Conflito Aparente de Normas Penais

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas591-610

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24.1. Colocação e sede do problema princípios regentes

Os tipos legais delitivos apresentam, via de regra, autonomia e independência para a captação dos fatos que se amoldam ao respectivo modelo. Os tipos, em princípio, têm identidade própria, decorrente da estrutura que a lei lhes dá, de modo que cada figurino típico recortado na lei penal é distinto dos outros.

Algumas vezes, entretanto, os tipos se coordenam, relacionam e interpenetram, interagindo, de sorte que um mesmo episódio encontra a possibilidade de ser captado por mais de um tipo legal delitivo, sem que, porém, todos se apliquem.

Surge, então, importante questão a ser considerada: todos os tipos em que o fato se encarta são aplicáveis e ocorre um concurso de crimes (v. n. 22.1) ou, ao revés, somente um desses tipos se aplica, com exclusão dos demais?

O problema concerne, portanto, não apenas com a mera aplicação da pena, como advogam alguns penalistas, mas, sobretudo, com a própria adequação típica. Isso porque, de primoponendo, há a necessidade de aquilatar-se do tipo ou tipos realmente aplicáveis, pois a inflição da pena que couber constitui simples consequência da subsunção típica operada. Inicialmente, deve-se adequar exatamente o fato a um tipo (ou tipos) determinado (s) para, somente empós, cogitar-se da reprimenda cabível.

Se, no caso, a análise jurídica concluir que todos os tipos nos quais ocorre a subsunção do fato são aplicáveis, têm-se o concurso de delitos. Se, ao reverso, essa análise constatar que há coordenação e combinação entre os tipos concorrentes, de forma que, perdendo estes sua autonomia e independência, a aplicação de um afasta e neutraliza a dos demais, aflora o denominado conflito ou concurso aparente (o Gesetzeskonkurrens da doutrina alemã) de normas penais (ou de tipos ou leis). Nessa hipótese, o concurso de crimes que se apresenta, pela concorrência dos tipos a que o fato é adequável, somente existe na aparência, e não na realidade jurídica. É, pois, um concurso impróprio de crimes.

Por tal razão, como somente um tipo resulta a final aplicável, com a exclusão dos outros (não haveria, destarte, concorrência de normas penais, mas exclusividade

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na incidência de uma delas), não são poucos os autores que se insurgem no tocante à denominação concurso de tipos ou leis, censurando-a. Preferimos, por isso, a expressão conflito de normas. Como quer que seja, não enxergamos emprego terminológico inadequado na designação concurso (ou conflito), desde que se acresça, na sequência, a menção de ser apenas aparente.

Em síntese: no aspecto ora examinado, deve-se perscrutar se uma dada situação se enquadra efetivamente em diversos tipos penais (concurso de crimes) ou se, ao contrário, existe uma unidade típica que a abriga, embora aparentemente se apresente uma concorrência de tipos legais para a adequação.

Imagine-se a existência de dois objetos (cada qual representando um tipo), cada um com sua composição peculiar, sua própria autonomia e independência, ocupando o seu próprio espaço. Digamos que esses objetos sejam uma coisa metálica qualquer e um magneto (ímã). Se esses objetos se mantêm distantes, separados, cada qual conservará sua independência e autonomia, ocupando seu próprio lugar. Mas se esses mesmos objetos são aproximados um do outro, o que se verifica é que entre eles se exerce uma força de atração, de maneira que um será atraído ao campo de força do outro e, unidos, formarão um só corpo, uma só unidade, com perda da sua independência.

Sob esse prisma é que o tema relativo ao concurso aparente de normas se insinua para abordagem e resolução.

Torna-se, então, indeclinável aferir se a espécie propende para o concurso de crimes, por conservar cada tipo aplicável sua autonomia e independência, ou se para o conflito aparente de normas penais, em razão de constatar-se uma força de atração entre os tipos de sorte a excluir a aplicação de um a dos outros. O tema projeta a sua relevância, por conseguinte, para o âmbito da exata adequação típica, da qual a aplicação da pena cabível constitui mero reflexo.

A título de ilustração: certa mãe mata o filho recém-nascido, durante ou logo após o parto, sob a influência do estado puerperal. O episódio exsurge adequável tanto no art. 123 como no art. 121 do CP.

Se o sujeito ativo pratica um assalto e mata a vítima porque esta o conhecia, é inelutável que o fato, cotejado com o art. 121, § 2º, n. V, do CP (homicídio para assegurar a impunidade de outro crime: no caso, o roubo) e o art. 157, § 3º, do mesmo caderno, em ambos encontra tipificação.

Se o agente subtrai uma folha em branco de cheque (art. 155, CP) e a preenche, consigna-lhe um valor e imita a assinatura do correntista (art. 297, § 2º, CP), logrando, ato contínuo, com esse expediente, descontar ou sacar a cártula em um estabelecimento comercial ou na própria agência bancária (art. 171, CP), é inarredável que diversos tipos penais oferecem enquadramento legal ao fato.

