A conciliação judicial nos dissídios individuais trabalhistas e sua compatibilização com o princípio da indisponibilidade

AutorFlávia Pacheco
CargoAdvogada
Páginas61-73

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1. Introdução

Apresenta-se como base do Direito do Trabalho o princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas.

De acordo com este princípio, os direitos laborais legalmente assegurados não se encontram disponíveis para negociação ou renúncia pelo trabalhador.

Tal princípio revela-se imprescindível, isto porque, reconhecida a condição de hipossu?ciência do empregado em relação ao seu empregador, de nada adiantaria a legislação prever o direito se o seu detentor pudesse dele se dispor, o que correria fatalmente, dada a pressão econômica que o capital exerce sobre o trabalho.

De outro lado, as leis trabalhistas preveem a possibilidade da conciliação judicial em qualquer fase processual. Notadamente, tal forma de solução do litígio trabalhista é muito incentivada pela Justiça do Trabalho.

Contudo, a realização de uma conciliação em juízo importa, em regra, na disposição de direitos pelo empregado.

É sobre este aparente paradoxo que trata o presente artigo e de que forma se dá a compatibilização entre os princípios da conciliação e da indisponibilidade.

2. O princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas

A Constituição Federal, em seu art. 1º, estabelece como fundamentos do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa.

Temos, assim, que o Estado deve garantir o equilíbrio entre o capital e as necessidades sociais e, não há outro meio, senão instituindo direitos trabalhistas e garantindo sua e?cácia mediante a indisponibilidade de tais direitos.

Dessa forma, o Direito do Trabalho se constituiu, principalmente, de normas de ordem pública, ou seja, de direitos indisponíveis pelo trabalhador.

Com efeito, reconhecida a posição de hipossu?ciência do trabalhador em relação ao seu empregador, a limitação da sua autonomia de vontade é pressuposto necessário para que os direitos trabalhistas sejam respeitados.

Desse modo, podemos observar que o princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas decorre do princípio protetor, ou seja, de proteção ao trabalhador, hipossu?ciente na relação de trabalho.

No âmbito nacional, o princípio da indisponibilidade encontra-se regulamentado de forma implícita no art. 7º da CF de 1988 e também na forma de declaração de nulidade de atos praticados à sua revelia, como no caso do art. 9º da CLT.

O Direito do Trabalho possui um conteúdo eminentemente de normas de ordem pública, classi?cando tais normas, assim ensina o doutrinador Arnaldo Süssekind1:

Nas relações de trabalho, ao lado do conteúdo contratual, que é livremente preenchido pelo ajuste expresso ou tácito entre as partes interessadas, prevalece, assim, o conteúdo institucional ditado pelas normas jurídicas de caráter imperativo (leis, convenções coletivas, sentenças normativas etc.).
(...)

As regras imperativas, concernentes ao Direito do Trabalho, são: a) de índole impositiva ou proibitiva, que devem ser observadas tal como foram estatuídas (ex.: obrigatoriedade de anotação do contrato

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de trabalho na Carteira de Trabalho e Previdência social; ?liação do trabalhador à previdência social; proibição do trabalho do menor de 18 anos em indústrias insalubres etc.); b) de índole complementar, que estabelecem limites, abaixo ou acima dos quais, conforme o caso, não poderá prevalecer o ajuste das partes interessadas, e, inexistindo acordo ou desatendendo este aos limites de proteção estipulados, a norma jurídica pertinente adere ao contrato de trabalho (ex.: salário mínimo, duração máxima da jornada de trabalho, adicional mínimo de 50% sobre o salário da hora de trabalho extraordinário etc.).

Mauricio Godinho Delgado2 apresenta ainda uma classi?cação quanto à extensão e rigidez da indisponibilidade dos direitos, separando-os em indisponibilidade absoluta e relativa:

Absoluta será a indisponibilidade, do ponto de vista do Direito Individual do Trabalho, quando o direito enfocado merecer uma tutela de nível de interesse público, por traduzir um patamar civilizatório mínimo ?rmado pela sociedade política em um dado momento histórico. É o que ocorre, com o já apontado, ilustrativamente, com o direito à assinatura de CTPS, ao salário mínimo, à incidência das normas de proteção à saúde e segurança do trabalhador.

Também será absoluta a indisponibilidade, sob a ótica do Direito Individual do Trabalho, quando o direito enfocado estiver protegido por norma de interesse abstrato da respectiva categoria. Este último critério indica que a noção de indisponibilidade absoluta atinge, no contexto das relações bilaterais empregatícias (Direito Individual, pois), parcelas que poderiam no contexto do Direito Coletivo do Trabalho, ser objeto de transação coletiva e, portanto, de modi?cação real. Noutras palavras: a área de indisponibilidade absoluta, no Direito Individual, é, desse modo, mais ampla que a área de indisponibilidade absoluta própria ao Direito Coletivo.

