Compreendendo os direitos humanos

AutorJosé Claudio Monteiro De Brito Filho
Páginas21-41

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Neste capítulo, pretendo iniciar o estudo das noções relativas aos Direitos Humanos a partir de três noções básicas: denominação, definição e classificação.

É que, embora parte dessas noções só se complete após serem apresentadas outras questões, como o fundamento dos Direitos Humanos, e sua principal característica, a universalidade, é preciso, ao início, pelo menos, fixar ideias básicas a respeito do objeto de estudo e de como ele pode e deve ser visto, ainda que, em certos aspectos, isso seja feito, neste primeiro momento, precariamente.

Importante observar, ainda, que a denominação dada a este espaço, Compreendendo os Direitos Humanos, evidentemente poderia ser aplicada a todo o livro. Ela serve aqui, todavia, para indicar que, das noções que serão apresentadas, essas são as mais básicas de todas.

Farei isso dividindo o capítulo em duas partes: na primeira discutirei, em conjunto, denominação e definição, porque acredito que esta é, se não a única, a melhor forma de tratar desses aspectos. Antes de encerrar o item, todavia, reservarei um espaço para discutir duas noções importantes, que não se confundem com os Direitos Humanos, mas que podem ser vistas como sendo parte desse conjunto, e que são denominadas de mínimo existencial e necessidades humanas básicas.

Já na segunda parte, ocupar-me-ei da classificação dos Direitos Humanos, primeiro, sob a perspectiva tradicional, e, depois, sob uma perspectiva estritamente jurídica, que venho defendendo já há algum tempo. Não deixarei também de, ao final, tecer alguns comentários a duas divisões mais simples dos Direitos Humanos,

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embora seja mais comum que sejam feitas em relação aos Direitos Fundamentais, e que se relacionam à postura do Estado na concessão dos direitos, na forma de uma simples abstenção, ou na forma de prestações, e, ainda à razão de ser, à finalidade, das normas.

Denominação e definição

É comum ouvir que Direitos Humanos é uma expressão polissêmica, pela multiplicidade de sentidos em que pode ser utilizada. Embora eu reconheça que ocorre, na prática, essa utilização ampliada, é preciso, desde logo, indicar que essa é uma ideia inadequada, do ponto de vista técnico-científico.

Direitos Humanos é expressão que tem significação única, e é necessário que assim seja, em prol da existência e do fortalecimento dessa ideia, que só pode subsistir a partir da noção de que os Direitos Humanos são um conjunto de direitos básicos, mínimos, indispensáveis, de todos os seres humanos.

O que ocorre é que, em certos casos, utiliza-se a denominação Direitos Humanos em prol de uma defesa mais limitada de direitos, ou de um só direito, ou, então, nomina-se como de Direitos Humanos a defesa de um – ou mais de um – direito que não está definido como tal, baseando-se essa defesa, normalmente, ou em sua importância1, ou por conta da situação particular de determinado grupo, ainda que isso não represente a vontade de todos ou a necessidade de proteção de todos, criando dúvidas onde isso não deveria existir.

Isso pode ocorrer tanto por desconhecimento da amplitude dos direitos que compõem esse conjunto, como por consequência de uma atuação localizada. A esse respeito, basta exemplificar com a atuação que mais desperta incompreensões de considerável parcela da sociedade e, às vezes, de parte da imprensa. É comum que, havendo relatos de tratamento inadequado nos estabelecimentos prisionais, entidades que têm por objetivo a defesa dos Direitos Humanos, como a OAB e outras, ofereçam denúncias contra as condições observadas, bem como apoio aos apenados e suas famílias na busca de uma situação que garanta dignidade para suas vidas, e que está prevista tanto na Constituição da República como na Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984).

Nesse caso, é claro que a defesa dos Direitos Humanos dos apenados e, às vezes, de suas famílias, ocorre em um âmbito mais localizado e que não reflete a amplitude do que se conhece como Direitos Humanos, e as próprias entidades

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que promovem a defesa têm consciência disso. E a atuação em espaço limitado é natural, pois as violações, no exemplo, também são limitadas a um espaço determinado. Não é incomum, todavia, que a defesa que é feita seja vista como sendo feita em favor de algo que se compõe somente do objeto da discussão, ou seja, como se nada mais houvesse que pudesse ser classificado como tal. Daí surge, como decorrência lógica, não só uma visão limitada de um conjunto que é bem mais amplo, mas também, o que é mais grave, até, para quem somente enxerga esse universo restrito, uma conotação negativa.

Há, também, em certos casos, a tentativa de utilizar concepção de Direitos Humanos que não é a mais adequada, como na segunda hipótese listada mais acima, subordinando-se essa concepção ao saber local, mesmo quando a cultura de um determinado agrupamento humano é contrária ao próprio conjunto normativo definido no plano internacional como de Direitos Humanos.

