A conformação do mercado de trabalho da Mulher e a proteção do direito internacional do trabalho contra práticas discriminatórias

AutorSayonara Grillo Coutinho Leona da Silva
Ocupação do AutorOrganizadora
Páginas133-151

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1. Introdução

O presente artigo tem por escopo examinar as configurações do mercado de trabalho da mulher, suas principais características, bem como os obstáculos encontrados pela trabalhadora que deseja disponibilizar sua força de trabalho neste mercado e se vê frequentemente diante de práticas discriminatórias que se fundamentam em estereótipos que tendem a desqualificar o trabalho feminino extradoméstico. Ademais, por meio do estudo de três convenções internacionais que demonstram a relevância e a preocupação com a igualdade de gênero e o respeito dos direitos laborais das mulheres, busca-se refletir sobre a proteção do trabalho feminino segundo o Direito Internacional do Trabalho.

Inicialmente, importa esclarecer que mercado de trabalho pode ser entendido como um arranjo institucional, inserido no sistema mais amplo da produção capitalista, que cumpre duas funções básicas: de um lado, aloca a força de trabalho da sociedade entre diferentes usos produtivos; de outro, assegura renda aos que participam de suas transações. Na maioria das transações mercantis, o vendedor transfere os direitos de propriedade da mercadoria ao comprador e, em contrapartida, recebe certo montante de dinheiro. Não é o que ocorre no caso do trabalho, pois, em troca do recebimento de salários e de um conjunto de benefícios ofertados pela empresa (lado da demanda), o trabalhador (lado da oferta) coloca sua capacidade de prestar serviço por um intervalo de tempo (hORN, 2006).

Contudo, a força de trabalho inexiste fora da corporalidade viva do trabalhador, portanto, diferentemente das mercadorias que são produzidas pelo trabalho, a força de trabalho vai por si só ao mercado, razão pela qual Polanyi considerou-a uma mercadoria fictícia:

[O] trabalho, a terra e o dinheiro [...] de acordo com a definição empírica de mercadoria, não são mercadorias.
O trabalho é apenas outro nome para uma atividade humana que é parte da própria vida, a qual por sua vez não é produzida para a venda mas por razões inteiramente diversas, e esta atividade não pode ser destacada do resto da vida, ser armazenada ou mobilizada; a terra é apenas um outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem; o dinheiro real [actual money] por fim, é apenas um símbolo de poder de compra que, de maneira geral, simplesmente não é produzido, mas passa a existir através do mecanismo dos bancos ou da finança estatal.
Nenhum deles é produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia (1980, p. 94).

A mercadoria – um bem, produto do trabalho humano, para a troca em vez de para o uso – não é uma exclusividade do capitalismo, mas o que distingue o capitalismo é que ele se caracteriza por um sistema generalizado de produção de mercadorias em que a força de trabalho também figura como algo que é comprado e vendido. A organização do mercado de trabalho é distinguida por uma desigualdade estrutural dos recursos de poder.

Além dessa assimetria estrutural básica que o configura, o mercado de trabalho apresenta outras assimetrias, entre elas a que envolve a dimensão do gênero. As relações de gê-nero têm perpetuado uma desigual distribuição dos esforços

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cotidianos em torno da reprodução das condições de subsistência das famílias, especialmente daquelas relativas ao chamado mundo privado, o que faz com que as mulheres sejam, em geral, senão as únicas, as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e pelo cuidado dos filhos e demais familiares. O trabalho das mulheres, diferente do que acontece com os homens, não depende apenas da demanda no mercado ou da sua capacidade para atendê-la, mas decorre também de uma articulação complexa de características pessoais e familiares.

Embora a igualdade formal entre mulheres e homens seja uma realidade em parcela significativa dos países, pesquisas em nível mundial apontam que tanto a análise quantitativa como qualitativa das cifras estatísticas demonstram as grandes diferenças que existem entre a população masculina e a feminina no mercado de trabalho, sendo as mulheres as que se encontram em uma situação de inferioridade e discriminação em quase todos os casos (ARRIAGADA, 1997).

