Conflito de interesses nas sociedades anônimas: critério de apuração formal ou substancial?

AutorMarcella Blok
Páginas36-66

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Introdução

O presente artigo não pretende esgotar o tema referente ao Conflito de Interesses. Almejo com tal escrito servir de orientação e aprendizagem para futuros juristas e amantes do saber jurídico.

O trabalho começará abordando as Sociedades Anônimas e o indescritível "divisor de águas" causado pela mesma na história da economia e do direito societário. Não há como se entender a realidade econômica e política atual sem se atentar para o crescimento das sociedades anônimas e seu papel fundamental para o desenvolvimento da economia. As companhias abertas e suas transnacionais gozam de muito mais poder, soberania e riqueza que os outrora Estados-Nações e que algumas nações pobres remanescentes dos países de terceiro mundo.

As sociedades anônimas cresceram a passos galopantes se comparadas com os demais tipos societários. O progresso político, atrelado aos novos meios de produção econômicos e às novas necessidades de consumo, clamavam por uma sociedade que atendesse e acompanhasse tais mudanças ocorridas de forma célere, eficaz e intensa, oferecendo-lhes não somente uma real possibilidade de auferir lucros, desde logo, como também limitando a responsabilidade dos sócios e permitindo que um sem-número de indivíduos pudessem de forma simples e segura ter acesso a participações em distintas empresas como bem entendessem, isto é, escolhendo o quanto e de que forma desejassem investir. Sem sombra de dúvidas, as Sociedades Anônimas promoveram uma real e incrível revolução jamais antes vista (muitos a comparam somente à Revolução Industrial): a passagem de sociedades moldadas no affecto societatis, leia-se, sociedades de pessoas, para sociedades de capitais, isto é,

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com pessoas reunidas única e exclusivamente por motivos de lucro e capital e não por motivos de afeto e "afinidade" às pessoas/sócios como ocorria no "perfil" de empresa anterior.

Há de se ressaltar (e é isto o que se fará no item 1), entre os direitos essenciais dos participantes das Sociedades por Ações e com mais vigor, nas sociedades anônimas, o direito de voto. Não restam dúvidas de que o voto representou para as primeiras companhias a maneira mais justa e equânime de promover a democracia dentro do grupo, visto levar em conta o desejo da maioria dos votantes. A Assembleia Geral era a ágora, o espaço público no qual os acionistas que assim o desejassem pudessem exercer seu direito político de voto. O voto representava, neste esteio, uma uniformização de direitos. Dito de outra forma, se todos os acionistas tinham o mesmo direito - o de voto -, este os unia e os unificava de modo a serem, os mesmos, "pessoas do mesmo time".

Ocorre que com a pulverização do capital e a ganância dos seres humanos em ganhar cada vez mais e mais dinheiro, alguns acionistas passaram a abdicar do seu direito de voto, repita-se, essencial, em prol de ganharem mais dinheiro e poder. Outros, ao revés, enxergaram em tal voto uma porta de entrada para o poder e para uma real possibilidade de receberem benefícios individuais por meio do voto, tendendo a companhia a seguir os "fluxos" que lhe fossem particularmente favoráveis. Nesse panorama histórico é que surgem os conflitos de interesses, objeto sub examine do item 3.

Ao revés do que afirmam alguns autores, o conflito de interesses não é problemática nova a ser solucionada. Desde os primórdios do século XIX até os dias de hoje, tal tema vem dando azo a acirrados debates e distintas formas de interpretação. Os Decretos-lei ns. 575/1849, 434/1891 e 2.627/1940, não obstante oferecerem re-gramentos sobre as Sociedades por Ações considerados modernos para o período em que vigoravam, não apresentavam de forma contundente norma alguma sobre o conflito de interesses. Também pudera: as Sociedades Anônimas "propriamente ditas" (com as características dos dias de hoje) não haviam, todavia, entrado em cena. O contexto para seu advento, no entanto, não tardou muito.

Em 1976, mais precisamente no dia 15 de dezembro daquele ano, uma nova era estava por vir: a Lei das Sociedades por Ações, ou como é mundialmente conhecida, a Lei das Sociedades Anônimas. Esta representou um grande marco, sobretudo, jurídico. Com dispositivos astutos, práticos e eficientes, areferida Lei n. 6.404/1976 inseriu o Brasil no panorama externo. Se analisarmos a quantidade de companhias registradas na década passada com o número de companhias que abriram seu capital hodiernamente, notamos um crescimento exponencial bastante evidente.

