único sujeito,
pontos de referência.
Portanto, fixadas as diferenças entre os institutos da proprie-
dade, posse e domínio, conclui-se que, em decorrência do teor da
225. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.327.539/DF. Rela-
tor: Ministro Humberto Martins. Julgamento: 14 ago. 2012. Órgão Julgador: Segun-
da Turma. Publicação: DJe, 20 ago. 2012.
226. MELO, José Eduardo Soares de. Impostos estaduais In: PAULSEN, Leandro;
MELO, José Eduardo Soares de. Impostos federais, estaduais e municipais. 6. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 277.
227. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que, para fins do
IPTU, o titular da posse e o domínio, isoladamente, não se confunde com o proprie-
tário e não é apto a figurar como sujeito passivo do imposto: “O concessionário do
imóvel público, que detém a posse mediante relação pessoal, sem animus domini,
não se confunde com o contribuinte do IPTU, qual seja, o proprietário do imóvel, o
titular do domínio útil ou o possuidor por direito real (art. 34 do CTN)” (BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 885.353/RJ.
Relator: Ministro Mauro Campbell Marques. Julgamento: 03 dez. 2013. Órgão Jul-
gador: Segunda Turma, Publicação: DJe, 06 ago. 2009). E, ainda: “TRIBUTÁ-
RIO. IPTU. CONTRIBUINTE. POSSUIDOR POR RELAÇÃO DE DIREITO PES-
SOAL. ART. 34 DO CTN. 1. O IPTU é imposto que tem como contribuinte o
proprietário ou o possuidor por direito real, que exerce a posse com animus domini.
2. O cessionário do direito de uso é possuidor por relação de direito pessoal e, como
tal, não é contribuinte do IPTU do imóvel que ocupa. 3. Recurso especial improvi-
do” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 685.316/RJ. Rela-
tor: Ministro Castro Meira. Publicação: 08 mar. 2005. Órgão Julgador: Segunda Tur-
ma. Publicação: DJ, 18 abr. 2005, p. 277).
IPVA.indb 131 06/11/2016 22:38:13
132
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
norma constitucional, o critério material do IPVA somente pode
ser a relação de pertencialidade entre um sujeito e um veículo
automotor, que o permite usar, gozar, fruir e dispor desse bem,
ou seja, “ser proprietário do veículo” (comando constitucional).
Cabe ressaltar, aqui, a redação da Lei nº 7.431/85, que re-
gulamenta a instituição e cobrança do IPVA no Distrito Federal,
dispondo que o “fato gerador” do imposto é: “a propriedade, o
domínio útil ou a posse legítima do veículo automotor.”
228
Tal dis-
posição é utilizada por praticamente todos os Estados na discipli-
na do “fato gerador” do IPVA.
Diante do exposto neste tópico, totalmente descabida a in-
cidência do IPVA sobre a posse ou o domínio do veículo isolada-
mente considerados, estando a lei distrital em dissonância com a
regra constitucional atribuidora da competência.
Ressaltando a propriedade como único fato apto a ensejar a
incidência do IPVA, já se manifestou o Ministro Celso de Mello,
no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade nº 2.298 – MC/RS:
O exame do preceito constitucional em causa põe em evidência,
dentre os vários elementos consubstanciais à hipótese de inci-
dência do IPVA, que se trata de imposto sobre o patrimônio, eis
que incide, unicamente, sobre a propriedade de veículos auto-
motores, qualificando-se, por isso mesmo, como típica espécie
tributária de caráter real, cujo lançamento é realizado, exclusi-
vamente, em função da natureza do bem tributado, incidindo so-
bre o proprietário do veículo automotor.
229
228. “Art. 1º. É instituído, no Distrito Federal, o imposto sobre a propriedade de
veículos automotores devido anualmente, a partir do exercício de 1986, pelos pro-
prietários de veículos automotores registrados e licenciados nesta Unidade da Fe-
deração. (…) § 5º Fato gerador do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Auto-
motores - IPVA é a propriedade, o domínio útil ou a posse legítima do veículo
automotor” (BRASÍLIA. Distrito Federal. Lei nº 7.431, de 17 de dezembro de 1985.
Institui no Distrito Federal o imposto sobre a propriedade de veículos automotores
e dá outras providências. Disponível em: .br/aplicacoes/
legislacao/legislacao/Tela SaidaDocumento.cfm?txtNumero=7431&txtAno=1985&-
txtTipo=110&txtParte=COMPILADO>. Acesso em: 25 mar. 2014).
229. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta da Cons-
titucionalidade nº 2.298/RS. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgamento: 16 nov.
IPVA.indb 132 06/11/2016 22:38:13
133
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Da mesma forma, quando a propriedade, por qualquer
razão, é desfeita, seja pela subtração do veículo, por exemplo,
por meio de furto ou roubo, seja pela sua destruição, ainda
que o veículo permaneça registrado em nome do antigo pro-
prietário, não se completou o fato imponível do imposto, inde-
pendentemente do bom senso do legislador ordinário em ex-
pressamente assim consignar e mesmo que os atos registrais
ainda não tenham consignado a perda da propriedade.
3.4.2 Critério espacial
3.4.2.1
Considerações sobre o princípio da territorialidade
As normas postas no Direito positivo demarcam o domí-
nio espacial de sua vigência, isto é, dão contornos aos terri-
tórios dos entes políticos, determinando o alcance dos seus
comandos.
Território é a unidade de espaço físico que representa o
Estado, é o espaço físico juridicamente qualificado e delimita-
do, como aponta Heleno Taveira Tôrres.230
Isso quer dizer que a demarcação do território é feita juri-
dicamente, já que o direito cria suas próprias realidades.
Nesse sentido, assevera Paulo de Barros Carvalho que
território é delimitado pelas
normas postas que o constroem por meio de referências e espa-
ços – contínuos ou não, naturais ou artificiais, aéreos, terrestres,
marítimos ou subterrâneos – e, dessa forma, circunstanciam sua
atuação e o alcance de seus comandos.
231
2000. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJe, n. 214, 29 out. 2013.
230. TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação internacional sobre as rendas das
empresas. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 72.
231. CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e positivação no direito tributário. v.
2... cit., p. 271.
IPVA.indb 133 06/11/2016 22:38:13
134
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Em homenagem aos princípios federativo e da autono-
mia dos Municípios, é imperiosa a organização do espaço de
atuação de cada pessoa política, e, é exatamente ao espaço ju-
ridicamente delimitado para que as pessoas de Direito Cons-
titucional interno organizem-se que denominamos território.
Para sustentar a repartição da ordem nacional em ter-
ritórios e garantir a prevalência dos citados princípios, é ne-
cessário que os entes políticos respeitem os limites espaciais
traçados para o exercício de sua competência.
Nessa perspectiva, a territorialidade apresenta-se como
o conjunto de normas jurídicas que determinam o alcance es-
pacial de incidência e de eficácia das leis, sendo que, ao co-
mando de obediência, por parte da União, Estados-membros,
Distrito Federal e Municípios desses limites espaciais, desig-
namos “princípio da territorialidade”.
O princípio da territorialidade das normas não está ex-
pressamente citado pela Constituição Federal, mas é pressu-
posto da própria existência da República Federativa do Bra-
sil, e, portanto, considerado fundamental.
Ele determina que o poder vinculante de uma lei apenas
ensejará efeitos jurídicos dentro dos limites do território da
pessoa que o editou. É a territorialidade que fornece limites
na distribuição das competências que dão fechamento lógico
ao sistema e garante a existência de uma Federação (art. 1º da
CF), tendo, tal princípio, função na estruturação do sistema
constitucional tributário.
Como leciona Paulo de Barros Carvalho:
O princípio (ou valor) da territorialidade, sendo fundamental,
está pressuposto, não se manifestando de maneira expressa, a
não ser topicamente, na fraseologia constitucional brasileira.
Constitui, porém, o perfil do Estado Federal, como decorrência
imediata das diretrizes básicas conformadoras do sistema. O po-
der vinculante de uma lei ensejará efeitos jurídicos dentro dos
limites geográficos da pessoa que o editou.
232
232. CARVALHO, Paulo de Barros. O princípio da territorialidade no regime de
IPVA.indb 134 06/11/2016 22:38:13
135
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Paralelamente, analisando o sistema constitucional tribu-
tário brasileiro, verifica-se que o princípio da territorialidade
dista de ser um fundamento óbvio e simples, exigindo esforço
do intérprete na conjugação de todo o texto constitucional,
para sua aplicação.
Tais considerações são de suma importância para se
adentrar no tema do critério espacial da regra-matriz de inci-
dência do IPVA, por ser este um imposto de competência dos
Estados-membros e do Distrito Federal, apto a gerar conflitos
entre os entes federados, no que concerne aos limites de atua-
ção de cada um.
E, quando um ente político ultrapassa os limites espaciais
que condicionam sua produção normativa, acaba por invadir
os limites espaciais de outro, o que vem ocorrendo corriquei-
ramente com relação ao imposto ora em análise, como abor-
daremos, mais especificamente, no capítulo seguinte.
3.4.2.2 A importância do critério espacial do IPVA para
definição do sujeito ativo
O aspecto espacial da hipótese de incidência tributária
estabelece a dimensão espacial do fato jurídico tributário,
sendo extremamente relevante no âmbito da competência tri-
butária, especialmente nos impostos estaduais e municipais.
Ressalta-se que, com relação ao critério espacial, há re-
gras jurídicas que trazem expressos os locais em que o fato
deve ocorrer, a fim de que irradie os efeitos que lhe são carac-
terísticos. Outras, porém, nada mencionam, carregando im-
plícitos os indícios que permite-nos saber onde nasce o laço
obrigacional tributário.
O grau maior ou menor de especificidade é uma opção do
legislador.
tributação da renda mundial (universalidade). In: Justiça Tributária. 1º Congresso
Internacional de Direito Tributário – IBET. Vitória: Max Limonad, 1998, p. 670.
IPVA.indb 135 06/11/2016 22:38:13
136
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Todavia, mesmo quando as indicações do critério especial
não estão explícitas, haverá um plexo de indicações, mesmo
tácitas e latentes, para assinalar o lugar preciso em que con-
sidera-se ocorrida determinada ação, tomada como núcleo do
suposto normativo.
No caso do IPVA, as indicações sobre o local onde con-
sidera-se ocorrido o fato tributável não estão explícitas, nem
decorrem facilmente do critério material, pois o fato de “ser
proprietário de veículo automotor” possui dimensão espacial
complexa.
Essa titularidade pode ser socialmente verificada em di-
versas localidades, justamente por ser o veículo um bem mó-
vel, que circula ultrapassando, com frequência, limites terri-
toriais de Municípios e Estados.
A propriedade de um carro (como a dos bens móveis em
geral – um livro, um sapato, uma bolsa etc.) pode ser livremen-
te exercida em diversos lugares, não se vinculando, necessa-
riamente, a um ponto específico. Ou seja, a própria natureza
desses bens sugere que eles não são fixos a um determinado
local (ao contrário, são móveis), podendo sua propriedade ser
exercida livremente em qualquer lugar.
Entretanto, o fato jurídico relativo à dimensão espacial
da propriedade do veículo automotor, para fins de instituição
e cobrança do IPVA, deve ser construído segundo os critérios
existentes no ordenamento jurídico, e não buscar uma equiva-
lência com o fato social, desvinculada dos critérios jurídicos.
Nesse particular, é imperioso frisar que a omissão legisla-
tiva na edição de normas gerais do IPVA (conforme detalhado
no item 3.2 A inexistência de Lei Complementar disciplinando
o IPVA) torna necessário um maior esforço do intérprete, que
deve buscar a solução na interpretação sistemática do texto
constitucional.
De certo, em virtude da grande relevância do aspecto es-
pacial, que pode ensejar (ou evitar) conflitos de competência
IPVA.indb 136 06/11/2016 22:38:13
137
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
entre os entes federados, não se pode admitir uma liberda-
de dos próprios legisladores estaduais/distritais em defini-lo,
até mesmo porque as diretrizes do local em que se considera
acontecido o fato jurídico tributário são indicativas do ente
competente para figurar no polo ativo da relação tributária.
Assim, quanto ao IPVA, o critério espacial não pode ser
diverso do âmbito territorial do Estado ou do Distrito Fede-
ral em que for definido juridicamente ocorrido o exercício da
propriedade do veículo automotor.
