O confinamento do outro lado do oceano: a experiência de crianças e adolescentes durante a epidemia da Covid-19 na França

AutorFernanda Martinhago
Páginas65-94
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2020.e75264
6565 – 94
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O connamento do outro lado do
oceano: a experiência de crianças e
adolescentes durante a epidemia da
Covid-19 na França
Fernanda Martinhago1
Resumo
O presente artigo apresenta dados que retratam como foi o connamento na França durante a
epidemia da Covid-19, precisamente, para o público infanto-juvenil. O objetivo deste estudo foi
aportar alguns elementos que possibilitem avançar na compreensão de como as crianças e os
adolescentes vivenciaram a experiência do connamento na França. A metodologia elegida para
o desenvolvimento da pesquisa foi a etnograa virtual. Por meio dos materiais publicados nos
jornais franceses e no site da Radio France Culture, foi possível ter contato com as experiên-
cias vivenciadas pelas famílias no connamento. Estas publicações forneceram subsídios para
compreender que manter as crianças e os adolescentes connados somente no espaço familiar,
ou seja, privados do lugar não familiar (escolas, parques, ruas), implica o processo subjetivo
enquanto constituição de sujeito cujo progresso torna-se inviável de ocorrer sem transitar entre
esses dois lugares.
Palavras-chave: Crianças. Adolescentes. Covid-19. Connamento. Epidemia.
1 Introdução
Eu cheguei a Paris em setembro de 2019 para fazer um pós-dou-
torado na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Durante um ano
1 Bolsista de pós-doutorado pelo Programa de Cooperação Internacional CAPES-COFECUB junto à Université
Paris 8 Vincennes Saint-Denis, França, e Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. E-mail: marti-
nhagofernanda@ gmail.com
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Fernanda Martinhago
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caria longe do meu país, o Brasil. Era início do outono, os franceses e
turistas desfrutavam os dias ensolarados pelas ruas e cafés da cidade, os
jardins ainda estavam repletos de ores, e me chamou atenção o quanto
as crianças estavam embrenhadas neste cenário, brincando juntas des-
contraidamente pelos gramados e nos grandes brinquedos dos parques,
que mais se parecem com obras de arte moderna. E como não notar um
grupo de adolescentes, que fazia piquenique escutando música clássica,
e outras duas jovens que tocavam violino no parque Montsouris? Uma
realidade, no que diz respeito à infância e adolescência, muito diferen-
te do que observo no Brasil, não me rero apenas aos aspectos cultu-
rais que são peculiares a cada país, mas a uma experiência de liberdade.
O psicanalista e professor, Leandro de Lajonquière, compartilha, em
uma entrevista coordenada por Rodrigues e Reis (2018), a experiência
de sua lha. Ele conta que com oito anos ela começou a ir para a escola
sozinha, a qual se situava a três quarteirões de sua casa, em um bairro fora
do centro turístico de Paris. Acrescenta que, um pouco mais tarde, ela co-
meçou a se deslocar sozinha no bairro para outras atividades, como ir ao
parque encontrar com a amigas, à piscina pública, à biblioteca, às aulas
de esporte. Ele compara a infância atual em Paris com aquela que viven-
ciou na década de 1960, em Rosário, na Argentina, local em que nasceu.
É fato que, em Paris, com a chegada do inverno, os dias nublados e
frios inibem um pouco os passeios por ruas e parques. Mas há diversas atra-
ções culturais, museus, restaurantes, cafés, livrarias que são frequentadas
pelos moradores e turistas que passeiam pela cidade. As manifestações pe-
las praças, como a dos “Gilets Jaunes” (Coletes Amarelos) e greves em prol
de melhorias no âmbito público, também fazem parte do cotidiano pari-
siense. No m do outono, precisamente, no dia 5 de dezembro de 2019,
começou uma grande greve por toda a França, que em princípio, duraria
quatro dias, em prol de uma reforma da previdência, diferente da proposta
pelo chefe de Estado francês. Transporte público, trem, metrô, tramway e
ônibus caram paralisados ou funcionando de modo muito reduzido, o
que fez com que grande parte da população preferisse car em casa do que
perder muito tempo para se deslocar nos poucos ônibus lotados ou enfren-
tar o frio caminhando pelas ruas ou de bicicleta. A maioria das pessoas que
circulava era porque tinha a obrigação de trabalhar; mesmo assim, muitos

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