Conflito aparente entre o art. 927 do Código Civil e o art. 7º, XXVIII, da constituição federal

AutorKarina Novah Salomão
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Universidade de São Paulo
Páginas145-170

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1. Conflito aparente entre o parágrafo único do art 927 Do códigocivil e art. 7º, XXVIII, da constituição federal. Responsabilidade objetiva do empregador

Muito se discute, após o advento do novo Código Civil, sobre a responsabilidade prevista no art. 927 do novo Estatuto. A maior parte da doutrina entende que o parágrafo único do art. 927 do Código Civil é aplicável às relações do trabalho e não conflita com o art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal. No mesmo sentido posiciona-se a jurisprudência. Na sequência, citamos al-guns autores, identificando os principais argumentos. Também comentamos os argumentos contrários à aplicação do parágrafo único do art. 927 do Código Civil às relações de trabalho.

2. Argumentos favoráveis à aplicação do parágrafo único do art 927 Às relações de trabalho
2.1. A constituição previu outros direitos no art

Sebastião Geraldo de Oliveira sintetiza os argumentos que surgiram pró e contra a aplicação do art. 927 às relações de trabalho. O autor indaga se “é aplicável a teoria do risco na indenização por acidente do trabalho” e responde, indicando duas correntes. A primeira corrente entende que o art. 927 não

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é aplicável às relações trabalhistas, porque conflita com o art. 7º, XXVIII, da Constituição, que institui a responsabilidade do empregador apenas quando este incorrer em dolo ou culpa. A segunda corrente entende que o art. 927 do CC aplica-se às relações de trabalho, vez que a Constituição previu outros direitos além daqueles relacionados no seu art. 7º. Oliveira faz referência à IV Jornada de Direito Civil de 2006 e à 1ª Jornada de Direito do Trabalho realizada em Brasília, em 2007. Nessas duas jornadas, o entendimento aprovado por meio de Enunciado foi o de que o parágrafo único do art. 927 do CC não contraria o disposto no art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal478.

Kirchner faz referência expressa ao art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal, para logo após mencionar o art. 927, parágrafo único do CC. Segundo o autor, é possível o enquadramento de alguns acidentes do trabalho no disposto no parágrafo único do art. 927 do CC, desde que esses acidentes correspondam aos moldes legais. Referindo-se aos autores que negam a incidência da norma civilista no Direito do Trabalho, Kirchner afirma que não obstante o paradoxo (qual seja, o reconhecimento da responsabilidade objetiva do empregador por ato de seus empregados e subjetiva no caso de acidentes, por força da CF), não há como prevalecer o argumento de que o parágrafo único do art. 927 é inaplicável, em decorrência da hierarquia das normas. A uma, porque o caput do art. 7º da CF previu outros direitos, significando que o rol de garantias do art. 7º não é exaustivo. A duas, porque ressalta o autor: sob o prisma teleológico, é inegável, que o art. 7º, da CF/1988, é uma norma com nítida finalidade de proteção dos trabalhadores, e não garantidora de prerrogativa dos empregadores, razão pela qual entendo que a interpretação que afasta o resguardo de direito daquele grupo contraria o próprio escopo da diretriz constitucional”479. E justifica sua posição, enfatizando que: 1) não se pode separar normas dentro de um processo exegético;

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2) há que se ter em conta a hierarquia das normas, mas também o valor e finalidade da norma; 3) existe uma supremacia material da Constituição, e não formal; e 4) deve-se reconhecer a fundamentalidade dos direitos constitucionais480.

Para Raimundo Simão de Melo, não se sustenta uma interpretação literal do inciso XXVIII do art. da Constituição Federal. Esse inciso está ligado ao caput do art. 7º, que garante outros direitos481. A Constituição Federal perseguiu a melhoria da condição de vida do trabalhador e seu texto assegurou apenas um patamar mínimo de direitos, autorizando a criação de outros direitos além daqueles enumerados na Carta482.

Segundo Amauri Mascaro Nascimento, a Constituição contém direitos mínimos e não máximos, razão pela qual outras normas — a lei e convenção coletiva, por exemplo —, podem prever outros direitos. Além disso, assegura o autor, a Constituição cumpre três funções: (1) função social; (2) função de hierarquizar as normas, de modo que, existindo lei, convenção, regulamentos ou usos e costumes sobre determinada matéria, deve ser aplicada a que for mais favorável; e (3) função interpretativa, significando que entre duas normas deve-se aplicar aquela que for mais favorável ao trabalhador483.

