Comunicação de dados, não dados em si: origens e problemas do atual paradigma de proteção constitucional do sigilo de dados
Autor | Jacqueline de Souza Abreu |
Páginas | 1-27 |
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
Licensed under Creative Commons Revista de Investigações Constitucionais
ISSN 2359-5639
DOI: 10.5380/rinc.v11i1.89280
Comunicação de dados, não dados em si: origens e problemas do
atual paradigma de proteção constitucional do sigilo de dados
Communication of data, not data itself: origins and problems of the
current paradigm of constitutional protection of data secrecy
JACQUELINE DE SOUZA ABREU I, *
I Universidade de São Paulo (São Paulo-SP, Brasil)
jacqueline.abreu@alumni.usp.br
https://orcid.org/0000-0003-0450-4102
Recebido/Received: 27.12.2022 / 27 December 2022
Aprovado/Approved: 15.04.2024 / 15 April 2024
Como citar esse artigo/How to cite this article: ABREU, Jacqueline de Souza. Comunicação de dados, não dados em si: origens
e problemas do atual paradigma de proteção constitucional do sigilo de dados. Revista de Investigações Constitucionais,
Curitiba, vol. 11, n. 1, e256, jan./abr. 2024. DOI: 10.5380/rinc.v11i1.89280
* Doutoraem Direito pela FaculdadedeDireito da UniversidadedeSão Paulo (São Paulo-SP, Brasil). Mestra em Direito pela Uni-
versity of California, Berkeley (Berkeley, EUA), com foco em direito e tecnologia, e pela Ludwig-Maximilians-Universität München
(Munique, Alemanha), com foco em direitos fundamentais.Foi membro da ComissãodeJuristas da Câmara dos Deputados
encarregadadeelaborar o AnteprojetodeLeideProteçãodeDados para Segurança Pública e Investigações CriminaisAdvogada.
Rev. Investig. Const., Curitiba, vol. 11, n. 1, e256, jan./abr. 2024. 1
Resumo
Na intersecção entre sigilo telemático e direito processual
penal e administrativo, o Supremo Tribunal Federal con-
struiu um argumento prevalente para afastar questões
de licitude de certa prova ou meio de obtenção de prova:
a Constituição Federal protege “comunicações de dados
e não dados em si” - para signicar que só protege comu-
nicações em uxo, e não armazenadas (estáticas) e, hoje
também, que só protege conteúdo de comunicações e
não outros registros e dados. Por meio de revisão de lit-
eratura e de jurisprudência, esse artigo pretende demon-
strar como esse argumento surgiu, como é aplicado de
forma inconsistente e como anula questões relevantes
sobre privacidade na era digital. Sustenta que o STF pre-
cisa resgatar uma tese substantiva sobre privacidade e o
ônus de fundamentação do Estado no uso da força e que
juízes devem olhar para o contexto e nossas práticas so-
ciais ao deliberar sobre tais questões.
Palavras-chave: sigilo; privacidade; dados; Supremo Tri-
bunal Federal; era digital.
Abstract
At the intersection between telematic secrecy and criminal
and administrative procedural law, the Brazilian Federal
Supreme Court built a prevailing argument to rule out ques-
tions of legality of certain evidence or means of obtaining
evidence: the Federal Constitution protects “communi-
cations of data and not data itself “ - to mean that it only
protects communications in ow, not stored (static) and, to-
day also, that it only protects communications content and
not other records and data. Through a review of literature
and case law, this article aims to demonstrate how this ar-
gument emerged, how it is applied inconsistently and how
it overrides relevant questions about privacy in the digital
age. It maintains that the STF needs to rescue a substantive
thesis on privacy and rearm the State’s burden to justify
the use of force and that judges should look at the context
and our social practices when deliberating on such issues.
Keywords: secrecy; privacy; data; Brazilian Supreme Fede-
ral Court; digital age
Artigo
Rev. Investig. Const., Curitiba, vol. 11, n. 1, e256, jan./abr. 2024
JACQUELINE DE SOUZA ABREU
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SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Comunicar-se em sigilo: o histórico pré-debate jurisprudencial; 3. A construção da
jurisprudência do STF; 4. A reverberação e os problemas do teste xado; 4.1. Inconsistências internas;
4.2. Falta de teoria substantiva; 5. Uma proposta; 6. Conclusão; 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Em 1963, sob a Constituição Federal de 1946, que já garantia ser “inviolável
o sigilo da correspondência” (art. 141, § 6º), o Supremo Tribunal Federal (STF) negou
provimento a recurso em mandado de segurança impetrado em face de intimação
de procuradores da Fazenda para que uma empresa exibisse “papeis existentes em
seus arquivos sobre seus negócios comerciais” com outras três empresas.1 O acórdão
entendeu que a então vigente Lei do Sêlo previa que contratos realizados por meio
de correspondência não cam isentos de selo e o art. 582 dela autorizaria scalização.
Dialogando com a garantia constitucional, o voto condutor entendeu que “A inviolabi-
lidade da correspondência assegurada na Constituição não envolve, evidentemente,
a correspondência comercial, para efeitos de scalização, quando a carta já chegou ao
destinatário.” Como concluiu o relator: “O comerciante tem indiscutível direito a que
sua correspondência trafegue pelas repartições postais sem ser violada, mas, uma vez
incorporada sua correspondência aos arquivos comerciais, ca ela sujeita à vericação
dos agentes scais do estado.”3
O julgado de 60 anos atrás é curioso porque espelha um entendimento que o
STF adota até hoje – o de que o inciso XII do art. 5º protege o uxo de comunicações,
não os objetos e o teor da comunicação em si. De forma especíca ao que este artigo
vai tratar, o STF entende que o “sigilo de dados” incluído pela Constituição Federal de
1988 nesse dispositivo protegeria a comunicação de dados, e não os dados em si.4 A
1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso em Mandado de Segurança n. 11274/PE.
Relator: Min. Evandro Lins Silva, 27 de novembro de 1963.
2 BRASIL. Decreto-Lei nº 4.655, de 3 de setembro de 1942. Dispõe sobre o imposto do selo: “Art. 58. Os es-
tabelecimentos comerciais e industriais, as sociedades civis que revestirem forma comercial, os serventuários
de ofício e todos os que são obrigados a manter escrituração não poderão excusar-se, sob pretexto algum, de
exibir aos encarregados da scalização do selo os papéis e livros de sua escrituração e arquivo.”
3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso em Mandado de Segurança n. 11274/PE,
Relator: Min. Evandro Lins Silva, 27 de novembro de 1963.
4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Mandado de Segurança n. 21.729/DF. Relator: Min.
Marco Aurélio, 05 de outubro de 1995 (entendendo que o Banco do Brasil não poderia negar ao MPF informa-
ções sobre beneciários de recursos públicos pela invocação do sigilo bancário). BRASIL. Supremo Tribunal Fe-
deral (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário n. 418.416/SC. Relator: Min. Sepúlveda Pertence, 10 de maio
de 2006 (entendendo que a apreensão de registros contábeis salvos em computador mediante mandado de
busca e apreensão não constitui violação à inviolabilidade do sigilo de dados).
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