Competência para normas gerais relativas ao trabalho subordinado público na CR/88 (?): justificativas, necessidade e consequências jurídico-constitucionais

AutorAna Cláudia Nascimento Gomes
CargoMestre e Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas62-85

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1. Introdução

Há algum tempo temos nos debruçado sobre os "mistérios jurídicos" relacionados ao tema da Função Pública (FP). A nossa maior motivação foi também a nossa maior curiosidade: entender as diferenças (e a atualidade ou não das mesmas) do tratamento jurídico ofertado ao trabalho subordinado prestado no setor público do trabalho subordinado prestado no setor privado, bem como verificar a existência (e, em caso positivo, a sua extensão) de um denominador comum jusfundamental do trabalhador subordinado (em geral).

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No Brasil, a subsistência daquelas diferenças é ainda muito nítida, podendo se afirmar haver mesmo uma dicotomia jurídica entre o trabalho subordinado público e o privado. Tal radicalização foi e é motivada (não só no Brasil!) por uma série de razões: (i) iihistóricas (o próprio surgimento da FP como fenômeno muito anterior ao trabalho industrial, próprio do Direito do Trabalho, decorrente da necessidade do Estado/Administração realizar as suas funções/tarefas e ter um corpo funcionarial incumbido dessas atividades); (ii) doutrinárias (a compreensão da FP como objeto natural do Direito Administrativo1; ao reverso do trabalho subordinado originário do Capitalismo, então foco de proteção do Direito do Trabalho); e até (iii) sociológicas (a passagem de uma FP de cunho aristocrático-patrimonial para uma de cunho profissional-weberiano, trazendo consigo, implicitamente, um certo ethosde "categoria à parte" para os servidores públicos relativamente aos trabalhadores comuns2).

Recentemente, todavia, têm se esmaecido os muros que separam o trabalho subordinado público do privado, também por variadas ordens de causas: (i) iihistóricas (o surgimento do Estado Social e, como ele, da Administração Prestacional e Empresarial, conduzindo ao aparecimento da figura do "funcionário-operário"; a reivindicação dos direitos coletivos da FP); (ii) jurídicas (a internacionalização, a constitucionalização e jusfunda-mentalização desses direitos coletivos funcionariais, tais como o direito à liberdade sindical, o direito de greve e o de negociação coletiva lato sensu; o intercâmbio entre os sistemas fechado e aberto de FP decorrente da aproximação dos grandes sistemas jurídicos romanístico e consuetudinário); e (iii) sociais (a entrada da "categoria profissional" dos funcionários públicos, via de regra, na classe média da população economicamente ativa).

Não obstante isto, ainda são profundas as valas que separam o trabalho subordinado público do privado, mormente no Brasil, frise-se. O presente

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texto pretende abordar (e de modo perfunctório, é certo, pela sua própria dimensão) apenas uma dessas fendas, específica do caso brasileiro, propondo uma solução que consideramos constitucionalmente adequada (e mesmo necessária) no quadro da Constituição da República Federativa de 1988 (CR/88), a fim de que sejam diminuídas aquelas distâncias jurídicas. Afinal, a aproximação do disciplinamento do trabalho subordinado público ao do trabalho subordinado privado nos parece ser efetivamente um fenômeno inequívoco e, de certo modo, mesmo inevitável num breve espaço de tempo. Os operadores nacionais do Direito do Trabalho deverão estar preparados para essa nova realidade.

In casu, trataremos da questão relacionada à "multiplicidade legislativa" decorrente da compreensão que se estabeleceu sobre o "regime jurídico único" constante art. 39, caput, da CR/88 e à ausência de alguma unidade (e, assim, de um certo grau de isonomia) entre os direitos e deveres dos servidores públicos das várias esferas de governo; o que é sempre imprescindível numa federação (sob o norte da "união na diversidade" ou "diversidade em torno de uma unidade"3).

Tal "abundância legislativa" tem trazido à tona a necessidade de ser configurado legalmente um regime funcional que assegure um mínimo de denominador comum entre os entes federados; carência esta que já se afigura visível através de uma leitura acurada do próprio texto constitucional.

Vejamos se a figura legislativa das "normas gerais" poderia ser útil nesse intento. É o que vislumbramos. Vejamos.

2. A competência legislativa "concorrente cumulativa" dos entes federados em matéria de regime de trabalho público Os milhares de legisladores brasileiros. Um complicador na manutenção da unidade/isonomia federativa no plano funcional

Inicialmente, para darmos conta daquela "complexidade legislativa" no tema da FP, devemos lembrar que, no plano interno, segundo o art. 18 da Redação originária da CR/88 em vigor, por força da decisão da ADI n. 2.135-4, com publicação no DOU em CR/88, a organização político--administrativa da nossa federação compreende, para além da União, dos

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26 Estados-membros e do Distrito Federal, 5.565 Municípios4. Em suma, agrupando-se os entes federados, chegamos a um de total de 5.593.