Da mesma forma que Nascimento, Arnaldo Süssekind, ao interpretar a expressão “além de outros direitos que visem à melhoria da sua condição social”, justifica a criação de direitos não previstos nos incisos. Essas

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outras normas, afirma, são plenamente válidas desde que sejam constitucionais484.

Souto Maior salienta que o art. 7º, XXVIII, da Constituição, e o parágrafo único do art. 927 do Código Civil são compatíveis, vez que o caput do art. 7º previu os direitos relacionados nos incisos sem prejuízo de outros direitos. De acordo com Souto Maior, afastar a incidência do parágrafo único do art. 927 do CC sobre os contratos trabalhistas importa em conferir ao trabalhador uma garantia inferior à garantia dada pela lei aos demais cidadãos485.

Alexandre Sabariego Alves também defende a tese de que o parágrafo único do art. 927 do CC é constitucional486. Assim como outros autores, Alves alega que a Constituição Federal, no caput de seu art. 7º, previu outros direitos “que visem à melhoria” dos trabalhadores. Mas não só: [...] a indenização por acidente do trabalho guarda íntima e direta relação com a saúde e dignidade do trabalhador”, princípios esses também agasalhados pela Constituição. O autor invoca outros princípios, quais sejam: inviolabilidade à vida (art. 170 da CF), responsabilidade objetiva do causador do dano ambiental (§ 3º do art. 225 da CF), obrigação do poluidor, independentemente da existência de culpa, de indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade (§ 1º do art. 14 da Lei n.
6.938/81)487.

O Superior Tribunal de Justiça, por meio de uma de suas Turmas, já proferiu entendimento no sentido de que o parágrafo único do art. 927 do CC não afronta o inciso XXVIII do art. da CF, vez que os direitos previstos em cada um dos incisos devem ser aplicados, sem prejuízo de outros direitos que venham beneficiar o trabalhador:

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O art. 7º da CF se limita a assegurar garantias mínimas ao trabalhador, o que não obsta a instituição de novos direitos — ou a melhoria daqueles já existentes — pelo legislador ordinário, com base em um juízo de oportunidade, objetivando a manutenção da eficácia social da norma através do tempo.

A remissão feita pelo art. 7º, XXVIII, da CF, à culpa ou dolo do empregador como requisito para sua responsabilização por acidentes do trabalho, não pode ser encarada como uma regra intransponível, já que o próprio caput do artigo confere elementos para criação e alteração dos direitos inseridos naquela norma, objetivando a melhoria da condição social do trabalhador488489.

Na Justiça do Trabalho, existem decisões que invocam o art. 927 do Código Civil490 e outras que afastam sua aplicação, sob o argumento de que esse artigo não poderia revogar o disposto no art. 7º, XXVIII, da Constituição

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Federal491. Decisão recente do Tribunal Superior do Trabalho agasalha entendimento de que o parágrafo único do art. 927 do Código Civil é aplicável na Justiça do Trabalho. Com efeito, a 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho não acolheu recurso da COPEL, referente a trabalhador que caiu de escada, da altura de 10 metros. O trabalhador foi apanhado por um caminhão que fazia uma manobra, e não teve tempo de pôr o cinturão de segurança antes de iniciar suas tarefas. Do acidente resultou lesão parcial. O Tribunal paranaense concluiu que as atividades da COPEL se inseriam entre aquelas de risco excepcional, e que se justifica o dever de indenizar sempre que a atividade seja perigosa ou de risco excepcional, não havendo necessidade de a vítima comprovar a culpa. No seu recurso, a empresa, invocando o art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal, alegou ser inaplicável o art. 927 do CC. O Ministro Aloysio Correa da Veiga considerou que o art. 7º, XXVIII, assegura um direito mínimo, mas que

[...] outra norma pode atribuir uma situação mais favorável ao empregado que permita a responsabilidade por culpa lato sensu. No caso de acidente do trabalho, há norma específica neste sentido, conforme se extrai do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, quando consagra a responsabilidade objetiva para a atividade de risco.492

2.2. O parágrafo único do art 927 do CC deve ser aplicado igualmente ao cidadão e aos...

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