O subitem 2.1 apresenta um breve resumo da Lei n. 6.404/1976 supra e no subitem seguinte, apresenta-se o conteúdo do art. 115 e seus parágrafos referentes ao conflito de interesses e ao abuso do direito de voto. Em resumo, tem-se que o art. 115, caput, impede que determinado acionista vote se em contraposição ao interesse da companhia ou se por meio de seu voto restar apurado que agiu de forma abusiva causando dano à Sociedade, vista esta como um ser unitário que concentra os desejos de seus participantes/acionistas. O § 1o deste dispositivo apresenta um rol de situações nas quais o acionista está vedado de votar. As duas primeiras situações, quais sejam, nas deliberações da Assembleia Geral relativas ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital social e à aprovação de suas contas como administrador, não abrem margem para maiores dúvidas e/ou debates. Tome-se como exemplo a hipótese de um acionista que quer vender um veículo para ser utilizado pela sociedade e o faz de forma a "extrair" da mesma um preço maior que o

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preço de mercado pago para este veículo. Há alguma dúvida de que ele estaria tentando obter um maior ganho à custa da companhia? A prima vista, não. O mesmo se dá quando o acionista tenta aprovar suas contas como administrador- é óbvio e ululante que ele nunca iria se delatar -, sempre exerceria o voto em seu benefício individual. Contudo, tal "certeza" de que o acionista não poderá votar não ocorre em relação às duas últimas situações, sejam as que puderem beneficiar o acionista de modo particular, sejam as situações onde houver um interesse conflitante com o da companhia.

Em relação ao conflito de interesses, embora, reitere-se, não se possa conceituá--lo de forma precisa, busca-se esclarecer algumas noções básicas acerca do mesmo. Grosso modo, o conflito de interesses surge quando o interesse de um sócio colide com o interesse da sociedade como um todo. A problemática atinente ao conflito de interesses surge exatamente aqui: como apurarmos se determinado voto foi conflituoso ou abusivo? Por meio de determinados critérios. Mas que critérios são estes? É isso o que será largamente debatido no item referente aos critérios de apuração substancial e formal, utilizados como definidores da apuração do exercício de voto. Via de regra, a história vem determinando que no caso das duas primeiras hipóteses de impedimento de que trata o § 1° do art. 115 da Lei das S/A, aplicar-se-ia o impedimento de voto apriori, é dizer, utilizando--se do critério formal o qual determina que o impedimento de voto deve se dar desde já, leia-se, de modo preventivo; e não por meio de uma análise a posteriori como é o caso do critério substancial. Se um determinado acionista vota pensando em si mesmo utilizando-se da empresa para angariar maiores lucros individualmente torna-se mais difícil apurar se, realmente, este acionista agiu de má fé ou não, querendo beneficiar-se particularmente em detrimento dos demais acionistas da companhia. Nesse diapasão, a imensa maioria dos doutrinadores e da jurisprudência nacionais e alienígenas entende ser o melhor critério de apuração o critério substancial o qual busca fornecer maior justiça, já que analisa se determinado voto prejudicou a companhia depois que o mesmo foi exercido. E assim também o faço.

1. Das sociedades anônimas: breve histórico

Abordar a economia mundial implica necessariamente em inserir em tal análise as sociedades anônimas, cujo crescimento e solidificação ocorreram a passos galo-pantes se comparado aos outros tipos societários. A Economia e o Direito Societário completam-se e complementam-se. Prova irrefutável de tal fato é que, enquanto na década de 1970, existiam cerca de 195.000 companhias industriais (leia-se, Sociedades Anônimas de Capital Aberto) nos Estados Unidos com ativos no valor total de U$ 500 bilhões, o que equivalia a 18,3% das "organizações de produção",1 hodiernamente, a quantidade de companhias e o faturamento bruto das mesmas foram alterados significativamente.

Observe-se, de início, que a vida comercial, tão logo tomou impulso, buscou a associação de capitais e de esforços para tornar possível a multiplicação dos lucros. E das formas societárias - da qual a S/A é a mais perfeita e completa - nasceram todas as práticas e usos dos comerciantes medievais, seja no comércio de terra, seja no comércio além-mar.

Foram necessários séculos de evolução para que chegássemos às primeiras sociedades anônimas - com a limitação de responsabilidade de todos os sócios e a livre transferibilidade das participações societárias incorporadas...

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