Frisa-se que, sendo veículos bens essencialmente móveis,
o local (eventual ou habitual) da situação do bem revela-se
imprestável para fins de definição do aspecto espacial de inci-
dência do IPVA.
Cabe-nos analisar aqui, de acordo com a legislação cons-
titucional e infraconstitucional atualmente vigente, quais os
critérios para determinar-se a dimensão espacial do fato jurí-
dico tributário relevante ao IPVA.
E, como visto, sendo o critério espacial crucial para a defi-
nição da unidade federada competente para cobrar o imposto,
não pode haver liberdade plena aos detentores da competên-
cia tributária para sua escolha, sob pena de eleição de crité-
rios espaciais distintos por cada um dos Estados e instauração
de insegurança jurídica e guerra fiscal.
Portanto, ainda que inexistindo lei complementar a dis-
ciplinar o tema, é imprescindível que exista, no ordenamento
jurídico, meios para identificar o critério especial aplicável
para o IPVA. Caso não houvesse, seria impossível admitir a
instituição e a cobrança do imposto.
Ingressando, então, na definição do critério espacial
da regra-matriz de incidência do IPVA, imperioso verificar
o que determina a Carta Maior. Considerando não haver o
legislador constituinte disciplinado expressamente o tema, há
de se analisar o art. 158, inciso III, da CF,233 que confere aos
233. “Art. 158. Pertencem aos Municípios: (…) III – cinquenta por cento do produto
IPVA.indb 137 06/11/2016 22:38:13
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Municípios 50% (cinquenta por cento) do imposto arrecadado
sobre a propriedade de veículos licenciados em seu território.
Embora trate de regra de repartição de receita tributária,
tal dispositivo constitucional demonstra que o constituinte
pretendeu que o imposto seja devido no local em que o veículo
seja registrado/licenciado. É por esse motivo que entendemos
que o local onde se considera ocorrido o fato jurídico relativo
ao IPVA (o exercício da propriedade do veículo automotor)
deve guardar correlação com o local de registro e licencia-
mento do automóvel. Apenas desse modo é possível dar efeti-
vidade ao art. 158, inciso III, da CF.
No mesmo sentido é a opinião da Ministra Regina Helena
Costa: “Quanto ao critério espacial, há apenas a coordenada
genérica – território do Estado ou do Distrito Federal – onde o
veículo deva ser licenciado.”234
Todavia, tal afirmação, por si só, não soluciona a pro-
blemática aqui colocada. É preciso analisar, de acordo com
o arcabouço normativo brasileiro, em qual local deve ocorrer
o registro e o licenciamento dos veículos automotores, para,
assim, conseguirmos apontar, especificamente, o critério es-
pacial do imposto em estudo. Conforme será feito a seguir.
3.4.2.3 O local de registro e de licenciamento do veículo
automotor
Como explicado no item 3.3 supra (A legislação de trânsito
e o IPVA), tem-se que a competência para legislar sobre a ma-
téria de trânsito (incluindo local de registro e de licenciamen-
to de veículos), nos termos do artigo 22, XI, da Constituição
da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores
licenciados em seus territórios” (BRASIL. Presidência da República. Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: .planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014).
234. COSTA, Regina Helena. Curso de direito tributário. Constituição e código tri-
butário nacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 394.
IPVA.indb 138 06/11/2016 22:38:13
139
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Federal, foi conferida à União Federal, que a exerceu através
Em consonância com o disposto no art. 120 do referido
diploma (Lei nº 9.503/97 – CTB ), o local de registro e licen-
ciamento do veículo automotor deve coincidir com o lugar do
domicílio ou residência do proprietário.235
Portanto, interpretação sistemática do texto constitucio-
nal oferece a diretriz de que o imposto somente deve ser reco-
lhido para o Estado que contempla o Município onde o veículo
foi registrado/licenciado236 (que, por sua vez, de acordo com
o art. 120 do CTB, deve coincidir com o local de domicílio do
proprietário), justamente porque o Estado repartirá o produ-
to da arrecadação do imposto com esse Município.
Ainda, nos termos do art. 121 desse diploma legal, após
registrado o veículo, será expedido o Certificado de Registro
de Veículo – CRV, feito em nome do proprietário.
Tendo em vista que esse documento exterioriza a pro-
priedade do veículo automotor e o local de seu exercício, se
transmitida a propriedade ou se o proprietário alterar seu do-
micílio ou residência, é imperativa a emissão de novo Certifi-
cado de Registro de Veículo, conforme prescrito no art. 123 do
CTB.237
235. “Art. 120. Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-rebo-
que, deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado ou do Dis-
trito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma
da lei” (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997.
Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: .
br/ccivil_03/leis/l9503.htm>. Acesso em: 23 mar. 2014).
236. No mesmo sentido é a opinião de Gladston Mamede (MAMEDE, Gladston. Im-
posto sobre a propriedade de veículos automotores. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, p. 64-66; e Paulo Roberto Coimbra Silva (SILVA, Paulo Roberto Coimbra.
IPVA... cit., p. 60).
237.
“Art. 123. Será obrigatória a expedição de novo Certificado de Registro de Veí-
culo quando: I - for transferida a propriedade; II - o proprietário mudar o Município
de domicílio ou residência; III - for alterada qualquer característica do veículo; IV -
houver mudança de categoria. (...)” (BRASIL. Presidência da República. Lei nº
em: .br/ccivil_03/leis/l9503.htm>. Acesso em: 23 mar. 2014).
IPVA.indb 139 06/11/2016 22:38:13
140
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Ou seja, o referido certificado constitui a linguagem apta
a demonstrar o local onde, juridicamente, está vinculado o
exercício da propriedade do veículo, eis que, no mundo so-
cial, este exercício não encontra qualquer vínculo espacial (o
bem pode ser usado livremente em qualquer território). Daí
extrai-se a importância da linguagem jurídica, constituindo a
própria realidade do Direito.
Impende ressaltar que a Lei que instituiu o IPVA no Esta-
do de São Paulo (Lei nº 6.606/89 – não mais em vigor238) dispu-
nha a respeito do local de pagamento do imposto exatamente
nessa linha:
Art. 2º. O imposto será devido no local onde o veículo deva ser
registrado e licenciado, inscrito ou matriculado, perante as auto-
ridades de trânsito, da marinha ou da aeronáutica.
239
Apesar de o Estado, detentor da competência tributária,
não ter liberdade ampla para fixar o critério espacial dos tri-
butos, vê-se que a disciplina estava em linha com os ditames
constitucionais.
Nesse aspecto, a legislação de trânsito é, portanto, impor-
tantíssima para determinar o critério especial do IPVA, pois
indica, conforme definido em lei, o modo pelo qual delimita-
se o âmbito territorial do exercício da propriedade do veículo
automotor.
Da interpretação dos arts. 120 e 123 do CTB,240 ve-
rifica-se que a legislação apontou, como relevante para
238.
Em 23 de dezembro de 2008, foi publicada a Lei nº 13.296, que passou a discipli-
nar o IPVA no Estado de São Paulo (SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa.
Lei nº 13.296, de 23 de dezembro de 2008. Estabelece o tratamento tributário do Im-
posto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA. São Paulo, 23 dez. 2008).
239. SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa. Lei n. 6.606, de 20 de dezembro
de 1989. Dispõe a respeito do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automoto-
res - IPVA. São Paulo, 20 dez. 1989.
240. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997.
Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: .
br/ccivil_03/leis/l9503.htm>. Acesso em: 23 mar. 2014).
IPVA.indb 140 06/11/2016 22:38:13
141
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
atribuição da relação jurídica propriedade, o local do domicílio
do proprietário.
Cumpre esclarecer que a fixação do local de pagamento do
IPVA com o lugar de registro do veículo constitui uma presunção
relativa de que lá é exercida a propriedade do bem.
Tal presunção, como deve ser em Direito Tributário, é relati-
va, podendo quaisquer dos integrantes da relação jurídica tribu-
tária comprovar o contrário.
Isso pode acontecer, por exemplo, no caso de veículo objeto
de roubo, furto ou total deterioração. Nessas hipóteses, mesmo
que ainda exista o registro do veículo, perante a autoridade com-
petente, em nome do sujeito passivo, este pode comprovar que
não possui sua propriedade e, assim, afastar a incidência do IPVA.
O mesmo é aplicável ao sujeito ativo, quando verificado que
o local de registro do veículo foi feito em Município indevido, que
não corresponde ao domicílio do proprietário.
Nesse caso, deve o Estado desconstituir o registro indevida-
mente feito em outra unidade federativa e cobrar o imposto (aqui,
deve ter-se cuidado, pois a desconstituição prévia do registro
feito em outra unidade federada é essencial, adotando-se as pro-
vas cabíveis, contraditório e ampla defesa, para não incorrer em
bitributação).
Evoluindo na interpretação do arcabouço normativo em
questão, cabe verificar os critérios de definição do local de domi-
cílio e/ou residência das pessoas físicas e jurídicas, para chegar ao
cumprimento do art. 120 do CTB, definindo-se o correto local de
registro e licenciamento de veículos do qual detenham a proprie-
dade e, por fim, chegar ao Estado competente para cobrança do
IPVA, como doravante enfrentaremos.
3.4.2.4
O local de domicílio ou residência do proprietário
A noção de domicílio fixada pelo Direito brasileiro teve
origem no Direito romano.
IPVA.indb 141 06/11/2016 22:38:13
142
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
A teoria romana partia da ideia de casa (domus), fixando
o conteúdo jurídico de domicílio em razão do estabelecimento
ou permanência do indivíduo naquele lugar.241
Domicílio traduz, assim, o estabelecimento do lar e a cons-
tituição do centro dos interesses econômicos do indivíduo.
Destaca-se que a noção de domicílio é de grande impor-
tância para o Direito, pois, sendo a função primordial deste a
regulamentação das relações intersubjetivas, é necessário que
as pessoas tenham um local, livremente escolhido ou determi-
nado pela lei, onde possam ser encontradas para responder
por suas obrigações. O domicílio traduz o elemento de fixação
espacial da pessoa, o fator de sua localização para efeito das
relações jurídicas.242Trata-se da sede jurídica da pessoa.243
A importância desse instituto é vislumbrada também com
a análise dos direitos e garantias fundamentais preconizados
pela Constituição de 1988, dentre os quais está a proteção ao
domicílio, com a inviolabilidade domiciliar, nos termos do art.
5º, XI,244 da Carta Maior.245
241. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 1... cit., p. 229.
242.
O domicílio estabelece regra geral em matéria de competência processual, confor-
me arts. 46 e ss. do CPC (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 13.105, de 16 de
março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em:
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 21 mai. 2016).
243. AMARAL, Francisco. Direito civil – introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, p. 246.
244. “Art. 5º. (…) XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo
penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou de-
sastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; (…)”
(BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988. Disponível em: .br/ccivil_03/constituicao/consti-
tuicao.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014).
245. BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Disponível em: .br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014
IPVA.indb 142 06/11/2016 22:38:13
143
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
No Direito Civil brasileiro, há distinção entre residência e
domicílio das pessoas físicas.246
Residência abrange o lugar onde a pessoa fixa-se e ha-
bita de forma estável, mesmo que dele ausente-se por algum
tempo.
Difere também da chamada moradia, que compreende o
local onde o indivíduo permanece acidentalmente, por deter-
minado período de tempo, mesmo que sem o intuito de ficar
(como exemplo, cita-se quando uma pessoa hospeda-se em
um hotel ou na casa de um amigo; durante a hospedagem, lá
tem sua moradia, mas não sua residência).
Já o domicílio é um instituto jurídico, criado pela lei, cor-
respondendo, como nos ensina Maria Helena Diniz, ao “local
onde a pessoa responde, permanentemente, por seus negó-
cios e atos jurídicos.”247 Ou seja, o domicílio representa o local
em que é presumido estar presente a pessoa, no que refere às
suas relações jurídicas.
Para a definição do domicílio de uma pessoa, de acordo
com César Fiuza, são levados em consideração dois critérios –
um objetivo (lugar em que a pessoa fixa-se – sua residência) e
outro subjetivo (com o ânimo de permanecer)248 –, sendo que
neste último está a diferença entre residência e domicílio.
No mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira afirma
que, para o Direito brasileiro, a definição de domicílio resulta
na apuração de duas ordens de ideais: uma externa, a resi-
dência, e outra interna, o propósito de permanecer.249
246. Tal distinção não é aplicável às pessoas jurídicas, já que estas não possuem
residência.
