Competência tributária

AutorRicardo Anderle
Ocupação do AutorDoutor em Direito Tributário pela PUC/SP
Páginas1-65
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COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA
1.1 Linguagem, direito e interpretação
1.1.1 Direito e linguagem
Para estudar o direito, é necessário adotar um método
científico. Define-se método como uma série de regras e técni-
cas para tentar resolver dado problema.1 No estudo do direito,
a reflexão metodológica assume importância na medida em
que se realiza um corte no objeto de estudo a ser descrito, o
que possibilita elaborar proposições coerentes dentro de um
sistema de referência.
Vários são os métodos científicos igualmente válidos para
o estudo do direito, fenômeno cultural reconhecidamente
complexo. Adotamos o método exposto por Paulo de Barros
Carvalho em suas principais obras, Direito Tributário: funda-
mentos jurídicos de incidência e Direito Tributário, linguagem
1. ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O Método
nas Ciências Naturais e Sociais – Pesquisa Quantitativa e Qualitativa. 2 ed. São Pau-
lo: Pioneira, 1999, p. 3.
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RICARDO ANDERLE
e método, cujo referencial teórico é a Filosofia da Linguagem.2
Convém adiantar que não temos a pretensão de resumir a am-
plitude do modelo teórico empreendido pelo citado autor; po-
rém, considerações acerca de pontos relevantes do corte me-
todológico mostram-se pertinentes a fim de demarcar melhor
o campo da proposta cognoscitiva.
Partimos da ideia de que o conhecimento humano surge
e é transmitido por meio da linguagem, essa entendida como
um conjunto de unidades ou signos constitutivos da realida-
de. “Conhecer”, como ensina Paulo de Barros Carvalho, é
“saber proposições sobre”.3 A partir das proposições formu-
ladas pelo sujeito cognoscente, reduzem-se as complexidades
do mundo real, já que os conceitos não podem reproduzir a
realidade.4 O conhecimento, então, não é formado sobre algo
real, mas sobre uma realidade linguística ou conceitual, ou
seja, conhecemos as coisas da forma como as constituímos ou
como as criamos por meio da linguagem. Assim, os fatos são
versões dos fatos, e nossa versão é uma versão de tal versão;
os fatos não provam nada, simplesmente porque não falam,
2. No livro Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, Manfredo
Araújo de Oliveira expõe a mudança, ocorrida no século XX, sobre as noções de
linguagem e conhecimento. O movimento, denominado “giro linguístico” (linguistic
turn), concentra-se na ideia de que toda e qualquer forma de conhecimento pressu-
põe o uso da linguagem. A linguagem não é mais entendida como instrumento do
conhecimento senão como condição primeira. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Re-
viravolta linguístico-pragmática da filosofia contemporânea. 2. ed. São Paulo: Loyo-
la, 2001, passim.
Segundo Francisco Leocata, um dos primeiros a empregar e divulgar a expressão
“giro linguístico” (linguistic turn) foi Rorty, na obra El giro linguístico: Las dificulta-
des metafilosóficas de la linguística, Barcelona, Paidós, 1990. LEOCATA, Francisco.
Persona, Lenguaje y Realidad. Buenos Aires: Educa, 2003, p. 22, nota de rodapé.
3. CARVALHO, Paulo de Barros. IPI – Comentários Sobre as Regras de Interpreta-
ção da Tabela BM/SH (TIPI/TAB). Revista Dialética de Direito Tributário, v. 12,
1996, p. 42.
4. Em Heidegger, a compreensão “torna-se” explicação, porque não pode vir ao
mundo sem linguagem. Conhecer o mundo é uma forma de se compreender, “que
não consiste em intuir intelectualmente a própria atualidade, senão explicá-la por
meio da interpretação”. LEOCATA, Francisco. Persona, Lenguaje y Realidad. Bue-
nos Aires: Educa, 2003, p. 256.
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CONFLITOS DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA ENTRE O ISS, ICMS E IPI
permanecendo no silêncio até serem postos em palavras.5
Citando Nietzsche,6 Dardo Scavino arremata: “Não existem
fatos, só interpretação, e toda interpretação interpreta outra
interpretação”.7
Não se pretende concluir pela ausência de sensações,
percepções ou eventos no mundo real, de forma a atingir um
relativismo absoluto ou nominalismo psicológico. Porém tais
sensações são entendidas como etapas de um processo inter-
pretativo, que somente adquirem o status de conhecimento
quando postos em linguagem. Enfim, a realidade física ou efe-
tiva, que se apresenta no tempo e no espaço, simplesmente
não existe como objeto de conhecimento humano se não for
manifestada em linguagem.8
Como qualquer realidade humana, o direito é represen-
tado por meio da linguagem. Manifesta-se como um conjunto
5. SCAVINO, Dardo. La filosofia actual: pensar sin certezas. Buenos Aires: Paidós,
2000, p. 39.
6. Segundo Lenio Streck, pode-se dizer que é em Nietzsche que se produz uma
ruptura do paradigma metafísico-essencialista vigente desde a antiguidade grega.
Cita a célebre frase: “Há apenas fatos, eu digo: ao contrário, fatos é o que não há: há
apenas interpretações”. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 132.
7. SCAVINO, Dardo, op. cit., p. 36.
8. A obra Hermenêutica jurídica e(m) crise, de Lenio Luiz Streck, faz uma aborda-
gem histórica dos autores que estudaram as relações entre filosofia e linguagem. O
autor enfatiza que, para Platão, a linguagem guardava um caráter secundário, es-
tando presente a concepção de que o real só é conhecido verdadeiramente em si
sem palavras, isto é, sem meditação linguística. A linguagem é entendida como ins-
trumento secundário e não constitutiva da experiência humana, do conhecimento
real. STRECK, Lenio Luiz, op. cit., 2003, p. 115.
Esclarece Francisco Leocata, na obra Persona, Lenguaje y Realidad, que com Witt-
genstein leva-se mais a sério o princípio de que falar é estritamente correlativo com
o pensar, e que, portanto, o pensar não tem primazia e nem autonomia em relação à
linguagem. A partir das Investigações Filosóficas, Wittgenstein passa a entender
que não existe um mundo em si independente da linguagem, ou melhor, só existe o
mundo na linguagem. “A linguagem deixa de ser um instrumento de comunicação
do conhecimento e passa a ser condição de possibilidade para a própria constitui-
ção do conhecimento. Cai por terra, assim, a teoria objetivista (instrumentalista).
Não há essências. Não há relação entre os nomes e as coisas”. LEOCATA, Francis-
co. Persona, Lenguaje y Realidad. Buenos Aires: Educa, 2003, p. 41 e 160.

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