A competência normativa das agências reguladoras e o seu controle judicial

AutorEdilson Pereira Nobre Júnior
Páginas105-160
105
CAPÍTULO IV
A COMPETÊNCIA NORMATIVA
DAS AGÊNCIAS REGULADORAS E
O SEU CONTROLE JUDICIAL
(...) vimos a possibilidade de que a lei se converta num a simples
medida técn ica da organiz ação burocrática, sem conexão com a
justiça, e ai nda mais, em um verdad eiro instrument o positivo de
opressão e de “per versão dos ordenamentos juríd icos”, estamos
tomando mais e mais consciência de que o mais perigoso dos
poderes arbitrários é precisamente o do própr io legislador.154
154 ENTERRÍA, Eduardo García de. “La interdicción de la arbitrariedad en la postestad
reglamentaria”. Revista de Administración Pública, número 30, set./dez. de 1959, pp.
155-156. “(...) hemos visto la posibilidad de que la ley se convierta en una simple
medida técnica de la organización burocrática, sin conexión con la justicia, y aún
más, en un verdadero instrumento positivo de opresión y de ‘perversión de los
ordenamientos jurídicos’, estamos tomando más y más conciencia de que el más
peligroso de los poderes arbitrarios es precisamente el del legislador mismo”.
106
EDILSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR
1 – As agências reguladoras no Brasil e sua
função normativa
A regulação independente, pelo arcabouço de competências que
enfeixa, traz de logo a questão de sua adequação ao sistema constitu-
cional onde sua atuação terá lugar.
Essa preocupação foi aventada por Vita l Moreira155 quando, ao
lado do debate sobre a admissibilidade constitucional dos entes regu-
ladores, suscitou mais dois questionamentos, dizendo o primeiro deles
– o qual aqui nos é de interesse – respeito à amplitude dos poderes dos
seus dirigentes.
Por sua vez, é sabido que uma das competências principais das
agências está na elaboração de regras, capazes de vincular terceiros, e,
por isso, é preciso aferi r sua adequação com a constituição. A inda gação
envolve, sem dúvida, a divisão de funções entre os segmentos estatais.
No direito norte-americano, restou admitida, não antes sem
uma controvérsia que terminasse em discussão nos tribunais, a figura
da delegação legislativa para o f im de se legitimar a prer rogativa das
agências em elaborar normas que venham a impor sua obrigatoriedade
aos administrados.156
155 MOREIRA, Vital. Administração autónoma e associações públicas. Coimbra: Coimbra
Editora, 2003, pp. 134-135.
156 A aceitação da delegação legislativa foi patrocinada pela jurisprudência ainda no
século XIX, como o demonstra julgado da Suprema Corte (Wayman v. Southard,
10 Wheat) de 1825, mediante o qual se reconheceu a validade do Federal Process Act
de 1792, na parte onde autorizava as cortes federais a estabelecerem normas sobre
processo. O entendimento se reproduziu no Field v. Clark (143 US 649) de 1892,
no qual se validou lei que, em regulando taxas e isenções a produtos importados de
determinados países, permitiu-se que, diante de determinadas situações, pudesse o
Presidente da República suspender a isenção, prosseguindo no Butterfield v. Stranahan
(192 US 470) de 1903, no qual se entendeu constitucional dispositivo de lei que
delegou ao Secretário do Tesouro a adoção de disposições mínimas para se aferir a
qualidade do chá importado. Posteriormente, no ano de 1928, Hampton Company
v. United States (275 US 394), a Suprema Corte passou a entender, para o fim de
viabilizar as delegações, a necessidade de se vislumbrar um princípio inteligível na
107
CAPÍTULO IV – A COM PETÊNCIA NO RMATIVA DAS AGÊNCIAS...
Por isso, é possível se afirmar, no que concerne a uma categoria
principal de reg ras (rules) elaboradas pelas agências, quais sejam as subs-
tantive ou legislative rules, que estas portam a autoridade de lei formal,
sob a forma de uma delegação legislativa.
A adoção de uma div isão de poderes reconhecida impl icitamente
mediante a di nância da estrut ura de poder, sem preceitos constitucionais
que a delimitassem em termos precisos, permitiu que assim pudesse se
compreender.157
Diversamente, além de consagrar a Constituição de 1988, de
modo expresso, a separação de poderes entre Legislativo, Executivo e
lei de delegação (intelligible principle), inicialmente mediante diretrizes suficientes e
claras (meaningful standards) até chegar à admissão de uma forma mais permissiva e
flexível (meaningless standards). As exceções – as quais não seguiram adiante – su-
cederam com Panama Refining Company v. Ryan (293 US 388) e ALLAN Schechter
Poultry Corporation v. United States (295 US 495), ambos de 1935.
157 O entendimento contrário à delegação – que, segundo SCHWARTZ, American
administrative law. 1ª Ed. Londres: Sir Isaac Pitman & Sons, 1950, pp. 18-19, teria
sua inspiração em lição de John Locke – foi, ainda no dizer do autor SCHWARTZ,
Bernard. American administrative law. 1ª Ed. Londres: Sir Isaac Pitman & Sons, 1950,
p. 26, delineado, na prática, como uma doutrina tendente a impedir uma excessiva
delegação em favor do Executivo, de maneira a representar uma possível abdicação da
própria função legislativa. Daí que referido ponto de vista não impediu integralmente
a delegação, explicitando CARBONELL, Agencias y procedimiento administrativo
nos Estados Unidos de América. Madri: Marcial Pons, 1996, p. 28, como razão para
justificá-la, a circunstância de que, se as leis se legitimam pelo princípio democrá-
tico, a legitimidade da competência normativa das agências deriva da legitimidade
da habilitação que, em seu favor, estipulou o Congresso. Parece ter contribuído
para a afirmação dessa solução, superando as dificuldades que resultavam do Artigo
I da Constituição de 1787, lição constante do Capítulo XLVII de O Federalista,
HAMILTON, A; MADISON, J.; JAY, J. El Federalista. 2ª Ed. Trad. Gustavo R.
Velasco. México: Fondo de Cultura Económica, 2001, pp. 204-206, do qual
cuidou Madison. Influenciado por Montesquieu, a quem atribuiu o mérito de
haver exposto e recomendado à atenção da humanidade as vantagens da divisão de
poderes, argumentou Madison que o autor francês apontou a ausência de liberdade
quando se encontrarem reunidos num mesmo corpo de agentes públicos as funções
legislativas e executivas ou ainda se estas, juntamente com a de julgar, estivessem
igualmente concentradas. Dessa maneira, não quis afirmar ser nocivo que um dos
segmentos estatais viesse a intervir parcialmente nos atos que se encontram sob o
domínio de outro.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT