A condução da sociedade em recuperação judicial

AutorRafael Medeiros Mimica
Páginas105-123
A CONDUÇÃO DA SOCIEDADE
EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Rafael Medeiros Mimica
Mestrando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado.
Sumário: 1. Introdução – 2. Condução das sociedades: interesses envolvidos; 2.1 A condução da
sociedade em recuperação judicial – 3. Condução das sociedades em recuperação judicial: modelo
debtor-in-possession vs. modelo de administração judicial – 4. A opção da LFR; 4.1 A destituição
do devedor e dos administradores – 5. Breves críticas à LFR – 6. Conclusão – 7. Referências
1. INTRODUÇÃO
A Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005,1 estabelece, para o processo falimentar,
que o devedor perde o direito de administrar o seus bens assim que decretada a quebra.
Tal consequência da decretação da falência não desperta maiores questionamen-
tos ou debates. O propósito do procedimento é apurar e liquidar os ativos, maximi-
zando o seu valor, e pagar os credores, respeitada a ordem legal de prioridade. E isso
f‌ica a cargo do administrador judicial.2 Não há expectativa de que o falido continuará
desenvolvendo a atividade empresarial3 e, consequentemente, discussões sobre quem
deve administrar e conduzir o negócio.4
1. Para f‌ins de facilitação, referir-nos-emos à lei como LRF.
2. “O administrador judicial, na falência, não tem apenas o papel f‌iscalizatório, como desenvolvido na recu-
peração judicial. Exceto no excepcional caso de manutenção da atividade, os atos empresariais da Massa
Falida serão interrompidos para que o administrador judicial possa liquidar todos os bens e, com o produto
dessa liquidação, satisfazer os credores. Na falência, assim, além da verif‌icação de crédito, todos os atos de
arrecadação, liquidação e pagamento são imputados como deveres do administrador judicial, que passa a
ter função mais ativa” (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e
Falência. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 124).
3. Isso não signif‌ica, no entanto, que à falência não se aplica do princípio da preservação da empresa. Ao con-
trário. Partindo-se da leitura dos art. 75 e 140 da LFR, percebe-se que a preservação da empresa também
se justif‌ica no processo falimentar, na medida em que pode signif‌icar a maximização do valor do ativo,
benef‌iciando, consequentemente, os credores.
4. “Em ordenamentos nos quais o único modelo jurídico disponível para lidar com a insolvência empresarial é
a falência, o problema da atribuição de controle sobre a empesa após a caracterização jurídica da insolvência
não chega a ser colocar. Isso por uma questão simples: sob liquidação completa, a atividade empresarial
cessa, o que signif‌ica que decisões de f‌inanciamento e de investimento deixam de ter lugar. Na falência, as
decisões a serem tomadas quanto à disposição dos ativos não são decisões propriamente empresariais, pois
visam exclusivamente à obtenção de máxima ampliação do valor de liquidação da massa. A questão do
controle sobre a empresa, portanto, perde o sentido” (KIRSHCHBAUM, Deborah. A Recuperação judicial
no Brasil: governança, f‌inanciamento extraconcursal e votação do plano. 94 f. Tese (Doutorado em Direito)
– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009).
EBOOK DIREITO SOCIETARIO ESTUDOS DE JURIMETRIA.indb 105EBOOK DIREITO SOCIETARIO ESTUDOS DE JURIMETRIA.indb 105 03/09/2021 15:35:5603/09/2021 15:35:56
RAFAEL MEDEIROS MIMICA
106
Diversamente ocorre na recuperação judicial. O deferimento do seu processa-
mento não tem como consequência, ao menos imediata, a destituição do devedor ou
dos administradores da condução da atividade empresarial. Ao contrário. A regra é a
sua manutenção, sob a f‌iscalização do administrador judicial e do comitê de credores,
se houver (art. 64, caput, da LRF).
Nesse cenário, cabe a indagação de se a opção do legislador brasileiro por manter
o devedor ou os administradores à frente de um negócio que enfrenta dif‌iculdades
f‌inanceiras, ainda que sob supervisão, foi a melhor alternativa. Af‌inal, a escolha gera,
automaticamente, alguns questionamentos legítimos: faz sentido manter aquele
que tomou decisões de negócio que, possivelmente, levaram a sociedade à situação
de dif‌iculdade f‌inanceira no desempenho de suas funções, implementando novas
decisões que impactam diretamente os credores? Não seria mais prudente alocar um
terceiro que não tenha vínculos com a administração anterior e com os sócios na
condução da sociedade em recuperação judicial, garantindo que os interesses dos
credores e outros stakeholders sejam devidamente protegidos?
Para um leitor mais desavisado, as respostas para tais questionamentos podem
se mostrar simples e livre de dúvidas. Mas não é assim.
É bem verdade que toda sociedade empresária, pelo ordenamento jurídico
vigente, tem uma função social a cumprir,5 do que se conclui que não apenas a satis-
fação dos interesses sociais daquela devem ser perseguidos, mas de todos que com
ela se relacionam.
A necessidade de harmonização de interesses ganha especial relevância no
âmbito da recuperação judicial. Af‌inal, f‌ica ainda mais evidente a necessidade de se
buscar o equilíbrio entre os interesses legítimos de todos os envolvidos: credores,
outros stakeholders,6 sócios e administradores.7
O que se propõe, aqui, é analisar as formas como as sociedades em recuperação
judicial são conduzidas, focando-se nos dois principais modelos identif‌icados, quais
sejam, o debtor-in-possession, originário dos Estados Unidos da América, e o da subs-
tituição da administração anterior por alguém nomeado pelo Poder Judiciário, o qual
5. Sendo a sociedade um contrato plurilateral, a ela se aplicam as previsões legais de função social dos contratos
6. Por mais que outros stakeholders mereçam ter os seus interesses preservados na recuperação judicial, aqui,
focar-se-á na sociedade devedora e nos seus credores.
7. “Others examined the effects of corporate governance in bankruptcy from the perspective of accountability.
Nimmer and Feiberg emphasized the change in the identity of the ultimate benef‌iciaries of a corporation’s
actions. That is, while in the ordinary course of business a f‌irm’s management is accountable primarily to
its shareholders, in bankruptcy other stakeholders step to the fore and must be taken into account by the
decisionmaker. Consequently, in reorganization the f‌iduciary duties of the controlling person are no loger
owed exclusively to the shareholders of the corporation, but to the various groups of creditors as well. They
further note that the task of complying with f‌iduciary duties in reorganization is far more complex than is
ordinarily the case in corporate governance because the vairous groups of creditors and shareholders often
have conf‌licting interests which are diff‌icult to reconcile” (HAHN, David. Concentrated Ownership and
Control of Corporate Reorganizations. JCLS 4 (2004)).
EBOOK DIREITO SOCIETARIO ESTUDOS DE JURIMETRIA.indb 106EBOOK DIREITO SOCIETARIO ESTUDOS DE JURIMETRIA.indb 106 03/09/2021 15:35:5603/09/2021 15:35:56

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT