O novo conceito de sociedade coligada na Lei acionária brasileira

AutorErasmo Valladao A. - N. Franca - Marcelo Vieira Von Adamek
Páginas39-52

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1. Introdução

Reconhecida1, meritoriamente, como uma das mais modernas e perfeitas leis acionárias dos sistemas jurídicos da família romano-germânica, a vigente Lei das Sociedades por Ações brasileira (Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976) é, em grande parte, fruto do hercúleo esforço intelectual e da genialidade dos eminentes societaristas José Luiz Bulhões Pedreira e Alfredo Lamy Filho, juristas encarregados da preparação do anteprojeto de lei.

De um lado, a excelência do texto da lei acionária - contemplando, desde o nascedouro, regras jurídicas aptas a solucionar problemas que concretamente só vieram a se colocar aos profissionais da área décadas mais tarde (de que é exemplo paradigmático a regulamentação das operações de incorporação de ações, as quais entraram em voga no mercado somente nos últimos anos) - e, de outro, a inexistência de um mercado de capitais com maior expressão económica, até tempos recentes, possibilitaram que, durante muitos anos, a nossa lei brasileira passasse relativamente incólume à fúria reformista do legislador pátrio, o qual invariavelmente age movido por interesses de ocasião. Ao longo de anos, manteve-se, pois, íntegro o texto original da lei.

No entanto, em época mais recente esse quadro mudou. A análise retrospectiva dos últimos quinze anos denuncia, às escâncaras, que também a lei acionária brasileira tem agora sofrido, de forma progressivamente ascendente,2 reformas e mais reformas pon-

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tuais, não raras vezes apenas para atender casos concretos, e nem sempre inspiradas pela melhor técnica ou pelos mais cristalinos interesses.

Mesmo reconhecendo que o aumento do ritmo das reformas legislativas não é exclusividade brasileira e que elas são antes manifestações de uma autêntica crise de regulação posta pela nova realidade econômica mundial, receia-se, e muito, que essas reformas pontuais, feitas à prestação, conduzam em curto espaço de tempo à desconstrução da lei acionária, à perda de sua unidade lógica, à quebra de seu arcabouço sistemático.3 Esse risco é tanto maior quando se observa que muitas das reformas parecem ter sido confeccionadas sem melhores reflexões, sem discussões prévias com os segmentos diretamente envolvidos, sem o mesmo apuro técnico do restante da lei e, no mais das vezes, movidas puramente por desejos do momento político. Eis a realidade.

Em linha com essas considerações introdutórias, analisaremos criticamente no presente estudo o novo conceito legal de sociedade coligada que a Lei n. 11.941, de 27 de maio de 2009, trouxe para a lei acionária brasileira, ao reformular a redação do § 1o do art. 243 daLei n. 6.404/1976 e nele introduzir dois novos parágrafos (§§ 4o e 5o). Vejamos.

2. A Lei n 11.941/2009 e o novo conceito de sociedade coligada

A Lei n. 11.941, de 27 de maio de 2009, resultante da conversão da Medida Provisória n. 449, de 3 de dezembro de 2008, em lei ordinária, trata conjuntamente de assuntos os mais diversos, tal como revela a sua verbosa ementa,4 e, como se isso já não fosse suficiente, ainda "dá outras providências"... em que pese Lei Complementar n. 95/2008, sobre técnica legislativa, disponha expressamente em seu art. 7o, I, que "excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto"; "um único objeto". Lei, ora lei...

Pois bem. Dentre esses muitos temas e outras providências que o legislador resolveu conjuntamente regrar na Lei n. 11.941/2009, encontram-se várias alterações à lei acionária brasileira.5 Algumas delas, na realidade, complementam e aperfeiçoam a reforma da

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contabilidade societária empreendida pela Lei n. 11.638/2007.6 Outras - tenha ou não tido o legislador consciência disso, pouco importa-vão muito além, e, dentre elas, tem especial relevo o novo conceito de sociedade coligada.

Com efeito, o art. 37 da Lei n. 11.941/2009 alterou o § 1o do art. 243 da Lei das Sociedades por Ações, que passou a vigorar com a seguinte redação: "§ 1o. São coligadas as sociedades nas quais a investidora tenha influência significativa". Além disso, e complementando essa nova definição, foram introduzidos os seguintes novos parágrafos no mesmo artigo da lei acionária, do seguinte teor:

"§ 4o. Considera-se que há influência significativa quando a investidora detém ou exerce o poder de participar nas decisões das políticas financeira ou operacional da investida, sem controlá-la.

"§ 5o. É presumida influência significativa quando a investidora for titular de 20% (vinte por cento) ou mais do capital votante da investida, sem controlá-la."