Imagine-se que determinado povo, por exemplo, no continente africano2, entenda cabível a dominação de gênero, impondo sérias restrições aos direitos das mulheres, e sustente que essa é uma questão de Direitos Humanos, amparando-se genericamente no direito à autodeterminação previsto no art. 20 da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos3, ainda que isso conflite diretamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), por exemplo, nos artigos I e II4, ou com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – PIDCP, nos artigos 2º, I e 265.

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Evidente que, nesse caso, a prática cultural, além de não encontrar amparo na disposição genérica contida no instrumento normativo regional, e que também está prevista no art. 1º, tanto do PIDCP, como do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), representa, ainda, relação que é clara-mente repudiada pelas normas básicas em matéria de Direitos Humanos. A essa questão voltarei mais adiante, quando for tratar da característica da universalidade e de que modo ela impede que práticas culturais contrárias aos Direitos Humanos possam prevalecer.

Antes de avançar, todavia, de forma mais completa na questão da definição, pois a que foi acima apresentada ainda está incompleta, porque não indica, ao menos sob o signo de seu fundamento, o que justifica o conjunto que se denomina Direitos Humanos, é preciso, primeiro, começar com a denominação.

A esse respeito, Almir de Oliveira, em pesquisa realizada, encontrou, entre outras, as seguintes: “Direitos do Homem, Direitos Individuais, Direitos Humanos, Direitos Fundamentais, Direitos Fundamentais do Homem, Direitos da Pessoa Humana e Direitos Humanos Fundamentais”6.

Esse autor, depois de analisar essas denominações, opondo a elas as objeções que entendeu pertinentes, fixa posição no sentido de ser a melhor delas a expressão “Direitos Humanos Fundamentais”, alicerçando-se, resumidamente, no fato de ser a pessoa humana o pressuposto dos direitos humanos, sendo os direitos humanos fundamentais os que, inerentes à pessoa, “não lhe podem ser negados, mas, ao contrário, devem-lhe ser reconhecidos pelas outras pessoas em particular, pela sociedade em geral e pelo Estado, que lhes devem acatamento, respeito e proteção”7.

Essa denominação é também a adotada por Alexandre de Moraes8 e por Ma-noel Gonçalves Ferreira Filho, embora o último a utilize como sinônimo, ainda, de Direitos Humanos e Direitos Fundamentais9.

Penso que não é a melhor denominação, pois significa fazer a soma de dois conjuntos de direitos que, embora possam ter a mesma finalidade, que é enunciar direitos indispensáveis da pessoa humana, são distintos.

É como afirma Willis Santiago Guerra Filho, que estabelece a distinção entre as duas denominações: direitos humanos e direitos fundamentais.

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Para esse autor:

De um ponto de vista histórico, ou seja, na dimensão empírica, os direitos fundamentais são, originalmente, direitos humanos. Contudo, estabelecendo um corte epistemológico, para estudar sincronicamente os direitos fundamentais, devemos distingui-los, enquanto manifestações positivas do direito, com aptidão para a produção de efeitos no plano jurídico, dos chamados direitos humanos, enquanto pautas ético-políticas, situadas em uma dimensão suprapositiva, deonticamente diversa daquela em que se situam as normas jurídicas – especialmente aquelas de direito interno10.

Quem também faz distinção, sob viés um pouco diferente, é Fábio Konder Comparato, afirmando que a doutrina jurídica contemporânea classifica os direitos fundamentais como os direitos humanos “consagrados pelo Estado como regras constitucionais escritas”11. Observe-se, a propósito, que, ao contrário do que possa, à primeira vista, parecer, Comparato não está indicando os Direitos Fundamentais como espécies dos Direitos Humanos, mas sim enfatizando o que, de fato, os diferencia, isto é, que são conjuntos construídos por diferentes centros de poder12, no caso os Direitos Humanos pelos organismos internacionais formados pela união de Estados soberanos, e os Direitos Fundamentais no plano interno de cada um desses estados soberanos.

Outro que faz essa distinção é Sarlet, da seguinte forma:

... “direitos humanos” (ou direitos humanos fundamentais13), compreendidos como direitos da pessoa humana reconhecidos pela ordem jurídica internacional e com pretensões de validade universal, e “direitos fundamentais”, concebidos como aqueles direitos (dentre os quais se destacam os direitos humanos14) reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional. Da mesma forma, registra-se que não se cuida de noções reciprocamente excludentes ou incompatíveis, mas, sim, de dimensões cada vez mais relacionadas entre si, o que não afasta a circunstância de se cuidar de expressões reportadas a esferas distintas de positivação, cujas consequências práticas não podem ser desconsideradas15.

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Adoto a distinção entre...

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