Compliance e o direito do consumidor: aspecto s conceituais

AutorBruno Miragem
Páginas1-17
COMPLIANCE E O DIREITO DO CONSUMIDOR:
ASPECTOS CONCEITUAIS
Bruno Miragem
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), nos cursos de
graduação e no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/UFRGS). Doutor e
Mestre em Direito pela UFRGS. Advogado e parecerista.
Sumário: 1. Introdução – 2. O compliance e a efetividade das normas de proteção do consumidor;
2.1 Compliance e conformação da organização da empresa; 2.2 Compliance e atuação da socie-
dade empresária como fornecedora – 3. Repercussão do compliance na concretização de deveres
de proteção do consumidor; 3.1 Dever de qualidade e compliance; 3.2 Contrato de consumo e
compliance – 4. Síntese conclusiva – 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A atuação das sociedades empresárias no cumprimento da lei não resulta apenas
do risco de aplicação de sanção em caso de violação, senão também de outros incen-
tivos como, por exemplo, a queda do valor de suas ações, o constrangimento pessoal
de seus administradores e empregados perante suas famílias e seu círculo social, e a
própria reputação frente aos seus consumidores.1 Neste sentido, ganha relevância,
para além da licitude da atuação empresarial para precaver-se de sanções, a adoção
de procedimentos que visem prevenir riscos de atuação irregular.
O compliance é reconhecido como instrumento para melhor governança da
empresa em relação aos vários riscos que envolvem a atividade, assim como para pro-
teção de administradores e empregados. Seu efeito imediato, na legislação brasileira
e em vários outros sistemas jurídicos é o da mitigação das sanções administrativas
decorrentes da atuação ilícita.2 Com crescente destaque, especialmente na atividade
empresarial, vem atraindo a atenção dos juristas, sobretudo em vista da conf‌luência
de três fenômenos atuais: a) o desenvolvimento, no âmbito do direito empresarial
da noção de governança corporativa, expandindo os deveres relativos ao funciona-
mento das sociedades empresárias para além da visão tradicional dos deveres dos
administradores; b) o incentivo, por lei, à adoção de procedimentos internos visando
a prevenção e denúncia da atuação irregular da sociedade empresária, por intermédio
dos seus órgãos (e.g. art. 7º, VIII, da Lei 12.846/2013), e a adoção de políticas de boas
1. PARKER, Christine; NIELSEN, Vibeke Lehmann. Deterrence and the impact of calculative thinking on business
compliance with competition and consumer regulation. Antitrust Bulletin, v. 56, n. 2. New York: Federal Legal
Publications, Summer 2011, p. 381-382.
2. CUEVA, Ricardo Villas-Bôas. Funções e f‌inalidades dos programas de compliance. In: CUEVA, Ricardo Villas
Bôas; FRAZÃO, Ana (Coord.) Compliance: perspectivas e desaf‌ios dos programas de conformidade. Belo
Horizonte: Fórum, 2018. p. 58-59.
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práticas e governança (como ocorrem em relação ao tratamento de dados pessoais,
arts. 50 e 51 da Lei 13.709/2018); e c) o estímulo à prevenção e mitigação de riscos
da atividade empresarial em diferentes perspectivas, tanto na gestão administrativa,
quanto regulatória, pelos órgãos do Estado ou mediante autorregulação.
Deste contexto, o cumprimento da lei (ou não violação) não é mais apenas
fenômeno passivo (abster-se de violar, suportar sua incidência), passando a supor a
adoção de comportamentos ativos, a revelar um conjunto de ações que assegurem, no
âmbito das respectivas organizações empresariais, procedimentos e regras internas
de prevenção e resposta a irregularidades.
Para tanto, parte-se da ideia correta de que em relação à sociedade empresária,
dado o conjunto diverso de pessoas e ações envolvidos na sua atuação, nem tudo é
voluntariedade no cumprimento da lei; o risco de descumprimento (ou desconfor-
midade) resulta de falhas muitas vezes involuntárias, no âmbito do risco da atividade
empresarial.
A adoção de procedimentos que permitam identif‌icar, prevenir e corrigir falhas
no cumprimento da lei, revela-se uma estratégia de proteção da própria atividade
empresarial em relação a riscos diversos, desde os custos f‌inanceiros diretamente
relacionados a eventual responsabilização em diferentes âmbitos (civil, penal e ad-
ministrativo), os prejuízos decorrentes do dever de reparar danos que venha a causar
e os prejuízos a sua reputação e à conf‌iança em relação a suas práticas negociais.
Especialmente no mercado de consumo, os fornecedores se apresentam, com
cada vez maior frequência, como complexas organizações empresariais, com distin-
tos níveis de atuação, f‌luxo de informações e poder decisório, cujo funcionamento
raramente é completamente apreendido por seus consumidores. A própria noção
de organização empresarial é, antes de tudo, um conceito cultural,3 que se forma a
partir da vinculação a determinados f‌ins que são de conhecimento comum – ainda
que em diferentes graus – a todos que atuam ou se relacionam com ela. Por outro
lado, a multiplicidade de normas jurídicas compõe também esta experiência cultural,
exigindo um esforço considerável para que sejam conhecidas e cumpridas de modo
uniforme por toda a organização.
A adoção dos procedimentos de compliance, neste sentido, conf‌lui para o exer-
cício da autonomia privada tanto na organização interna da sociedade empresária,
quanto do seu modo de atuação. Ao se tratar das relações de consumo, não se deixa
de reconhecer na realidade brasileira, os riscos de prática de corrupção com o ob-
jetivo da edição de normas legais ou regulamentares que possam reduzir padrões
de exigência em relação a produtos ou serviços, ou ainda a omissão ou leniência
dos órgãos e entidades da administração pública competentes para f‌iscalização dos
agentes econômicos no mercado.
3. MORGAN, Gareth. Imagens da organização. São Paulo: Atlas, 2002. p. 121.
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