Se alguém subtrai um automóvel (art. 155, CP), falsifica sua documentação (art. 297, CP) e, em seguida, vende o veículo a terceiro (art. 171, § 2º, n. I, CP), é fato curial que há uma atividade criminosa subsumível em mais de um dispositivo incriminador.

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À vista do exposto, cumpre constatar se, nas hipóteses acima figuradas, todos os tipos efetivamente albergam as condutas referidas (concurso de crimes) ou se, ao contrário, unicamente um dos tipos é aplicável, com a exclusão dos outros, de modo a despontar um concurso apenas aparente ou impróprio de tipos.

O problema não é de simples resolução. Constitui questão árida e escabrosa, tema dos mais importantes e complexos, de origem relativamente recente, sobre o qual pouco se têm escrito na doutrina. Por tal razão, salienta Frederico Marques, não é de admirar que a matéria ainda apresente muito aspecto cartilaginoso e incompleto, além de ser motivo para controvérsias e dissídios doutrinários1431.

Ad primum, e como se observa mediante alguns dos exemplos acima aventados, a unidade de fato não constitui pressuposto do conflito aparente de normas penais. Os fatos podem ter pluralidade (ex.: subtração de cheque, falsificação e desconto), porém são submetidos a uma unidade preceptiva. Consequentemente, a apregoada unidade de fato, afirmada por alguns autores como requisito, deve ser entendida como a unidade jurídica, e não a fenomênica.

Para a solução do problema, é de mister que as situações que se apresentem sejam postas sob o foco de três princípios fundamentais, quais sejam, da especialidade, subsidiariedade e consunção.

Por meio desses princípios será possível concluir, por vezes com alguma dificuldade ou controvérsia, se há concurso de crimes ou simples conflito aparente de normas penais.

Se entre os tipos penais houver uma relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção eles estarão coordenados e combinados, pelo que a aplicação de um anula a dos demais. Se entre os tipos não existir essa relação todos conservarão sua autonomia e serão simultaneamente aplicáveis ao caso, que, então, configurará o concurso de crimes.

É imperioso, por via de consequência, para soluções defluírem, que os princípios regentes do conflito aparente sejam examinados para que se possa distinguir, em face das peculiaridades de cada um, os verdadeiros casos de concurso dos meramente aparentes, id est, daqueles que não são autênticos.

24.2. Especialidade

Há relação de especialidade entre tipos legais sempre que um deles, comparado a outro, contiver os mesmos elementos descritivos, com a adição, porém, de outras características, chamadas elementos especializantes. Estabelece-se, de tal arte, a correlação entre tipo geral e tipo especial, pois este apresenta todas as propriedades daquele, mas com acréscimos especiais. Nessa conjuntura, o tipo especial preenche integral-mente o tipo geral, com a exigência, contudo, de outras particularidades necessárias à configuração jurídica do crime. Assim, quem perpetra o tipo especial incide igualmente no tipo geral. Em vista disso, para impedir o bis in idem, o tipo especial prevalece sobre o geral e afasta a sua incidência para o caso. Lex specialis derogat legi generali.

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Mas uma verificação prévia para esse efeito sempre será necessária: constatar se os tipos (geral e especial) estão em vigor. Se os dispositivos não estiverem vigentes de forma contemporânea ao tempo de sua aplicação, o problema se transfere para a área da lei penal no tempo (v. n. 1.3).

O tipo especial pode representar um minus ou um plus no que tange ao tipo geral, conforme estampar maior ou menor gravidade em relação a ele.

Nesse quadrante, o infanticídio (art. 123, CP) é tipo especial em referência ao homicídio (art. 121, CP), eis que contém os seus elementos (matar alguém) com o acréscimo de elementos especializantes (a mãe como autora, durante ou logo após o parto, agindo, sob influência do estado puerperal, contra o próprio filho). Nesse caso, porque há uma força de atração que opera entre o infanticídio e o homicídio, decorrente da especialidade do primeiro (um minus no cotejo com o tipo geral), tão somente o art. 123 do CP se aplica, embora, na aparência, os dois dispositivos confiram adequação ao fato.

Igualmente, o estupro (art. 213, CP) contém todos os elementos do constrangimento ilegal (art. 146, CP), com a adição de que a vítima é constrangida a ato determinado (conjunção carnal ou outro ato libidinoso), representando o tipo especial (estupro) um plus ou majus em face do tipo geral (constrangimento ilegal). Portanto, se ocorre estupro, desintegra-se o tipo do constrangimento ilegal.

Idem: o peculato (art. 312, CP), um plus no que atine à apropriação indébita (art. 168, CP), descortina todos os elementos constitutivos desse crime, a que se agregam as circunstâncias de o agente ser...

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