O Conselho no Tribunal: Perfil quantitativo das acoes contra o CNJ junto ao STF/The Council in the Court: A quantitative profile of challenges to the CNJ's decisions before the STF.

AutorRibeiro, Leandro Molhano

I- Introducao

A criacao do Conselho Nacional de Justica (CNJ) foi precedida de intensa e prolongada discussao, levando quase duas decadas para se concretizar na Emenda Constitucional n. 45/2004. Em meio ao processo de democratizacao, os debates no ambito da Assembleia Nacional Constituinte colocaram de forma explicita, na agenda da reforma institucional, a questao do controle e aprimoramento da atuacao judicial. Em especial, foram feitas propostas de criacao de um conselho de justica para realizar essas tarefas. (1) Ja na epoca, juizes e suas associacoes protestavam contra propostas desse tipo, que consideravam abrangentes e vagas demais. (2) No contexto da transicao brasileira para a democracia, a memoria recente de intervencoes politicas na estrutura e na atuacao do judiciario colocava sob suspeita quaisquer medidas que pudessem representar diminuicao da independencia judicial. (3) Essas preocupacoes criavam um cenario favoravel para a mobilizacao das associacoes de magistrados e, por fim, a Constituicao de 1988 foi promulgada sem nenhum tipo de orgao de controle da atuacao judicial. Mesmo rejeitada na Constituinte, porem, a ideia de se instituir um conselho de justica nao saiu completamente da pauta nacional. Ja no inicio dos anos 90, por iniciativa do deputado Helio Bicudo, comeca a tramitar no Congresso a proposta de emenda a Constituicao que viria a ser conhecida como "Reforma do Judiciario", aprovada apenas em 2004. Em meio ao conjunto de reformas agrupadas sob a EC n.45, o Congresso Nacional cria o Conselho Nacional de Justica, instituindo assim o que a Assembleia Constituinte havia rejeitado.

Com relacao aos debates dos anos 80 e 90 sobre independencia judicial e accountability, a EC 45 representa uma tomada de posicao. Nao apenas o pais teria um orgao especifico para controle do funcionamento do Judiciario, mas esse orgao (i) seria interno ao proprio Poder Judiciario e (ii) teria, em sua composicao, membros nao-magistrados. (4) Essas decisoes sobre o desenho institucional do Conselho, porem, continuaram enfrentando oposicao de setores da magistratura, que passaram a judicializar suas objecoes ao seu formato. Logo de saida, ainda em dezembro de 2005, a Associacao dos Magistrados do Brasil (AMB) apresentou uma acao direta de inconstitucionalidade (ADI n. 3367) contra a criacao do CNJ. A AMB apresentou diversos argumentos contrarios a criacao do CNJ: alegou que a composicao do Conselho feria o principio da separacao dos Poderes e a independencia do judiciario; que a instituicao de um conselho nacional seria contraria a autonomia administrativa, financeira e orcamentaria dos tribunais e violaria o pacto federativo, ao submeter a justica estadual a supervisao de um orgao da Uniao; e que as competencias do CNJ eram sobrepostas as do Conselho da Justica Federal e do Conselho Superior da Justica do Trabalho. O STF rejeitou o pedido da AMB em abril de 2005. Essas objecoes refletiam, em larga medida, uma continuacao de argumentos ja apresentados durante as discussoes, no Congresso, sobre a PEC da Reforma Judiciario.

Como se sabe, os Ministros do STF decidiram a ADI 3367 afirmando, com apenas um voto vencido, a constitucionalidade do CNJ. Mas, mesmo superada essa questao, o debate sobre desenho institucional do controle do judiciario no Brasil continuou. A EC 45 deu inicio a novas disputas e conflitos, para alem da ADI 3367. A emenda tracou apenas parcialmente o destino do Conselho como instituicao; por mais que sua composicao e estrutura estivessem detalhadas no texto constitucional, o novo artigo 103-B da Constituicao precisaria ser interpretado. (5) De fato, em sua primeira decada de existencia, o CNJ experimentou diversos conflitos interpretativos sobre suas proprias competencias--conflitos que, muitas vezes, expunham desacordos profundos, entre os muitos atores do sistema judicial, sobre aspectos fundamentais do desenho da instituicao.