247. O domicílio é importantíssimo para determinação do lugar onde a pessoa deve
exercer direitos, propor ação judicial, responder por suas obrigações (DINIZ, Maria
Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. v. 1 – Teoria Geral do Direito Civil. 18. ed.
São Paulo: Saraiva, 2002, p. 195).
248. FIUZA, César. Novo direito civil – Curso completo. 5. ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 2002.
249. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1... cit., p. 231.
IPVA.indb 143 06/11/2016 22:38:13
144
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
O domicílio da pessoa natural, de acordo com a lei civil, é
o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo defi-
nitivo (art. 70 do CC).250
Entretanto, tendo diversas residências onde alternada-
mente viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas (art.
71 do CC), admitindo a chamada pluralidade domiciliar251.
Quanto às relações profissionais, o domicílio da pessoa
natural é o lugar onde a profissão é exercida ou, sendo exer-
cida em lugares diversos, cada um deles constitui domicílio
para as relações que lhe correspondem (art. 72, parágrafo úni-
co, do CC).252
Prosseguindo na análise das normas atinentes ao domicí-
lio no âmbito do Direito Civil, no que diz respeito às pessoas
jurídicas, como explica Maria Helena Diniz, uma vez que estas
não possuem residência, seu domicílio civil é o local de suas
atividades habituais, de seu governo, administração ou dire-
ção ou, ainda, o local determinado no seu ato constitutivo.253
Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, o domi-
cílio é o lugar onde funcionarem as respectivas diretorias e
administrações ou onde elegerem domicílio especial no seu
estatuto ou atos constitutivos (art. 75, IV, do CC). E, no caso de
manterem diversos estabelecimentos em lugares diferentes,
cada um será considerado domicílio para os atos nele pratica-
dos (art. 75, § 1º, do CC).
250. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Institui o Código Civil. Disponível em: .br/ccivil_03/
leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 15 mar. 2014
251. idem
252. O diploma civil prevê, ainda, a situação na qual o indivíduo não possui domicí-
lio fixo ou certo, ao estabelecer que aquele que não tiver residência habitual, ou
empregue a vida em viagens, sem ponto central de negócios, terá por domicílio o
local onde for encontrado (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.406, de 10
de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: .
br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 15 mar. 2014).
253. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 1... cit., p. 245.
IPVA.indb 144 06/11/2016 22:38:13
145
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Já para as pessoas jurídicas de direito público interno e
suas autarquias, o domicílio é a sede de seu governo (art. 75,
I, II e III, do CC), sendo da União, o Distrito Federal, dos Esta-
dos e Territórios, as respectivas capitais, e dos Municípios, o
lugar onde funcione a administração municipal.
De acordo com a legislação civil, as pessoas são, a princí-
pio, livres para a escolha do local onde fixarão seu domicílio.
Com exceção dos casos previstos em lei de domicílio necessá-
rio,254 as pessoas podem, livremente, eleger o local onde fixa-
rão seu domicílio (trata-se do domicílio voluntário).
Cabe ressaltar que essa liberdade é com relação à escolha
onde a pessoa fixará sua residência com ânimo definitivo (no
caso das pessoas físicas) ou qual local a pessoa jurídica irá
eleger para funcionamento de sua administração e diretoria.
Todavia, uma vez fixada a pessoa em um determinado lo-
cal, ali é o seu domicílio, de acordo com a imperatividade das
normas construídas a partir dos enunciados supracitados.
Por isso, há de se ter cautela com a afirmação comumen-
te feita de que as pessoas são livres para escolher o local de
seu domicílio. Tal liberdade diz respeito à escolha do lugar
onde elas fixar-se-ão, construirão seu lar, manterão o exercí-
cio de seus negócios e organizarão o funcionamento de suas
atividades.
Todavia, é a legislação civil que traz as regras para a de-
terminação do local de domicílio das pessoas (mesmo no do-
micílio voluntário), conforme arts. 70 a 78 do citado diploma.
254. Como exemplos de domicílio necessário: o domicílio dos incapazes será o de
seu representante ou assistente; os funcionários públicos reputam-se domiciliados
no local em que permanentemente exercem suas funções; os militares da ativa pos-
suem domicílio onde servirem; os servidores da marinha e da aeronáutica serão
domiciliados na sede do comando a que estiverem imediatamente subordinados; o
domicílio dos tripulantes da marinha mercante será o local em que se achar matri-
culado o navio; os presos têm por domicílio o local em que estiverem cumprindo
pena; e assim por diante (FIUZA, César. Op. cit., p. 157).
IPVA.indb 145 06/11/2016 22:38:13
146
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
E, são exatamente essas regras que devem ser observa-
das pelas pessoas físicas e jurídicas na definição do local de
registro e licenciamento de seus veículos automotores, uma
vez que este deve corresponder ao lugar de seu domicílio.
Importante, nesse passo, lembrar que o Código Tributá-
rio Nacional também dispõe sobre o tema do domicílio, em
seu art. 127.255
As regras construídas a partir desse dispositivo visam ao
apontamento de um local de referência para a relação entre
o sujeito passivo e a administração tributária. Todas as comu-
nicações fiscais, intimações, notificações, enfim, todos os atos
de intercâmbio procedimental e fiscalizações, serão dirigidas
ao local denominado domicílio tributário.256
Pelos contornos da legislação tributária, da mesma for-
ma como ocorre na lei civil, vige a regra geral da eleição do
domicílio que o sujeito passivo (tanto a pessoa física quanto
a jurídica) pode fazer, decidindo, espontaneamente, sobre o
local de sua preferência para sua fixação.
Todavia, quando não é feita eleição do domicílio tributá-
rio pelo contribuinte ou quando o domicílio escolhido traga
255. “Art. 127. Na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicílio
tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal: I - quanto às pes-
soas naturais, a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o
centro habitual de sua atividade; II - quanto às pessoas jurídicas de direito privado
ou às firmas individuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que
derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento; III - quanto às pessoas jurí-
dicas de direito público, qualquer de suas repartições no território da entidade tri-
butante. § 1º Quando não couber a aplicação das regras fixadas em qualquer dos
incisos deste artigo, considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou
responsável o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que de-
ram origem à obrigação. § 2º A autoridade administrativa pode recusar o domicílio
eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo,
aplicando-se então a regra do parágrafo anterior” (BRASIL. Presidência da Repú-
blica. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário
Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e
Municípios. Disponível em: .br/ccivil_03/leis/l5172.htm>.
Acesso em: 10 fev. 2014).
256. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário... cit., p. 300-301.
IPVA.indb 146 06/11/2016 22:38:13
147
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
dificuldades na fiscalização e cobrança de tributos, o Código
Tributário Nacional traz regras para defini-lo (incisos I a III
do art. 127 do CTN).257
Na hipótese de não eleição voluntária do domicílio, a le-
gislação tributária traz que, quanto às pessoas naturais, con-
siderar-se-á domicílio tributário a sua residência habitual, ou,
sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua
atividade; quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às
firmas individuais, o lugar da sua sede ou, em relação aos atos
ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabeleci-
mento; e, por fim, quanto às pessoas jurídicas de direito pú-
blico, qualquer de suas repartições no território da entidade
tributante (incisos I a III do art. 127 do CTN).258
Além disso, o dispositivo ora em análise estabelece que,
em caso de não aplicabilidade das regras supracitadas, con-
signadas nos incisos I a III,
considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou
responsável o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos
atos ou fatos que deram origem à obrigação (art. 127, § 1º, do
CTN).
259
A definição do domicílio tributário, portanto, nos termos
do art. 127 do CTN, é complementar e específica com relação
às regras traçadas pelo Código Civil, sendo aplicável para as
comunicações entre o fisco e o contribuinte, inclusive para
convocar este último ao cumprimento de suas obrigações tri-
butárias e deveres instrumentais.
257. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tri-
butário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em:
nalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014
258. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário... cit., p. 300-301.
259. Idem, ibidem.
IPVA.indb 147 06/11/2016 22:38:13
148
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Assim, como quando refere-se às relações tributárias do
contribuinte, o domicílio tributário, em verdade, está intima-
mente relacionado ao aspecto espacial.
Entretanto, toda essa análise sobre o domicílio, aqui em-
preendida, faz-se necessária para identificação do local de
registro e licenciamento dos veículos automotores. Isso por-
que definimos que o critério espacial do IPVA é o local de re-
gistro e licenciamento do veículo automotor (art. 158, III, da
CF/88),260 que, por sua vez, de acordo com a legislação de trân-
sito (art. 120 do CTB),261 deve ocorrer no local de domicílio ou
residência do proprietário.
Dessa forma, firmamos a posição de que as regras aplicá-
veis para o fim aqui pretendido (definição do local de registro
e licenciamento de veículos) são aquelas consignadas no Có-
digo Civil, em seus arts. 70 a 78.
Não se pode esquecer que todas essas normas não desvin-
culam, em nenhum momento, o fato de que o domicílio, para
fins de definição do local de registro e licenciamento dos auto-
móveis e, consequente, indicação do critério espacial da regra
-matriz do IPVA, somente pode ser considerado com relação à
pessoa que adquire e mantém a propriedade do veículo.
Tal assertiva mostra-se especialmente relevante no caso
de pessoas jurídicas com pluralidade de domicílio, por exem-
plo. Nessa hipótese, o domicílio a ser considerado é o relativo
ao estabelecimento que adquire e mantém a propriedade dos
veículos automotores, observados os demais critérios da regra
-matriz de incidência do imposto em estudo.
Contudo, é preciso relembrar que a propriedade do veí-
culo (como bem móvel que é) não está relacionada ao local
260. BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Disponível em: .br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014
261. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997.
Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: .
br/ccivil_03/leis/l9503.htm>. Acesso em: 23 mar. 2014).
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TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
onde o bem esteja fisicamente, conexão que muitas vezes os
legisladores estaduais tentam empreender para fins de defi-
nição do local de pagamento do imposto,262 seja pela própria
natureza do bem, que pode circular livremente, seja porque o
universo jurídico não toca a realidade social, estabelecendo os
critérios jurídicos aptos a caracterizarem a aquisição e manu-
tenção da propriedade.
O legislador, ao apontar o local do domicílio do proprietá-
rio como o definidor do lugar do registro e licenciamento do
veículo e indicador da relação jurídica de propriedade, redu-
ziu a complexidade espacial socialmente verificável para essa
relação jurídica e desprezou quaisquer outros indicativos de
local, apontando o lugar específico em que considera-se ocor-
rido o fato jurídico tributário.
Ademais, compartilhamos do entendimento de que caso
o contribuinte possua múltiplos domicílios legítimos, ou seja,
mais de um local onde responde, juridicamente, por seus atos,
a teor do que prescreve o art. 71 do CC,263 no caso de pessoas
físicas e o art. 75, § 1º, do CC,264 no caso de pessoas jurídicas,
sendo, por tal razão, permitido que ele escolha aquele em que
a propriedade do veículo ficará vinculada e, consequentemen-
te, o local onde o IPVA deverá ser recolhido.265
262. Como exemplo da tentativa de vinculação da propriedade do veículo com o lo-
cal onde este circula, tem-se a Lei nº 13.296/2008, do Estado de São Paulo, que de-
termina que, para as empresas locadoras de veículos, o fato que dá ensejo à inci-
dência do IPVA é a locação de veículo ou colocação à disposição para locação no
território deste Estado (SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa. Lei nº
13.296, de 23 de dezembro de 2008. Estabelece o tratamento tributário do Imposto
sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA. São Paulo, 23 dez. 2008, art.
3º, inciso X, “b”).
263. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Institui o Código Civil. Disponível em: .br/ccivil_03/
leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 15 mar. 2014
264. Idem.
265. Nesse sentido é a opinião de Paulo Roberto Coimbra da Silva: “Nos casos, não
raros, de empresas titulares de frotas de veículos (bens essencialmente móveis e
que, no mais da vezes, transitam no território de diversos entes federados) e com
filiais em diferentes Estados, sem a edição de uma lei complementar apta a dirimir
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Com efeito, relevante pontuar que não possuem, os legis-
ladores estaduais, liberdade para definir conceito de domicílio,
seja porque a Constituição Federal estabeleceu a competência
privativa da União para legislar sobre Direito Civil (art. 22, I,
CF266), seja porque o conceito de domicílio faz parte da definição
da competência tributária relativa ao IPVA, estando o legisla-
dor tributário proibido de alterar seu alcance, em decorrência
do art. 110 do CTN (e do princípio federativo).