Modificou-se assim substancialmente o conceito de sociedade coligada.7 Na redação originária do § 1o do art. 243 da Lei das S/A, consideravam-se "coligadas as sociedades quando uma participa, com 10% (dez por cento) ou mais, do capital da outra, sem controlá-la". O critério para determinar a existência da coligação era unicamente o montante da participação de uma sociedade no capital da outra, sem que para isso tivesse qualquer repercussão o efetivo papel que aquela participação da investidora desempenhava no equilíbrio interno de poderes da investida.8 Era, aliás, o mesmo conceito de que continua a se utilizar o Código Civil (CC, art. 1.099).

Diferentemente, o novo conceito legal - resultante da transposição quase literal do art. 2.359 do Código Civil italiano (com a redação dada pelo Decreto-legislativo n. 127, de 9 de abril de 1991)910 para o direito pátrio

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- traz uma clara mudança de perspectiva: enquanto na primitiva conceituação tomava--se em consideração o volume da participação de uma sociedade em outra e, portanto, o investimento financeiro que aí se materializava (tanto assim que esse investimento era aferido no capital social da investida, pouco importando as espécies de ações detidas), na redação atual a coligação, tal qual o controle, estrutura-se a partir do arranjo de poder interno da sociedade investida.11 O novo conceito legal não mais se atém (ou não mais se atém apenas) ao volume da participação de uma sociedade no capital da outra, pois dá relevo ao poder que uma sociedade tem e exerce ou pode exercer sobre outra: "São coligadas as sociedades nas quais a investidora tenha influência significativa".

Antes de passar nas linhas adiante a tentar destrinchar o novo conceito legal, impõe-se preliminarmente esclarecer a sua abrangência.

3. Âmbito de aplicação do novo conceito legal

De acordo com o disposto no art. 46 da Lei n. 11.941/2009, o conceito legal de sociedade coligada previsto no reformado art. 243 da Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, somente será utilizado para os propósitos previstos na lei acionária; para os propósitos previstos em leis especiais, "considera-se coligada a sociedade referida no art. 1.099 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil". Vale dizer, o novo conceito de sociedade coligada dado pela lei acionária vale exclusivamente para os fins previstos na própria lei acionária; para as leis especiais, que porventura se refiram a sociedade coligada, prevalece o conceito do Código Civil, que é justamente o antigo conceito da lei acionária.

Evidentemente, esse tipo de técnica legislativa, pela qual se atribuem múltiplos e variados sentidos a um mesmo termo (a adquirir assim matizes cambiantes nos diferentes segmentos jurídicos), em nada prestigia a certeza e a segurança na aplicação das normas jurídicas; só contribui para o surgimento de desinteligência; presta concurso aos conflitos. Melhor teria andado o legislador se tivesse mantido a antiga conceituação e, quando muito, tivesse estendido a aplicação de determinados institutos da lei acionária a sociedades que exercem influência significativa sobre outra. Infelizmente, perdeu-se novamente a oportunidade de regular, para fins atributivos de responsabilidades, o controle e a coligação externos, isto é, que não se fundam na titula-ridade de direitos de sócio.

4. Elementos constitutivos

Três são os elementos constitutivos do novo conceito de sociedade coligada na lei acionária: (i) elemento dinâmico: "influência significativa"; (ii) elemento estático: investimento (participação no capital ou titularida-de de direitos de sócio); e (iii) ausência de

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controle grupal. Vejamos, pois, cada um dos elementos constitutivos da nova definição.

4. 1 Influência significativa

Para que haja coligação no atual regime da lei acionária, é imprescindível que uma sociedade (investidora) tenha "influência significativa" sobre outra (investida). Essa "influência significativa", enquanto elemento constitutivo do conceito de sociedade coligada, ou é presumida pelo legislador, na hipótese do § 5o do art. 243 da Lei das S/A, ou depende de aferição in concreto, para se saber se está ou não caracterizada a hipótese prevista no § 4o do mesmo artigo.

A influência significativa é presumida quando a investidora for titular de 20% (vinte por cento) ou mais do capital votante da investida, sem controlá-la (LSA, art. 243, § 5o). Tal como já ocorria na antiga definição legal, o percentual escolhido pelo legislador é arbitrário12 e, em realidade, é até muito elevado em companhias abertas. De toda forma, a presunção legal é aqui absoluta;^ Mrá-et de jure; portanto, insuscetível de prova noutro sentido.13 Além disso, o percentual de 20% (vinte por cento) é aferido à vista do "capital votante",14 e não mais simplesmente do "capital social", como sucedia diante da antiga definição da lei acionária. Daí já se infere que nem toda sociedade que, à luz da antiga...

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