Relativa será a indisponibilidade do ponto de vista do Direito Individual do Trabalho, quando o direito enfocado traduzir interesse individual ou bilateral simples, que não caracterize um padrão civilizatório geral mínimo ?rmado pela sociedade política em um dado momento histórico. É o que se passa, ilustrativamente, com a modalidade de salário paga ao empregador ao longo da relação de emprego (salário ?xo x salário variável, por exemplo): essa modalidade salarial pode-se alterar, licitamente, desde que a alteração não produza prejuízo efetivo ao trabalhador. As parcelas de indisponibili-dade relativa podem ser objeto de transação (não de renúncia, obviamente), desde que a transação não resulte em efetivo prejuízo ao empregado (art. 468, CLT). O ônus da prova do prejuízo, entretanto, caberá a quem alegue sua ocorrência, ao trabalhador, já que não há prova sobre fato negativo.

O art. 444 da CLT re?ete tais entendimentos, prevendo a prevalência da autonomia da vontade apenas se não houver contraposição do conteúdo impositivo da relação de trabalho.

Assim, importante destacar que eventual ajuste contratual que restrinja direito do trabalhador previsto em norma de caráter imperativo não surtirá qualquer efeito, sendo considerado nulo. Neste sentido, as disposições expressas dos arts. e 468 caput da CLT.

Declarada a nulidade do ato, aplicar-se-á a norma imperativa que preveja a situação por ele regulada. Assim, no Direito do Trabalho, dada sua característica de possuir prioritariamente normas de conteúdo imperativo, haverá, em geral, um referencial para os casos de nulidade de atos praticados pelas partes.

Desse modo, em regra, a nulidade de uma cláusula ou ato isolado não gera a nulidade do contrato de emprego, tampouco impõe o

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término da relação de trabalho, mas apenas a adequação das condições ao mínimo assegurado aos trabalhadores, atendendo-se assim, ao princípio da continuidade, que também norteia o Direito do Trabalho.

Cabe observar também que, como já dito, as normas imperativas fazem parte do conteúdo contratual não negociável da relação de emprego e, assim, se forem alteradas, suas modi?cações gerarão efeitos automaticamente às relações que se iniciarem ou estiverem em curso.

Entretanto, existem algumas hipóteses em que se admite a extinção de direitos trabalhistas.

A primeira hipótese trata-se dos institutos da prescrição e decadência, os quais decorrem de ordem pública e consubstanciam-se na extinção de direitos e obrigações pelo decurso do tempo e inércia do seu titular e que são declarados sem qualquer ofensa ao princípio da indisponibilidade.

Além dessa possibilidade, Alice Monteiro de Barros3 ressalta que, no Brasil, os incisos VI, XIII e XIV do art. 7º da Constituição Federal autorizam a renúncia via acordo e convenção coletiva, mas que os demais direitos previstos constitucionalmente não comportariam renúncia, sequer mediante negociação coletiva.

Neste mesmo sentido, a jurisprudência do TST, consolidada na Súmula n. 277, que aponta a possibilidade de supressão de direitos garantidos por norma coletiva por meio de negociação coletiva e assinatura de novo instrumento normativo.

3. Da conciliação judicial
3.1. Do conflito

A conciliação, conforme lembra Giglio4

“é a palavra que deriva do latim ‘conciliatone’, signi?ca ato ou efeito de conciliar; ajuste, acordo ou harmonização de pessoas desavindas; congraçamento, união, composição ou combinação”.

Desse modo, podemos observar que, para que exista uma conciliação, é necessário que antes disso esteja instalado um con?ito de interesses, no caso em análise, oriundo em uma relação de trabalho, o qual se revela aliás, muito comum, uma verdadeira consequência natural da vida em sociedade.

Portanto, para o contexto aqui estudado a conciliação se apresenta como uma das formas de solução do con?ito trabalhista e, assim, importante que se tenha em mente as peculiaridades desta espécie de con?ito para que se construa a solução adequada e capaz de restabelecer a paz social.

Wagner Giglio5 aponta algumas características fundamentais, que de?nem e distinguem os con?itos trabalhistas:

Parece-nos que uma das características dos con?itos trabalhistas é a sua maior frequência, pois substancial parcela da sociedade se compõe de trabalhadores, enquanto apenas uma minoria pratica crimes ou tem bens que justi?quem uma ação de natureza civil ou comercial.

Além disso, o con?ito trabalhista se estabelece, por de?nição, entre partes desiguais, sob os aspectos social, cultural, hierárquico e, principalmente, econômico, pois ocorre sempre entre um trabalhador subordinado e um empregador...

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