Por essas razões, impróprias são as disposições do art. 4º,
§ 1º, da Lei nº 13.296/2008,267 do Estado de São Paulo, que de-
lineou seus próprios requisitos para a definição de domicílio,
trazendo regras não encontradas na legislação civil para carac-
terizar o instituto em relação às empresas locadoras e locatárias
de veículos.268 Trataremos com mais detalhe esse assunto no ca-
pítulo reservado aos conflitos federativos envolvendo o IPVA.
Ao escolher os fatos que são aptos a desencadear efeitos
jurídicos, o legislador expede conceitos que são seletores de
propriedades do evento.
conflitos de competência entre as unidades federativas envolvidas, não se vislum-
bra ser possível impedir a faculdade de efetuar o registro de seus veículos no Muni-
cípio em que melhor aprouver aos seus interesses e conveniência” (SILVA, Paulo
Roberto Coimbra. IPVA... cit., p. 61).
266. “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comer-
cial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do traba-
lho; (…)” (BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988. Disponível em: .br/ccivil_03/constitui-
cao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014).
267. SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa. Lei nº 13.296, de 23 de dezem-
bro de 2008. Estabelece o tratamento tributário do Imposto sobre a Propriedade de
Veículos Automotores – IPVA. São Paulo, 23 dez. 2008
268. “Art. 4º. O imposto será devido no local do domicílio ou da residência do
proprietário do veículo neste Estado. § 1º - Para os efeitos desta lei, considerar-se-á
domicílio: (…) b) o estabelecimento onde o veículo estiver disponível para entrega
ao locatário na data da ocorrência do fato gerador, na hipótese de contrato de loca-
ção avulsa; c) o local do domicílio do locatário ao qual estiver vinculado o veículo na
data da ocorrência do fato gerador, na hipótese de locação de veículo para integrar
sua frota; (…)” (SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa. Lei nº 13.296, de 23
de dezembro de 2008. Estabelece o tratamento tributário do Imposto sobre a Pro-
priedade de Veículos Automotores – IPVA. São Paulo, 23 dez. 2008).
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IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
O ilustre Prof. Lourival Vilanova lembra que os conceitos,
quer normativos, quer empírico-naturais ou empírico-sociais,
são, invariavelmente, seletores de propriedades.269
Isso quer dizer que, ao conceituar o fato que dará ense-
jo ao nascimento da relação jurídica tributária, o legislador
constituinte, atribuidor da competência, selecionou as pro-
priedades que julgou relevantes para caracterizá-lo. Por essa
razão, não pode ente político detentor da competência alterar
os institutos que delimitam o fato jurídico tributário.
Portanto, em síntese, o aspecto espacial da hipótese de
incidência do IPVA parte da norma constitucional que atri-
bui, aos Municípios, cinquenta por cento do produto da arre-
cadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veícu-
los automotores licenciados em seus territórios (art. 158, III,
da CF).
Por esse critério de conexão, afirma-se que o IPVA é devi-
do ao Estado ou ao Distrito Federal em cujo território o veícu-
lo esteja licenciado, sendo que este, por sua vez, deve corres-
ponder ao local de domicílio do proprietário (art. 120 do CTB),
definido de acordo com as regras consignadas no Código Civil
(arts. 70 a 78).
3.4.3 Critério temporal
O aspecto temporal da hipótese de incidência identifica o
momento exato em que considera-se sucedido, de forma com-
pleta e acabada, o fato apto a dar ensejo à obrigação tributária
(o “fato gerador” do tributo). Ou seja, o critério temporal de-
termina o instante em que ocorre ou que é considerada ocor-
rida a subsunção do fato à previsão da norma geral e abstrata,
para fins de desencadear os efeitos do consequente.
269. VILANOVA, Lourival. Op. cit., p. 46.
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Insta pontuar que o critério temporal da hipótese de inci-
dência tributária não se confunde com o vencimento da obri-
gação tributária.
Este último está relacionado com a data de pagamento
do tributo, enquanto o primeiro refere-se ao instante do nas-
cimento da obrigação tributária.
O aspecto temporal é de suma importância, pois é por
meio dele que identifica-se a legislação de regência da obri-
gação tributária, nos termos do art. 144 do CTN, bem como se
observa a obediência da legislação aos princípios da irretroa-
tividade (art. 150, III, “a”, da CF/88), anterioridade e novente-
na (art. 150, III, “b” e “c”, da CF/88).
No que diz respeito ao critério temporal, o constituinte
deixou sua escolha ao legislador ordinário, desde que, eviden-
temente, este não o faça com violação a qualquer dos precei-
tos constitucionais.
Vale lembrar que existem tributos cujo fato imponível
está relacionado à prática de um evento isolado, como, por
exemplo, a transmissão de um bem imóvel a título oneroso
(fato imponível do ITBI) ou a realização de operação de circu-
lação de mercadoria (fato imponível do ICMS).
Porém, em outros casos, o fato apto a dar origem à obri-
gação tributária consiste em uma situação que pode ser pere-
ne ou que prolonga-se no tempo, o que, em geral, ocorre nos
tributos que oneram o patrimônio, como o IPTU e o IPVA.
Especialmente nesses casos, é necessária, por parte do
legislador, a fixação do momento em que, para fins de nasci-
mento da obrigação tributária, considera-se ocorrido o fato
apto a desencadear os efeitos dessa obrigação.
Tal definição, todavia, deve guardar correspondência com
o critério material do tributo, ou seja, para o IPVA, o aspecto
temporal deve estar relacionado ao momento em que adqui-
re-se ou mantém-se a propriedade do veículo automotor.
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TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Como o fato que dá ensejo à incidência do IPVA é ser pro-
prietário de veículo automotor, cumpre identificar o momento
em que tal comportamento perfaz-se, para fins de considerar
estabelecida a relação jurídica tributária entre o sujeito ativo
e o sujeito passivo.
Atualmente, as legislações estaduais e distritais, de uma
maneira geral, estatuem diferentes momentos em que consi-
dera ocorrido o fato jurídico da relação de propriedade, apto
a gerar a incidência do imposto, dependendo de tratar de veí-
culo novo ou usado e, ainda, da sua forma de aquisição (se
importado, ou arrematado em leilão, por exemplo).
Em suma, as prescrições mais comuns encontradas nas
legislações das unidades federadas estatuem como critérios
temporais do IPVA: (i) para veículo novo, o instante em que
adquirido e registrado, originariamente, pela pessoa (física ou
jurídica); (ii) para veículos importados, o momento do desem-
baraço aduaneiro; (iii) tratando-se de veículo adquirido em
leilão, a data de sua arrematação e (iv) para veículo usado, o
primeiro dia de cada exercício civil.
A denominada incidência originária ocorre com a aqui-
sição da propriedade de veículos novos. Este é o momento,
eleito pelos legisladores ordinários estaduais, no qual consi-
dera-se ocorrido o fato imponível do imposto em estudo.270
Ressalte-se que a aquisição da propriedade de bens mó-
veis, conforme estabelecido no Código Civil, perfaz-se não
270.
Nesse sentido são as legislações dos Estados de São Paulo (SÃO PAULO. Assem-
bleia Legislativa. Lei nº 13.296, de 23 de dezembro de 2008. Estabelece o tratamento
tributário do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA. São Pau-
lo, 23 dez. 2008, (art. 3, II), Minas Gerais (MINAS GERAIS. Secretaria da Fazenda.
Lei nº 14.937, de 23 de dezembro de 2003. Dispõe sobre o Imposto sobre a Proprieda-
de de Veículos Automotores - IPVA - e dá outras providências. Disponível em:
www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/leis/l14937_2003.htm>. Aces-
so em: 24 mar. 2014) e Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO. Assembleia Legislativa. Lei
nº 2.877, de 22 de dezembro de 1997. Dispõe sobre o imposto sobre a propriedade de
veículos automotores (IPVA). Disponível em: .br/
CONTLEI.NSF/b24a2da5a077847c032564f4005d4bf2/fa1a422b516211130325657a-
0064293f?OpenDocument>. Acesso em: 23 abr. 2014) (art. 1, § 1, II).
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somente com a celebração do contrato de compra e venda,
mas, sim, pela tradição da coisa em favor do adquirente.271
A partir desse momento, então, é que pode ser instaurada
a relação jurídica tributária relativa ao IPVA.
Cumpre esclarecer, ainda, que a fabricação, aquisição
para revenda ou importação de veículo novo por pessoa ju-
rídica fabricante, revendedora ou importadora, não são
condições bastantes para que seja estabelecida a relação de
propriedade e, portanto, a obrigação relativa ao IPVA. Isso
porque, nessas situações, o veículo constitui mera mercadoria
destinada ao comércio. Apenas com a incorporação do veículo
ao ativo fixo dessas pessoas jurídicas, para seu uso, é que faz
-se possível a incidência do imposto.272
Aplica-se também a incidência originária do imposto, se
houver a aquisição de veículos que não se encontravam sujei-
tos à tributação, por força de imunidade ou isenção relativas
ao antigo proprietário.273
271.
Nos termos do art. 1.267 do CC: “A propriedade das coisas não se transfere pelos
negócios jurídicos antes da tradição. (...)” (BRASIL. Presidência da República. Lei nº
10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 15 mar. 2014).
272. A esse respeito estabelece a Lei do Estado de Pernambuco (Lei nº 10.849/1992):
“Art. 2. (…). § 2º Em se tratando de veículo novo, considera-se ocorrido o fato gera-
dor na data de sua aquisição por consumidor final, pessoa física ou jurídica, ou
quando da incorporação ao ativo permanente por empresa fabricante ou revende-
dora de veículos. (...)” (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.849, de 23 de
março de 2004. Cria o Programa Nacional de Financiamento da Ampliação e Moder-
nização da Frota Pesqueira Nacional - Profrota Pesqueira, e dá outras providências.
Disponível em: .br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.849.
htm>. Acesso em: 30 mar. 2014).
273. Como exemplo, tem-se a Lei do Estado de Minas Gerais (Lei nº 14.937/2003):
“(...) Art. 2º O fato gerador do imposto ocorre: (...) § 3º Tratando-se de veículo usado
que não se encontrava anteriormente sujeito a tributação, considera-se ocorrido o
fato gerador na data em que se der o fato ensejador da perda da imunidade ou da
isenção. (...)” (MINAS GERAIS. Secretaria da Fazenda. Lei nº 14.937, de 23 de de-
zembro de 2003. Dispõe sobre o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automo-
tores - IPVA - e dá outras providências. Disponível em: .fazenda.mg.
gov.br/empresas/legislacao_tributaria/leis/l14937_2003.htm>. Acesso em: 24 mar.
2014). No mesmo sentido é o art. 3º, V, da Lei nº 13.296/2008. (SÃO PAULO (Estado).
Assembleia Legislativa. Lei nº 13.296, de 23 de dezembro de 2008. Estabelece o
IPVA.indb 154 06/11/2016 22:38:13
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TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
A segunda hipótese de critério temporal do imposto em
questão é o caso de importação de veículos, no qual consi-
dera-se ocorrido o fato imponível da obrigação tributária na
data de desembaraço aduaneiro do automóvel.274
Sabe-se que desembaraço aduaneiro é o ato pelo qual é
registrada a conclusão da conferência aduaneira, no caso de
importação, sendo o bem desembaraçado e posto à disposição
do importador.275 Ou seja, os bens objetos de importação são
postos à disposição do importador no momento do desemba-
raço aduaneiro, que conclui a conferência aduaneira, razão
pela qual mostra-se em consonância com a materialidade
do IPVA a fixação desse critério temporal pelos legisladores
estaduais.
Outra hipótese trazida pelas leis estaduais é a de arre-
matação de automóvel em leilão.276 A arrematação é o ato
pelo qual adquire-se bens levados à hasta pública, conforme
tratamento tributário do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores –
IPVA. São Paulo, 23 dez. 2008).
274. Como exemplo, cita-se: Estado do Espírito Santo ESPÍRITO SANTO. Assem-
bleia Legislativa. Lei nº 6.999/2001. Dispõe sobre o Imposto dobre a Propriedade de
Veículos Automotores – IPVA, consolidando e atualizando as normas do tributo e
dá outras providências. Disponível em: .br/antigo_portal_ales/
images/leis/html/6.999.htm>. Acesso em: 12 abr. 2014); Estado do Ceará (CEARÁ.