Trata-se, portanto, de uma federação sui generis5, não só pela qualificação dos Municípios como entes federados (o que não se verifica em termos de configuração clássica do Federalismo6); mas, principalmente, pela elevada quantidade de unidades federativas, pela extensão do território e diversidade regional existente neste. Todos os entes federados são dotados de autonomia, conforme consagra aquele mesmo dispositivo da CR-88, que deve ser constatada, pelo menos, nessa tripla vertente: (ii) autonomia político-administrativa (incluindo a autonomia política, legislativa e de auto-administração); (ii) autonomia financeira; e (iii) autonomia orçamentária.

No caso brasileiro, a CR/88 estabeleceu a chamada divisão vertical de poderes (como decorrência do princípio da separação de poderes, um dos núcleos da constituição material7), através da distribuição de competências entre a União (arts. 21, 22, 23 e 24), os Estados-membros (arts. 23,24 e 25, § 1e), os Municípios (arts. 23, 24 e 29) e o Distrito Federal (arts. 23, 24 e 32, § 1e). Assim, tem-se: competência exclusiva da União para determinados assuntos (art. 21); competência privativa da União para legislar sobre determinadas matérias, com possibilidade de autorização, por lei complementar, de que os Estados-membros legislem sobre questões específicas (art. 22, parágrafo único); competência comum dos entes federativos, usualmente de caráter executivo-administrativo (art. 23); competência legislativa concorrente da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal para legislar sobre outras determinadas matérias, sendo que neste caso à União apenas compete a edição de "normas gerais" (art. 24, § 1e).

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A distribuição de competências não foi, como sabemos, exatamente "equânime", posto que a União detém muito mais amplas e importantes competências (na qualidade mesmo de entidade central do Direito Público interno), além de uma privilegiada autonomia financeiro-orçamentária relativamente aos demais entes (art. 153) e uma vasta competência legislativa que praticamente secundariza as legislações locais8.

Não suficiente, na jurisprudência constitucional, o denominado "princípio da simetria" não raras vezes tem sido utilizado como critério hermenêutico afim de, por um lado, limitar a autonomia política dos Estados-membros; e, por outro, repetir certos modelos da Constituição Federal no âmbito das constituições estaduais. O efeito também pode ser indiretamente repercutido na organização dos poderes horizontais dos Municípios9. E, assim mesmo, apesar do modelo federativo ser o "solo fértil" para a aplicação do princípio da subsidiariedade, com reforço do poder local10.

No que tange à competência legislativa dos entes federados em matéria de "regime da FP", a doutrina jusadministrativa debruçou-se, logo após a promulgação da CR/88, sobre a natureza e o conteúdo do chamado "regime jurídico único" (art. 39, caput, redação originária, CR/88), partindo-se de um preconceito apriorístico relativamente ao então "regime celetista", em vista da sua utilização deturpada (leia-se, sem preocupações e vinculações de ordem jurídico-públicas).

Nesse cenário, seria mesmo natural que se erigisse o "regime jurídico único" como algo totalmente contrário às velhas práticas institucionalizadas por meio do "regime celetista"; sendo, assim, preferencialmente de natureza jurídico-pública e estatutária11. O resultado desse debate jurídico12 — infelizmente demasiadamente reducionista a uma de apenas duas opções ("regime celetisa" ou "regime estatutário") — logo desaguou no STF.

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Por ocasião do julgamento da ADI n. 492-1 DF (DOU 12.3.1993)13, quando foram declaradas inconstitucionais as alíneas d (direito de "negociação coletiva") e e (direito de "ajuizamento, individual e coletivamente, frente à Justiça do Trabalho") do art. 240 da Lei n. 8.112/9014. Nesta decisão, o STF assentou firmemente o entendimento de que o regime jurídico do servidor público é "estatutário e não contratual"15, sepultando-se no Brasil as teses contratualistas ou consensuais da natureza jurídica do vínculo trabalhador público-Estado16. Somente em anos mais recentes, essas teses têm adquirido novo fôlego e começam a ressurgir, como que das cinzas17.

É fato, entretanto, que apesar dessa jurisprudência constitucional, alguns Estados-membros e muitos municípios da federação brasileira elegeram como o seu "regime jurídico único" o "regime da CLT" (ou não revogaram as leis pré-constitucionais nesse sentido)18.

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De todo modo, a lógica que perpassou a fixação do "regime jurídico único" como um regime de natureza estatutária (publicista, administrativo...

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