A relação laboral é uma relação de poder entre desiguais e, por isso mesmo, trata-se de um campo fértil para a discriminação. Entre as discriminações em razão do gênero, mais frequentes estão as diferenças salariais e a segregação ocupacional. Esta última está bastante presente em todas as latitudes, quaisquer que sejam os níveis de desenvolvimento econômico, sistemas políticos e os entornos religiosos, sociais e culturais. A segregação refere-se à concentração de oportunidades de trabalho para as mulheres em setores de atividade específicos e em número reduzido de ocupações dentro da estrutura produtiva. O desenvolvimento da ativi-dade feminina ocorre, principalmente, na direção de espaços já bastante feminizados e a separação de homens e mulheres em determinadas profissões é um dos fatores responsáveis pela disparidade salarial.

Nos postos de trabalho ou profissões de predomínio feminino, as remunerações pagas são inferiores àquelas recebidas nos postos de trabalho ou profissões de predomínio masculino, de modo que, quanto maior for a porcentagem de mulheres que desempenham uma ocupação, menor o salário tanto dos homens como das mulheres que nela trabalha. Além disso, por ocuparem, notoriamente, a maior parte dos trabalhos informais e por tempo parcial, as mulheres são as primeiras a sofrer com os efeitos mais perversos dos rearranjos econômicos e com as atividades mal remuneradas e com uma possibilidade quase inexistente de formação, de promoção e de carreira.

As exigências constantemente atualizadas do mercado de trabalho cobram reciclagens periódicas dos profissionais, além de tempo extra para cursos de aperfeiçoamento, por exemplo. Sendo assim, as possibilidades de satisfação ou insatisfação pessoal, seja como fonte de realização profissional ou de aquisição de poder de compra, terão algum tipo de efeito sobre as relações familiares. As mulheres, particularmente, são bastante afetadas por fatores que dizem respeito às condições internas à família, e não apenas pelos imperativos externos próprios do mundo do trabalho. Assim, é plausível considerar que muitas mulheres pouco favorecidas somente conseguem uma ocupação remunerada quando colocam-se à disposição de outras mulheres das camadas sociais médias e altas que estão plenamente incorporadas no mercado laboral.

2. Feminização do trabalho

As profundas mudanças econômicas, sociais e culturais que se produziram no mundo, no transcurso das últimas décadas, abriram novas oportunidades para as mulheres e transformaram seu papel na vida econômica e social.

A participação, cada vez maior, da mulher no emprego assalariado, compondo a população economicamente ativa, é uma constante, principalmente a partir da década de 1970, em todos os países ocidentais. No Brasil, não foi diferente, e, desde aquela época, mostrou-se intenso o crescimento da população feminina no mercado de trabalho. Nem mesmo as crises econômicas, que assolaram o país a partir da década de 1980, foram capazes de frear esse processo de absorção de mão de obra feminina. Ao contrário, a estagnação e o consequente empobrecimento generalizado da população impulsionaram a mulher a buscar postos de trabalho (TRONCOSO, 2000).

Com efeito, desde o início da industrialização, determinados setores de produção e de serviços já haviam captado amplo contingente de mão de obra feminina. Segundo Léa Calil (2007), a maior empregabilidade de mulheres em deter-minados setores produtivos, mais do que em outros, adveio, e ainda advém, de fatores econômicos, como a busca pelo aumento de lucros, mediante pagamento de menores salários às mulheres, ou por contingências sociais e históricas, como a identificação do lar como o lugar da mulher. Ao fenômeno de grande absorção de mulheres por certos ramos denominou-se feminização ou feminilização do trabalho.

De acordo com uma estimativa realizada pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe, a taxa de atividade feminina total (urbana e rural), ou seja, a porcentagem da população feminina em idade de trabalhar que se encontra ocupada na cidade e no campo, nos países latino-americanos, aumentou de 37,9% em 1990 para 49,7% em 2002, ao passo que a taxa de atividade masculina decaiu de 84,9% em 1990 para 81,0% em 2002 (CEPAL, 2004, quadro III.5a).

Observa-se que, além do crescimento da taxa de atividade feminina, outra tendência interessante está relacionada ao melhor desempenho das mulheres na disputa por postos de trabalho. Desde meados da década de 1980, a taxa anual de emprego das mulheres mostra-se mais elevada que a masculina. Portanto, a absorção da mão de obra feminina tem sido superior à masculina em todas as fases recentes da economia brasileira (LINhARES; LAVINAS, 1997).

Entre as razões que explicam essa conjuntura mais favorável às mulheres do que aos homens, no que se refere à expansão do nível de ocupação, vale destacar o processo de reestruturação produtiva, iniciado na década de 1990, nas indústrias. O reflexo da redução do emprego industrial atingiu mais os homens do que as mulheres, já que...

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