Assembleia Legislativa. Lei nº 12.023/1992. Dispõe sobre o Imposto sobre a Proprie-
dade de Veículos Automotores - IPVA. Fortaleza, 20 nov. 1992, art. 1, parágrafo 4,
inciso II), São Paulo (SÃO PAULO (Estado), op. cit., art. 3º, III).
275. Nos termos do art. 571 do Decreto nº 6.759/2009, que institui o Regulamento
Aduaneiro (BRASIL. Ministério da Fazenda. Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de
2009. Regulamenta a administração das atividades aduaneiras, e a fiscalização, o
controle e a tributação das operações de comércio exterior. Disponível em:
www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/Decretos/2009/dec6759.htm>. Acesso em:
23 mar. 2014); e art. 51 do Decreto-lei nº 37/66 (BRASIL. Ministério da Fazenda.
Decreto-lei nº 37, de 18 de novembro de 1966. Dispõe sobre o imposto de importação,
reorganiza os serviços aduaneiros e dá outras providências. Disponível em:
www.receita.fazenda.gov.br/legislacao/Decretos-leis/DecLei3766.htm>. Acesso em:
23 mar. 2014).
276. “Art. 3º. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto: VI - na data da arre-
matação, em se tratando de veículo novo adquirido em leilão; (…)” (ibid.).
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
regulamentado pelos arts. 879 e ss. do CPC. 277 Nesse caso, con-
sidera-se ocorrido o fato apto a ensejar a exigência do IPVA
com a arrematação do veículo.
E, por fim, tem-se os casos de veículos usados, em que
há incidência anual do imposto. Os legisladores ordinários fi-
xaram que é considerado ocorrido o fato descrito no critério
material da norma de incidência tributária relativa ao IPVA,
no dia primeiro de janeiro de cada exercício.278
Como a propriedade de um bem é uma situação que é
prolongada no tempo, houve a necessidade de eleição de uma
data precisa e periódica na qual considera-se ocorrido o fato
jurígeno tributário, sendo que há de ter-se obediência, pelo le-
gislador, do lapso temporal mínimo, o qual, por opção destes,
foi estabelecido como o período equivalente a um ano civil,
medida que parece razoável.
Portanto, para veículos usados, é este o critério fixado
para fins da incidência do IPVA: o primeiro dia de cada ano.
Nesse aspecto, mesmo que a propriedade seja transferida
durante o exercício civil, sua aquisição não será apta a ori-
ginar a incidência do imposto. Isso porque tratam-se de cri-
térios diferentes os aplicáveis para veículos novos e usados,
fazendo o legislador, no caso de automóveis usados, a válida
opção por fixar a relação de propriedade existente no dia pri-
meiro de janeiro.
Ou seja, a venda do veículo a terceiros durante o exercício,
ainda que estes encontrem-se em outras unidades federativas,
poderia gerar nem o direito a restituição proporcional do im-
posto ao alienante, nem o dever de pagamento proporcional ao
adquirente (e, consequentemente, não gera o direito da unidade
277. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Ins-
titui o Código de Processo Civil. Disponível em: .br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 21 mai. 2016.
278. SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa. Lei nº 13.296, de 23 de dezembro
de 2008. Estabelece o tratamento tributário do Imposto sobre a Propriedade de Veí-
culos Automotores – IPVA. São Paulo, 23 dez. 2008, art. 3, III.
IPVA.indb 156 06/11/2016 22:38:13
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TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
federada de domicílio do adquirente de cobrar o IPVA do exer-
cício para o qual este já fora quitado).
Pelo mesmo raciocínio, o roubo, furto ou perda total do veí-
culo usado, após instaurada a relação jurídica tributária, deve
gerar o direito subjetivo do contribuinte à restituição proporcio-
nal do montante pago em relação aos dias compreendidos entre
a data do roubo, furto ou sinistro e o término do exercício.
Definir em lei que o aspecto temporal do IPVA, tratando-
se de veículo usado, é o primeiro dia do exercício civil, significa
dizer que nesse momento considera-se sucedido, de forma com-
pleta e acabada, o fato apto a ensejar a incidência do imposto.
Modificações posteriores na situação da propriedade, após já
instaurada a relação jurídica obrigacional tributária, não têm o
condão de alterar o liame jurídico já instaurado e, muitas vezes,
já extinto (no caso de já ter sido quitado o débito).
Não obstante, diversas leis estaduais prevejam a isenção do
IPVA no período compreendido entre a data do roubo, do furto
ou da perda total, até eventual recuperação do veículo automo-
tor, como é o caso dos Estados de Minas Gerais279 e São Paulo.280
279. Lei Estadual de Minas Gerais nº 14.937/2003. “Art. 3º É isenta do IPVA a pro-
priedade de: (…) VIII - veículo roubado, furtado ou extorquido, no período entre a
data da ocorrência do fato e a data de sua devolução ao proprietário; (…)” (MINAS
GERAIS. Secretaria da Fazenda. Lei nº 14.937, de 23 de dezembro de 2003. Dispõe
sobre o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA - e dá outras
providências. Disponível em: .br/empresas/legislacao_
tributaria/leis/l14937_2003.htm>. Acesso em: 24 mar. 2014).
280. Lei Estadual de São Paulo nº 13.296/2008. “Art. 14. Fica dispensado o pagamen-
to do imposto, a partir do mês da ocorrência do evento, na hipótese de privação dos
direitos de propriedade do veículo por furto ou roubo, quando ocorrido no territó-
rio do Estado de São Paulo, na seguinte conformidade: I - o imposto pago será resti-
tuído proporcionalmente ao período, incluído o mês da ocorrência em que ficar
comprovada a privação da propriedade do veículo; II - a restituição ou compensa-
ção será efetuada a partir do exercício subseqüente ao da ocorrência. § 1º - A dis-
pensa prevista neste artigo não desonera o contribuinte do pagamento do imposto
incidente sobre fato gerador ocorrido anteriormente ao evento, ainda que no mes-
mo exercício. § 2º - O Poder Executivo poderá dispensar o pagamento do imposto
incidente a partir do exercício seguinte ao da data da ocorrência do evento nas hi-
póteses de perda total do veículo por furto ou roubo ocorridos fora do território
paulista, por sinistro ou por outros motivos, previstos em regulamento, que desca-
racterizem o domínio ou a posse. § 3º - Os procedimentos concernentes à dispensa,
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Trata-se de uma liberalidade das pessoas políticas detentoras
da competência tributária.
Diferente dessa situação é aquela em que, no instante fixa-
do pelo legislador em que considera-se ocorrido o fato jurídico
tributário, a pessoa já não possui a propriedade do bem em de-
corrência de roubo, furto, apropriação indébita, perda total ou
qualquer outro fato que importe na falta do exercício, pelo sujei-
to passivo, dos direitos inerentes à propriedade do automóvel.
Nesses casos, mesmo que o bem esteja registrado e licen-
ciado em nome da pessoa, esta pode comprovar que não pos-
sui sua propriedade e, com isso, afastar a incidência do imposto
(por essa razão, afirmamos que a presunção da propriedade es-
tabelecida pelo registro do veículo no órgão de trânsito é uma
presunção relativa).
3.4.4 Critério pessoal
O critério pessoal compõe o consequente da regra-ma-
triz de incidência tributária e aponta quem são os sujeitos da
relação jurídica: a pessoa apta juridicamente a figurar como
pretensora do signo presuntivo de riqueza descrito em seu as-
pecto material (sujeito ativo) e a pessoa de quem é exigido o
cumprimento da prestação (sujeito passivo).
Passa-se, de pronto, à análise dos sujeitos ativo e passivo
da relação jurídica tributária relativa ao IPVA.
3.4.4.1 Sujeito ativo
O sujeito ativo é o titular do direito subjetivo de exigir a
prestação pecuniária relativa ao tributo.281
à restituição e à compensação serão disciplinados por ato do Poder Executivo”
(SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa. Lei nº 13.296, de 23 de dezembro de
2008. Estabelece o tratamento tributário do Imposto sobre a Propriedade de Veícu-
los Automotores – IPVA. São Paulo, 23 dez. 2008).
281. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário... cit., p. 296.
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159
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TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
É a pessoa apta a integrar o liame obrigacional tributário,
com interesse formalmente antagônico ao sujeito passivo, a
quem a lei confere o direito de perseguir os objetivos traçados
pela norma jurídica instituidora do tributo.
Cabe ressaltar que o sujeito ativo pode ser a pessoa ju-
rídica de Direito Constitucional interno à qual o constituin-
te conferiu a competência tributária ou quem ela credenciar
para compor o papel de exigir do sujeito passivo a prestação
tributária.282
Assim, denomina-se capacidade tributária ativa a apti-
dão para figurar na relação jurídica tributária, na condição de
sujeito ativo. Tal capacidade pode ser transferida a terceira
pessoa, pelo detentor da competência tributária, eleita para
compor o liame, na condição de sujeito ativo.
Definir o sujeito ativo competente para instituição e co-
brança do IPVA implica resgatar as lições alcançadas na aná-
lise do aspecto espacial da hipótese de incidência tributária
(conforme detalhado no item 3.4.2.2 – A importância do crité-
rio espacial do IPVA para definição do sujeito ativo).
Portanto, em consonância com o raciocínio desenvolvido
para fixação do critério espacial, afirma-se que é sujeito ativo
apto a integrar a relação jurídica tributária relativa ao IPVA,
o Estado ou Distrito Federal em cujos limites territoriais o veí-
culo automotor objeto da tributação estiver registrado, o qual,
por sua vez, deve corresponder ao local de domicílio do seu
proprietário.
282. Paulo de Barros Carvalho ressalta que é letra morta o disposto no art. 119 do
CTN, que prescreve que o sujeito ativo da obrigação “é a pessoa jurídica de direito
público titular da competência para exigir seu cumprimento”. Dele depreende-se a
ponderação óbvia de que as pessoas jurídicas titulares de competência para insti-
tuir tributos podem ser sujeitos ativos. (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de di-
reito tributário... cit., p. 297).
IPVA.indb 159 06/11/2016 22:38:14
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
3.4.4.2 Sujeito passivo
Sujeito passivo é a pessoa (sujeito de direitos) de quem
exige-se o cumprimento da prestação, ou seja, é aquele que
deve realizar o pagamento dos tributos eventualmente devi-
dos e/ou o cumprimento de deveres instrumentais.
Para Maria Rita Ferragut, sujeito passivo é
(…) a pessoa física ou jurídica, privada ou pública, detentora de
personalidade, e de quem juridicamente exige-se o cumprimen-
to da prestação. Consta, obrigatoriamente, do polo passivo de
uma relação jurídica, única forma que o direito reconhece para
obrigar alguém a cumprir determinada conduta.
283
A Constituição Federal não aponta, via de regra, o sujeito
passivo das exações ao atribuir a competência tributária.
Analisando-se o Código Tributário Nacional, verifica-se
consignado, em seu art. 121,284 que o sujeito passivo é conside-
rado contribuinte quando tiver relação pessoal e direta com
fato jurídico tributário, e, é designado responsável quando
sua condição decorrer expressamente de lei.
Assim, utilizando-se os termos propostos no Código Tri-
butário Nacional, afirma-se que o contribuinte é aquele que
possui participação direta e pessoal com o fato apto a gerar
a incidência tributária, ou seja, depreende-se facilmente do
critério material constitucionalmente eleito.
283. FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária e o código civil de 2002.
São Paulo: Noeses, 2005, p. 29.
284. “Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao paga-
mento de tributo ou penalidade pecuniária. Parágrafo único. O sujeito passivo da
obrigação principal diz-se: I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta
com a situação que constitua o respectivo fato gerador; II - responsável, quando,
sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição ex-
pressa de lei” (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de
1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito
tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em:
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014).
IPVA.indb 160 06/11/2016 22:38:14
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IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Tais apontamentos são de suma importância para reali-
zação do princípio da capacidade contributiva, reforçado no §
1º do art. 145 da CF: “Sempre que possível, os impostos terão
caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade eco-
nômica do contribuinte (...)”.285
De acordo com o princípio da capacidade contributiva, a
lei tributária deve tratar de modo igual os fatos econômicos
que exprimem igual capacidade contributiva e de modo dife-
renciado os que exprimem capacidade contributiva diversa,
para, assim, consagrar a aplicação do princípio da igualdade.
A capacidade contributiva deve ser um padrão de refe-
rência básico para aferir-se o impacto da carga tributária.
Como afirma o Prof. Paulo de Barros,
(…) mensurar a possibilidade econômica de contribuir para o
erário com o pagamento de tributos é o grande desafio de quan-
tos lidam com esse delicado instrumento de satisfação dos inte-
resses públicos e o modo como é avaliado o grau de refinamento
dos vários sistemas de direito tributário.
286
Cumpre observar que a capacidade contributiva deve ser
considerada de forma objetiva, e não subjetiva, ou seja, não
deve levar em consideração as condições pessoais de cada
contribuinte, mas, sim, a manifestação objetiva de riqueza
atingida pela tributação. Nos impostos sobre a proprieda-
de, por exemplo (como o IPVA, IPTU e ITR), a capacidade
contributiva revela-se com o próprio bem.287
285.
BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil
de 1967. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17.10.1969). Disponível em:
.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67EMC69.htm>. Acesso
em: 14 fev. 2014.
286. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário... cit., p. 174-175.
287. Pelos ensinamentos de Roque Antonio Carrazza: “Em relação aos impostos so-
bre a propriedade (imposto territorial rural, imposto predial e territorial urbano,
imposto sobre a propriedade de veículos automotores etc.), a capacidade contribu-
tiva revela-se com o próprio bem, porque a riqueza não advém apenas da moeda
corrente, mas do patrimônio, como um todo considerado” (CARRAZZA, Roque An-
IPVA.indb 161 06/11/2016 22:38:14
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Trazendo tais lições para a identificação do contribuinte
do IPVA, portanto, tem-se que este precisa estar intimamente
relacionado à prática do fato jurídico e deter a manifestação
de riqueza atingida pela tributação, não podendo ser, por isso
mesmo, pessoa diversa do proprietário do veículo automotor.
Andréa M. Darzé propõe uma classificação para as nor-
mas de sujeição passiva, dividindo-as entre aquelas relativas
aos contribuintes e as atinentes aos responsáveis.288
Quando há identidade entre o sujeito que pratica o verbo
previsto no aspecto material do antecedente normativo com o
sujeito que figura no consequente, tem-se o contribuinte; do
contrário, tem-se o responsável.
A autora divide também a sujeição passiva, quanto às
suas características, entre pessoal ou exclusiva e plural ou
concorrente.
A sujeição pessoal inclui a hipótese de o contribuinte ser
o único a figurar no polo do devedor e, no caso de responsa-
bilidade, a substituição tributária (em que somente o substi-
tuto pode figurar como sujeito passivo, excluindo-se o deve-
dor original); já a sujeição plural pode ser subdividida entre
subsidiária (o devedor subsidiário responde somente na hi-
pótese de ser impossível o adimplemento da obrigação pelo
devedor principal) e solidária (qualquer dos sujeitos pode
ser compelido ao adimplemento da obrigação, sem ordem de
preferência).289
Isso quer dizer que, em alguns casos, outras pessoas, além
do chamado contribuinte, por manterem proximidade com o
fato ao redor do qual é formada a relação jurídica tributária,
tonio. Curso de direito constitucional tributário... cit., p. 68).
288. Considerando como diferença específica o grau de proximidade que a pessoa
compelida ao pagamento do tributo mantém com o fato jurídico tributário (DARZÉ,
Andréia Medrado. Responsabilidade tributária: solidariedade e subsidiariedade.
São Paulo: Noeses, 2010, p. 138).
289. DARZÉ, Andréia Medrado. Op. cit., p. 138-139.
IPVA.indb 162 06/11/2016 22:38:14
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IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
são escolhidas pela lei para, na condição de responsáveis, res-
ponderem pelo crédito tributário.
Restando fixado que, no caso do IPVA, contribuinte é o
proprietário do veículo automotor. Analisaremos, a seguir,
a questão da responsabilidade ou sujeição passiva indireta,
para esse tributo.
3.4.4.2.1 A responsabilidade tributária e o IPVA
Andréa M. Darzé define responsabilidade tributária
como “norma que colabora para a fixação da sujeição passiva
tributária”.290
A esse respeito também são valiosas as lições de Maria
Rita Ferragut:
(…) o enunciado ‘responsabilidade tributária’ detém mais de
uma definição, posto tratar de proposição prescritiva, relação
e fato. As acepções caminham juntas, já que, em toda aparição
do termo, faz-se possível identificar essas três perspectivas,
indissociáveis.
(…)
Como proposição prescritiva, responsabilidade tributária é nor-
ma jurídica deonticamente incompleta (norma lato sensu), de
conduta, que, a partir de um fato não-tributário, implica a inclu-
são do sujeito que o realizou no critério pessoal passivo de uma
relação jurídica tributária. (…)
A responsabilidade tributária constitui-se, também, numa rela-
ção, vínculo que se estabelece entre o sujeito obrigado a adimplir
com o objeto da obrigação tributária e o Fisco.
Já como fato, a responsabilidade é o consequente da proposição
prescritiva que indica o sujeito que deverá ocupar o polo passivo
da relação jurídica tributária, bem como os demais termos inte-
grantes dessa relação (sujeito ativo e objeto prestacional).
291
290. Idem, p. 139.
291. FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária e o código civil de 2002.
São Paulo: Noeses, 2005, p. 33-34.
IPVA.indb 163 06/11/2016 22:38:14
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Conforme estudado no item 2.10.3 (A lei complementar em
matéria tributária), o art. 146 da CF conferiu competência à
lei complementar para “estabelecer normas gerais em maté-
ria tributária”, compreendendo nestas, especialmente, os ele-
mentos informadores das respectivas relações obrigacionais.
Sendo o sujeito passivo um dos elementos integrantes e
essenciais para que perfaça-se a relação obrigacional tributá-
ria, deve a lei complementar estabelecer critérios, condições
e requisitos para a sua eleição pelo legislador ordinário, de
modo a nortear a instituição dos tributos que competem a
cada ente político.
cionado com status de lei complementar pela Constituição de
1988,292 tratou do tema nos Capítulos IV (“Sujeito Passivo”) e
V (“Responsabilidade Tributária”), do Título II (“Obrigação
Tributária”), integrantes do Livro II (“Normas Gerais de Di-
reito Tributário”), estabelecendo que sujeito passivo “é a pes-
soa obrigada ao pagamento do tributo ou penalidade pecuniá-
ria” (art. 121), dizendo-se contribuinte quando tenha “relação
pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato
gerador” e responsável quando, “sem revestir da condição de
contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa
de lei” (art. 121, parágrafo único, incisos I e II).293
Assim, o diploma tributário estabeleceu normas gerais a
respeito de sujeição passiva, devendo estas serem observadas
292. O § 5º, do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias assegura
validade sistêmica da legislação anterior, naquilo em que não for incompatível com
o novo ordenamento. Ademais, como ensina Paulo de Barros Carvalho, é tradicio-
nal o princípio da recepção, pelo qual evita-se intensa e árdua movimentação dos
órgãos legislativos para o implemento de normas jurídicas que já se encontram
prontas e acabadas, em compatibilidade com o teor dos novos preceitos constitucio-
nais (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário... cit., p. 246).
293. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tri-
butário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em:
nalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014.
IPVA.indb 164 06/11/2016 22:38:14
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IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
pelo legislador ordinário no exercício da competência tribu-
tária, sob pena de violação a reserva de lei complementar im-
Da análise do Código Tributário Nacional, é possível iden-
tificar as seguintes hipóteses de responsabilidade tributária,
ou sujeição passiva indireta, imputadas pelo próprio diploma
legal: (i) responsabilidade por sucessão; (ii) responsabilidade
de terceiros; (iii) responsabilidade por infração.
A responsabilidade por sucessão ou transferência está
disciplinada nos arts. 129 a 133 do CTN294 e prescrevem, em
estreita síntese, que, no caso de ocorrer a sucessão de titula-
ridade de bens por determinados motivos, os novos titulares
passam a responder pelos tributos relativos aos bens adquiri-
dos e devidos até a data da sucessão.
Assim, a determinação do art. 131, I, do CTN,295 pode ter
reflexo para o IPVA, uma vez que o adquirente do veículo au-
tomotor pode ser responsabilizado, exclusiva e integralmente,
pelo tributo incidente antes de sua compra e não pago pelo
antigo proprietário.296
294. Idem.
295. “Art. 131. São pessoalmente responsáveis: I - o adquirente ou remitente, pelos
tributos relativos aos bens adquiridos ou remidos; (…)” (BRASIL. Presidência da
República. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário
Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e
Municípios. Disponível em: .br/ccivil_03/leis/l5172compi-
lado.htm>. Acesso em: 03 mar. 2014).
296. Tal responsabilidade é efetivamente prevista em diversas legislações estaduais.
Como exemplo, tem-se a Lei nº 13.296/2008, do Estado de São Paulo: “Art. 6º. São
responsáveis pelo pagamento do imposto e acréscimos legais: I - o adquirente, em
relação ao veículo adquirido sem o pagamento do imposto e acréscimos legais do
exercício ou exercícios anteriores; (…)” (SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legisla-
tiva. Lei nº 13.296, de 23 de dezembro de 2008. Estabelece o tratamento tributário do
Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA. São Paulo, 23 dez.
2008) e a Lei nº 14.937/2003, do Estado de Mina Gerais: “Art. 6º. O adquirente do
veículo responde solidariamente com o proprietário anterior pelo pagamento do
IPVA e dos acréscimos legais vencidos e não pagos. (...)” (MINAS GERAIS. Secreta-
ria da Fazenda. Lei nº 14.937, de 23 de dezembro de 2003. Dispõe sobre o Imposto
sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA - e dá outras providências.
IPVA.indb 165 06/11/2016 22:38:14
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Além disso, a sucessão causa mortis, prevista nos inci-
sos II e III do mesmo artigo,297 também pode ser aplicada ao
IPVA, sendo que o dever de pagar o tributo passa integral-
mente para o espólio, antes da partilha, ou para os herdeiros
e legatários, até o limite de seus respectivos quinhões.
E, pela sucessão empresarial ou negocial (arts. 132 e 133,
do CTN298) também se pode transferir para aqueles que ad-
quirirem empresas, fundos de comércio ou estabelecimentos
comerciais, a responsabilidade por IPVA devido e não pago
pelas pessoas adquiridas.
A responsabilidade denominada “de terceiros” é discipli-
nada nos arts. 134 e 135 do CTN.
Em tais hipóteses, o legislador previu fatos ilícitos a en-
sejar a responsabilização dos sujeitos, conforme as seguintes
condições: (i) no art. 134, exigem-se dois requisitos para a im-
putação de responsabilidade tributária aos agentes ali elenca-
dos, a intervenção ou omissão de um dever que lhes competia
e a impossibilidade de exigência do cumprimento da obri-
gação pelo contribuinte; (ii) já o art. 135 pressupõe a práti-
ca, pelo sujeito, de atos com excesso de poderes ou infração a
Disponível em: .br/empresas/legislacao_tributaria/leis/
l14937_2003.htm>. Acesso em: 24 mar. 2014).
297. “Art. 131 do CTN. São pessoalmente responsáveis: (...) II - o sucessor a qual-
quer título e o cônjuge meeiro, pelos tributos devidos pelo de cujus até a data da
partilha ou adjudicação, limitada esta responsabilidade ao montante do quinhão do
legado ou da meação; III - o espólio, pelos tributos devidos pelo de cujus até a data
da abertura da sucessão” ( BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172, de 25
de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas
gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em:
.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm>. Acesso em: 03
mar. 2014).
298.
“Art. 132. A pessoa jurídica de direito privado que resultar de fusão, transforma-
ção ou incorporação de outra ou em outra é responsável pelos tributos devidos até à
data do ato pelas pessoas jurídicas de direito privado fusionadas, transformadas ou
incorporadas. (…) Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que ad-
quirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comer-
cial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou
outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relati-
vos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato: (…)” (ibid.).
IPVA.indb 166 06/11/2016 22:38:14
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IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
lei, contrato social ou estatutos, para nele recair a obrigação
tributária.
Já as hipóteses de responsabilidade que o código chama
de “por infração”, podem ser extraídas da interpretação dos
arts. 136 a 138.
Aqui, também tem responsabilização atribuída a tercei-
ros, pela prática de atos ilícitos, razão pela qual consideramos
inapropriada a diferença terminológica feita pelo diploma tri-
butário e a consignamos aqui apenas para fins didáticos.
Mais especificamente, o art. 137 do CTN prevê a respon-
sabilidade do agente por conta da realização (i) de infrações
conceituadas por lei como crimes ou contravenções; (ii) de
infrações em cuja definição o dolo específico do agente seja
elementar e (iii) de infrações que decorram direta e exclusiva-
mente de dolo específico.
Além das hipóteses acima citadas, o Código Tributário
Nacional, em seu art. 128, previu a possibilidade de o ente
competente para instituição do tributo estabelecer novas re-
lações de responsabilidade:
Sem prejuízo do disposto neste Capítulo, a lei pode atribuir de
modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a ter-
ceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação,
excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a
este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da re-
ferida obrigação.
299
Da análise do dispositivo constrói-se que são requisitos
para a criação de nova hipótese de responsabilidade, pelo le-
gislador ordinário: (i) que seja feita por meio de lei e (ii) que o
responsável eleito esteja vinculado ao fato gerador da obriga-
ção tributária.
299. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tri-
butário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em:
nalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014.
IPVA.indb 167 06/11/2016 22:38:14
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Dessa forma, o legislador ordinário não possui liberdade
plena para impor responsabilidade tributária ao seu talante.
Ao contrário, está adstrito à competência tributária que lhe
foi atribuída, devendo, para instituição de nova norma de res-
ponsabilidade, eleger pessoa que esteja economicamente vin-
culada ao fato apto a desencadear a incidência tributária.
A esse respeito assevera Hugo de Brito Machado:
Com efeito, denomina-se responsável o sujeito passivo da obri-
gação tributária que, sem revestir a condição de contribuinte,
vale dizer, sem ter relação pessoal e direta com o fato gerador
respectivo, tem seu vínculo com a obrigação decorrente de dis-
positivo expresso da lei.
Essa responsabilidade há de ser atribuída a quem tenha relação
com o fato gerador, isto é, a pessoa vinculada ao fato gerador da
respectiva obrigação (art. 128, CIN). Não uma vinculação pes-
soal e direta, pois em assim sendo configurada está a relação de
contribuinte. Mas é indispensável uma relação, uma vinculação,
com o fato gerador para que alguém seja considerado responsá-
vel (…).
300
Com tais lições, conclui-se que somente pode figurar
como sujeito passivo do IPVA aquele que tenha relação com a
propriedade do veículo automotor (fato jurídico apto a desen-
cadear a incidência do imposto), direta (contribuinte) ou in-
diretamente (responsável, conforme arts. 121 e 128 do CTN),
ou que, pelo acontecimento de algum dos fatos previstos nos
arts. 129 a 138 do CTN (sucessão, prática de atos com excesso
de poder ou infração à lei etc.), deverá compor essa posição na
relação obrigacional.
3.4.5 Critério quantitativo
No critério quantitativo, encontramos a chave para a de-
terminação da dívida que o sujeito passivo deve pagar e que o
sujeito ativo tem o direito subjetivo de exigir.
300. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 34. ed. São Paulo: Sarai-
va, 2013, p. 169-170.
IPVA.indb 168 06/11/2016 22:38:14
169
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TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Compõem o critério quantitativo a base de cálculo e a alí-
quota. Uma das funções da base de cálculo é medir a intensi-
dade do núcleo factual descrito pelo legislador, recebendo a
complementação da alíquota. Com a combinação de ambas,
chega-se ao montante do débito tributário.
Assim, para a identificação do fato sobre o qual incide o
tributo, tem grande importância o critério quantitativo. Isso
porque, enquanto o critério material é chamado de núcleo da
hipótese de incidência, composto pelo verbo e complemento,
que descreve abstratamente uma atuação estatal ou um fato
do particular, o critério quantitativo, no âmbito da base de cál-
culo, mensura a intensidade da conduta praticada pela Admi-
nistração ou pelo contribuinte, conforme o caso.
Dessa forma, a base de cálculo é a dimensão da própria
materialidade do tributo.
No entendimento do Prof. Paulo de Barros Carvalho,301 a
base de cálculo possui três funções: a) função mensuradora,
pois a ela cabe medir as proporções reais do fato; b) função
objetiva, visto que determina o débito e c) função comparati-
va, pois, em comparação com o critério material da hipótese,
é capaz de confirmar, afirmar ou infirmar o correto elemento
material do antecedente normativo.
Assim, exige-se uma correlação lógica entre a base de
cálculo e a hipótese de incidência do tributo, para que o con-
tribuinte seja tributado nos termos da Constituição Federal.
No caso do IPVA, o valor a ser tomado para fins de quan-
tificação do gravame há de corresponder à medida do fato
jurídico tributário, consistindo, portanto, no valor venal do
veículo automotor.302
301. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário... cit., 2013.
302. Na conceituação atribuída pelo Dicionário Houaiss, o valor venal é aquele “que
um produto pode obter em decorrência das circunstâncias de mercado, a despeito
de seu valor real ou dos custos de produção” (FIGUEIREDO, Cândido; VILLAR,
Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Op. cit. ).
IPVA.indb 169 06/11/2016 22:38:14
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Corroborando com esse entendimento é a posição de
Marcelo Viana Salomão:
Assim, o que a leitura de todos os artigos constitucionais que
desenham o arquétipo tributário dos impostos e, em especial os
que incidem sobre a propriedade, nos dá é que a base de cálculo
deles necessariamente deverá ser o valor do bem.
E nem poderia ser diferente, pois, se o fato imponível é ser pro-
prietário de um bem, o que revela a riqueza do sujeito passivo é
exatamente o valor do referido bem.
Em termos mais jurídicos, tal se dá porque a base de cálculo é
exatamente a mensuração da hipótese de incidência. Ou seja, a
base de cálculo sempre deve refletir o valor da situação fática
que acarreta a incidência do imposto.
303
O valor do veículo a ser utilizado para fins de medição da
base de cálculo pode variar de acordo com a situação em que
este encontra-se.
Tratando-se de veículo novo, por exemplo, os Estados
usualmente determinam que a base de cálculo corresponde
ao valor de aquisição do bem, valor que constar no contrato de
compra e venda do automóvel ou na respectiva nota fiscal.304
303. SALOMÃO, Marcelo Viana. Das inconstitucionalidades do IPVA sobre a pro -
priedade de aeronaves. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, Dialética,
n. 13, 1996, p. 53.
304.
A Lei nº 13.296/2008, do Estado de São Paulo assim determina: “Art. 7º. A base de
cálculo do imposto é: (...) II - na hipótese do inciso II e X, alínea “c”, do artigo 3º desta
lei, [veículo novo] o valor total constante do documento fiscal de aquisição do veículo
pelo consumidor; (…)” (SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa. Lei nº 13.296,
de 23 de dezembro de 2008. Estabelece o tratamento tributário do Imposto sobre a Pro-
priedade de Veículos Automotores – IPVA. São Paulo, 23 dez. 2008).A Lei nº
6.999/2001, do Estado do Espírito Santo: “Art. 11. A base de cálculo do Imposto é: I o
valor constante do documento fiscal relativo à operação, acrescido do valor de opcio-
nais, acessórios, inclusive modificações, frete e seguro, no caso de primeira aquisição
de veículo automotor por consumidor final, junto ao fabricante, revendedor ou
importador; (…)” (ESPÍRITO SANTO. Assembleia Legislativa. Lei nº 6.999/2001. Dis-
põe sobre o Imposto dobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA, consoli-
dando e atualizando as normas do tributo e dá outras providências. Disponível em:
.br/antigo_portal_ales/images/leis/html/6.999.htm>. Acesso em:
12 abr. 2014).
IPVA.indb 170 06/11/2016 22:38:14
171
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
Na hipótese de veículo importado, o valor considerado
para a base de cálculo é aquele constante no documento de
importação.
Cumpre destacar, a esse respeito, que diversos Estados
determinam que, no caso de veículos importados, a base de
cálculo do IPVA corresponde ao valor constante no documen-
to de importação acrescido dos tributos e quaisquer despesas
aduaneiras relativos à importação, ainda que não recolhidos
pelo importador.305
Tais previsões são merecedoras de censuras, uma vez que
os tributos e despesas incidentes sobre a operação de impor-
tação não compõem o valor do veículo, não revelando, assim,
a riqueza passível de tributação pelo IPVA.
Já no caso de veículos usados, a base de cálculo deve cor-
responder ao seu valor de mercado ou ao valor de venda do
bem em condições normais de mercado.306
Normalmente, as leis estaduais adotam uma pauta de va-
lores, ou seja, fixam as bases de cálculo do imposto segundo da-
dos do mercado para determinado exercício.307
305. A título exemplificativo, tem-se a Lei nº 2.877/97, do Estado do Rio de Janeiro:
“Art. 6º. A base de cálculo do imposto é o valor venal do veículo automotor. (…) Art.
9º. Veículos novos ou usados, importados diretamente do exterior pelo consumidor
final, terão como base de cálculo o valor constante do documento de importação,
acrescido dos valores dos tributos e quaisquer despesas aduaneiras devidos pela
importação, ainda que não recolhidos pelo importador (…).” (RIO DE JANEIRO.
Assembleia Legislativa. Lei nº 2.877, de 22 de dezembro de 1997. Dispõe sobre o im-
posto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA). Disponível em:
alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/b24a2da5a077847c032564f4005d4bf2/
fa1a422b516211130325657a0064293f?OpenDocument>. Acesso em: 23 abr. 2014).
No mesmo sentido é a Lei nº 13.296/2008, do Estado de São Paulo: “Art. 7º. A base
de cálculo do imposto é: (…) III - na hipótese do inciso III do artigo 3º desta lei, o
valor constante do documento de importação, acrescido dos valores dos tributos
devidos em razão da importação, ainda que não recolhidos pelo importador; (…)”
(SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa. Lei nº 13.296, de 23 de dezembro de
2008. Estabelece o tratamento tributário do Imposto sobre a Propriedade de Veícu-
los Automotores – IPVA. São Paulo, 23 dez. 2008).
306. Nesse sentido, manifesta-se Regina Helena Costa (COSTA, Regina Helena. Op.
cit., p. 394).
307.
O Supremo Tribunal Federal considera constitucional a fixação da base de
IPVA.indb 171 06/11/2016 22:38:14
172
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Adotam-se valores médios para as diferentes classes de
veículos, de acordo com a marca, tipo, especificações do fabri-
cante, ano de fabricação, depreciação, dentre outros, para apro-
ximar-se do valor venal do bem.308
No que tange à alíquota, esta não pode ser excessiva, de
modo que ofenda a capacidade contributiva, o que viria a carac-
terizar confisco, proibido pelo comando do art. 150, IV, da CF.
Além disso, a Emenda Constitucional nº 42, de 2003, incluiu
o parágrafo 6º no art. 155 da CF,309 dispondo sobre a possibilida-
de do Senado Federal fixar alíquotas mínimas e do ente tribu-
tante instituí-las de forma diferenciada em razão do tipo e uti-
lização do veículo,310 concretizando o primado da seletividade.
cálculo do IPVA pelo Poder Executivo, caso esteja de acordo com os parâmetros fixa-
dos previamente em lei. Assim, foi o julgamento do Agravo de Instrumento nº 167.500/
SP, de relatoria do Ministro Ilmar Galvão: “Não há que se considerar que o lançamen-
to do imposto feito com base em valor fixado pela Administração à vista dos critérios
e parâmetros da lei, colide com as disposições constitucionais focalizadas, como en-
tendeu a agravante” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no
Agravo de Instrumento nº 167.500-SP. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Julgamento: 12
set. 1995. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJ, 13 out. 1995).
308.
Sobre a base de cálculo do IPVA para veículos usados, cita-se a Lei nº 6.999/2001,
do Espírito Santo: “Art. 11. A base de cálculo do Imposto é: (…) V – o valor médio de
mercado divulgado em tabelas elaboradas pela Secretaria de Estado da Fazenda, no
caso de veículos automotores usados, observando-se, no mínimo: a) em relação aos
veículos aéreos, o fabricante e o modelo; b) em relação aos veículos aquáticos, a po-
tência do motor, o comprimento, o tipo de casco e o ano de fabricação; c) em relação
aos veículos terrestres, a marca, o modelo, a espécie e o ano de fabricação. § 1º As ta-
belas a que se refere o inciso V serão publicadas anualmente no mês de dezembro do
exercício imediatamente anterior ao da cobrança do imposto, com valores expressos
em Valor de Referência do Tesouro Estadual – VRTE, ou em qualquer outro indexa-
dor que vier a substitui-lo. (...)” (ESPÍRITO SANTO. Assembleia Legislativa. Lei nº
6.999/2001. Dispõe sobre o Imposto dobre a Propriedade de Veículos Automotores –
IPVA, consolidando e atualizando as normas do tributo e dá outras providências. Dis-
ponível em: .br/antigo_portal_ales/images/leis/html/6.999.htm>.
Acesso em: 12 abr. 2014).
309. “Art. 155. (…) § 6º O imposto previsto no inciso III: I - terá alíquotas mínimas
fixadas pelo Senado Federal; II - poderá ter alíquotas diferenciadas em função do
tipo e utilização” (BRASIL. Presidência da República. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: .planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014).
310. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de rejeitar a possibi-
lidade de alíquota diferenciada do IPVA para veículos importados, sob o argumento
IPVA.indb 172 06/11/2016 22:38:14
173
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
A fixação das alíquotas mínimas pelo Senado, todavia, ain-
da não se concretizou para o IPVA, ausência esta que contribui
para o fenômeno da guerra fiscal que permeia o imposto, pois
permite que os Estados adotem alíquotas cada vez mais baixas
com o intuito de atrair o registro de veículos em seus territórios.
Com relação à seletividade das alíquotas, percebe-se que
foram dois os critérios utilizados pelo legislador constituinte
para balizar a atuação dos Estados e do Distrito Federal: a espé-
cie do veículo automotor e sua utilização.
No caso, por exemplo, de veículos destinados a transporte
de carga e de passageiros, pode-se fixar uma alíquota menor do
que a aplicável para veículos de passeio.311
Cumpre destacar que a fixação do critério quantitativo do
IPVA não se submete à observância do princípio da anteriori-
dade especial de noventa dias (conforme art. 150, § 1º, da CF),
devendo, todavia, ocorrer no exercício anterior ao da exigência
do imposto.312
de que, conforme art. 152 da CF, é vedado aos Estados e ao Distrito Federal estabe-
lecer tratamento tributário diferenciado em razão da procedência ou destino do
bem. No caso, o tratamento desigual significaria uma nova tributação pelo fato ge-
rador da importação (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no
Recurso Extraordinário nº 367.785-RJ. Relator: Ministro Eros Grau. Julgamento: 09
maio 2006. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: 02 jun. 2006).
311. Como exemplo da utilização da seletividade na fixação das alíquotas do IPVA,
cita-se a Lei nº 13.296/2008, do Estado de São Paulo: “Art. 9º. A alíquota do imposto,
aplicada sobre a base de cálculo atribuída ao veículo, será de: I - 1,5% (um inteiro e
cinqüenta centésimos por cento) para veículos de carga, tipo caminhão; II - 2%
(dois por cento) para: a) ônibus e microônibus; b) caminhonetes cabine sim-
ples; c) motocicletas, ciclomotores, motonetas, triciclos e quadriciclos; d) máquinas
de terraplenagem, empilhadeiras, guindastes, locomotivas, tratores e similares; III
- 3% (três por cento) para veículos que utilizarem motor especificado para funcio-
nar, exclusivamente, com os seguintes combustíveis: álcool, gás natural veicular ou
eletricidade, ainda que combinados entre si; IV - 4% (quatro por cento) para qual-
quer veículo automotor não incluído nos incisos I a III deste artigo” (SÃO PAULO
(Estado). Assembleia Legislativa. Lei nº 13.296, de 23 de dezembro de 2008. Estabele-
ce o tratamento tributário do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automoto -
res – IPVA. São Paulo, 23 dez. 2008).
312.
Em atendimento ao art. 150, III, “b”, CF: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garan-
tias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e
aos Municípios: (…) III - cobrar tributos: (…) b) no mesmo exercício financeiro em que
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
3.4.6 Síntese da regra-matriz de incidência tributária
do IPVA
Portanto, o fato jurígeno, colhido do mundo social pelo
constituinte e que comporta juridicização pelo operador
do Direito, mediante o fenômeno da incidência da norma,
é a aquisição ou manutenção da propriedade de veículos
automotores.
Destarte, do arranjo sintático da regra-matriz de incidên-
cia tributária com a linguagem do direito positivo, conforme
arquétipo constitucionalmente traçado para o IPVA, tem-se a
seguinte estrutura da hipótese normativa:
(i) critério material: ser proprietário de veículo automotor;
(ii) critério espacial: limites territoriais do Estado ou Dis-
trito Federal em que está registrado o veículo automotor, que
deve coincidir com o local de domicílio do proprietário.
(iii) critério temporal: instante fixado em lei, a partir do
momento em que a propriedade é adquirida ou se mantém
(instante da aquisição, na hipótese de veículo novo; 1º de ja-
neiro de cada ano em caso veículo usado; se veículo importa-
do, o átimo de sua entrada no território nacional; e, tratando-
se de veículo adquirido em leilão, a data de sua arrematação).
Já o consequente normativo pode ser demarcado da se-
guinte forma:
(i) critério pessoal: o sujeito ativo é o Estado ou Distrito
Federal em que estiver registrado o veículo automotor; e, o
sujeito passivo é o proprietário do veículo automotor (contri-
buinte) ou quem, eleito por lei, tenha relação (vínculo econô-
mico) com o exercício dessa propriedade (responsável);
haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; (…)” (BRASIL. Presidência da
República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10
fev. 2014).
IPVA.indb 174 06/11/2016 22:38:14
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IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
(ii) critério quantitativo: a base de cálculo é o valor venal
do veículo automotor; e a alíquota, o percentual fixado em lei
estadual, com observância ao art. 155, § 6º, incisos I e II, da CF.
Assim, os Estados e o Distrito Federal somente poderão
exercitar sua competência, desde que respeitada a estrutura
constitucionalmente traçada para o IPVA, conforme critérios
e condições acima detalhados.
3.5. A constituição da obrigação tributária relativa ao
IPVA
A norma geral e abstrata, para alcançar o inteiro teor de
sua juridicidade e ser efetivamente aplicada na regulamenta-
ção de condutas, requer a edição de norma individual e con-
creta. Nesse sentido, o lançamento tributário é o ato admi-
nistrativo mediante o qual se insere no sistema jurídico uma
norma individual e concreta, declarando o acontecimento do
fato jurídico tributário, identificando os elementos da obriga-
ção, formalizando o crédito e estipulando os termos da sua
exigibilidade313.
Trata-se do ato de aplicação da lei ao caso particular, ou
seja, a formalização da obrigação tributária, que se obtém
pela identificação do sujeito passivo, a determinação da base
de cálculo e da alíquota aplicável, tornando líquida a dívida.
O Código Tributário Nacional prescreve que são três as
modalidades de lançamento: (i) lançamento direto, ou por
ofício; (ii) misto, ou por declaração; e (iii) por homologação.
313. O Código Tributário Nacional prescreve em seu art. 142:
“Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito
tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente
a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a
matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo
e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.”( BRASIL. Presidência da
República. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributá-
rio Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Esta-
dos e Municípios. Disponível em: .br/ccivil_03/leis/l5172.
htm>. Acesso em: 21 out. 2016.)
IPVA.indb 175 06/11/2016 22:38:14
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LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Essas modalidades revelam singularidades procedimentais,
se diferenciando pelo grau de participação do Estado e cola-
boração do administrado na celebração do ato de constituição
da obrigação tributária.
No chamado lançamento de ofício, disciplinado pelo art.
149 do CTN314, o ato é praticado unicamente pela Administra-
ção, que introduz norma individual e concreta no ordenamen-
to jurídico, constituindo o fato jurídico tributário e fazendo
irromper o laço obrigacional correspondente.
No lançamento misto ou por declaração, ambas as par-
tes participam do procedimento. O contribuinte presta as in-
formações fáticas necessárias à autoridade fazendária e esta
emana o ato do lançamento, conforme ditames do art. 147 do
CTN315.
Em ambos os casos, ocorre a atuação efetiva da adminis-
tração pública, constituindo a obrigação tributária. Por tal ra-
zão, exige-se a abertura de oportunidade para o contribuinte
impugná-lo, oportunizando-se o contraditório e a ampla defe-
sa, inerentes ao devido processo legal. Formalizada a resistên-
cia do administrado à pretensão fiscal, tem início o processo
administrativo.
Já no denominado lançamento por homologação, a lei
confere competência ao contribuinte para construir o fato ju-
rídico e a obrigação tributária que dele decorre. Nesse caso é
o próprio particular que emite a norma individual e concreta,
não havendo participação da administração pública. Diante
desse cenário, critica-se a denominação contraditória dada
pelo Código Tributário Nacional que, de um lado, afirma que
lançamento é atividade privativa da administração pública e,
314. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tri-
butário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em:
nalto. gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 21 out. 2016.
315. Idem.
IPVA.indb 176 06/11/2016 22:38:14
177
IPVA
TEORIA, PRÁTICA E QUESTÕES POLÊMICAS
de outro, denomina de lançamento por homologação a hipó-
tese de constituição da obrigação tributária pelo particular.
A impropriedade terminológica é visível, pois o ato de
“homologação” pela administração, na verdade, é uma fisca-
lização dos atos do contribuinte, não sendo apto a conferir o
caráter de lançamento à atividade realizada pelo sujeito pas-
sivo. Isso não retira, todavia, o poder conferido ao particular
para introdução de normas individuais e concretas no sistema
jurídica e constituição da obrigação tributária, nos moldes do
art. 150 do CTN316.
Feitas essas explanações, cabe-nos analisar qual a moda-
lidade de constituição do crédito tributário aplicável ao IPVA.
A esse respeito, houve diferentes posições no âmbito do
STJ, sendo que a Primeira Turma da corte já decidiu tratar-
se de tributo sujeito a lançamento por homologação, ao passo
que a Segunda Turma reconheceu ser o imposto sujeito ao
lançamento de ofício, senão vejamos:
“TRIBUTÁRIO – IPVA – LANÇAMENTO – SUPOSTO PAGA-
MENTO ANTECIPADO.
O IPVA é tributo cujo lançamento se faz por homologação: o
contribuinte recolhe o tributo, sem prévio exame do Fisco. Tal
recolhimento opera a extinção condicional do crédito tributário.
A extinção definitiva somente acontece após a homologação do
pagamento.”
317
“TRIBUTÁRIO. IPVA. FORMA DE LANÇAMENTO.
1. O crédito tributário do Imposto sobre a Propriedade de Veícu-
los Automotores constitui-se de ofício, sujeitando-se às prescri-
ções legais dessa modalidade de lançamento.
2. Recurso ordinário conhecido e provido
318
.”
316. Idem.
317. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de Se-
gurança nº 12384/RJ. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. Julgamento: 04
jun. 2002. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJe, 12 jun. 2002.
318. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de
IPVA.indb 177 06/11/2016 22:38:14
178
LUÍSA CRISTINA MIRANDA CARNEIRO
Em 2016, com o julgamento do REsp 1320825 / RJ319, a
controvérsia foi sedimentada no âmbito dessa Corte Superior,
prevalecendo a posição de que o IPVA está sujeito a lança-
mento de ofício, tanto na aquisição de automóvel novo, quan-
to no início de cada exercício. Esse lançamento pode ser efeti-
vado por qualquer meio idôneo, seja pelo o envio de carnê ao
particular ou mesmo pela simples publicação de calendário
de pagamento, com instruções para a sua efetivação direta
pelo contribuinte.
Dessa forma, a cientificação do contribuinte para recolhi-
mento do IPVA, mesmo eletronicamente, com a publicação de
instruções, valores e prazos de pagamento, perfectibiliza, no
entendimento do STJ, a constituição da obrigação tributária.
O efeito prático desse entendimento é que, uma vez re-
conhecida a regular constituição do crédito tributário, não há
mais que falar em prazo decadencial, mas, sim, em prescricio-
nal, cuja contagem deve se iniciar no dia seguinte à data do
vencimento para o pagamento da exação, tendo em vista que
é a partir desse momento que o crédito tributário passa a ser
exigível ao sujeito passivo.
Segurança nº 12970/RJ, Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins. Julgamento: 21
ago. 2003. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação:DJe 22 set. 2003.
319. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1320825 / RJ. Rela-
tor: Ministro Gurgel de Faria. Julgamento: 10 ago. 2016. Órgão Julgador: Primeira
Seção. Publicação:Dje 17 ago. 2016.
IPVA.indb 178 06/11/2016 22:38:14

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