Esses debates e conflitos interpretativos ocorrem em arenas variadas, das quais duas sao particularmente relevantes. De um lado, o proprio Conselho Nacional de Justica se torna um espaco de constante debate interno sobre o seu papel e os seus poderes. Desde sua instalacao em 2005, as diferentes composicoes do CNJ precisaram interpretar sua missao e a extensao de seus proprios poderes e, com isso, definir, ainda que indiretamente o desenho da instituicao. Em especial, na medida em que implementavam suas agendas, diferentes Presidentes e Corregedores do Conselho afirmavam certas competencias e poderes ao mesmo tempo em que colocam outras potencialidades institucionais em segundo plano (6). Para alem do CNJ, o Supremo Tribunal Federal e tambem uma arena na qual o seu desenho institucional tem sido constantemente debatido. Todas as decisoes do CNJ, de qualquer natureza, estao sujeitas a revisao e/ou controle de constitucionalidade por parte do STF.

A canalizacao da discussao das atribuicoes e competencias do CNJ para o STF, porem, nao significa apenas uma contestacao direta das acoes pontuais daquele orgao. Na verdade, permite uma redefinicao do seu desenho institucional. Seja resolvendo conflitos concretos--por exemplo, em mandados de seguranca impetrados por juizes ou tribunais questionando medidas administrativas impostas pelo Conselho--, seja decidindo acoes de inconstitucionalidade envolvendo o poder normativo do CNJ, o STF acaba sendo um espaco de dialogo sobre como o Conselho deveria ser desenhado. (7) As decisoes do STF sobre as acoes do CNJ podem levar a diferentes resultados, vetando, afirmando ou "modulando" atribuicoes e competencias conferidas ao Conselho pela EC 45/2004. Com isso, a judicializacao das decisoes do CNJ abre espaco para que os diversos posicionamentos conflitantes sobre o papel e as funcoes desse orgao sejam rediscutidos em uma nova arena decisoria, o STF (8).

Nesse sentido, a judicializacao pode se apresentar como um instrumento de resistencia ou de reforma institucional. O objetivo desse trabalho e analisar, de forma quantitativa, o embate sobre o desenho institucional do CNJ dentro do STF como arena decisoria especifica. Utilizando dados do projeto Supremo em Numeros da FGV Direito Rio, tracamos um perfil quantitativo das acoes judiciais propostas junto ao STF em que se contestam medidas e decisoes tomadas pelo CNJ (9). Procuraremos investigar, em especial, quais sao e como se transformaram ao longo do tempo: (i) os principais participantes desse dialogo judicial sobre os poderes do Conselho, ( ii) os principais pontos de contestacao desses participantes e (iii) os padroes observaveis de reacao do STF nesse processo de judicializacao de decisoes do CNJ. Nessa analise, procuraremos identificar se e como essas tres dimensoes podem expressar conflitos sobre o desenho institucional do CNJ e o grau de centralizacao ou descentralizacao que ele expressa.

II--O CNJ como construcao institucional em aberto

2.1--CNJ e Reforma do Judiciario

A criacao do CNJ insere-se em um projeto mais amplo sobre a reforma do poder judiciario no Brasil, implementado com a aprovacao da Emenda Constitucional n.45, de 2004. Sendo assim, alem da criacao do CNJ, as principais inovacoes introduzidas pela EC 45 foram os mecanismos da "Sumula Vinculante" e da "Repercussao Geral". (10) Apesar de o formato final desses mecanismos ter sido definido nos dois anos anteriores a aprovacao da EC 45, eles expressam ideias e preocupacoes presentes na agenda politica brasileira desde os anos 1990. Em linhas gerais, esse projeto de reforma do judiciario visava conferir mais poderes ao STF para resolver conflitos e embates entre os atores politicos - Executivo e Legislativo - sobre politicas publicas, especialmente sobre politicas de estabilizacao economica elaboradas nos anos 1990.

De fato, diversas medidas economicas elaboradas nos anos 1990 foram contestadas por partidos politicos de oposicao e por poderes locais, sobretudo governos estaduais (Nunes, 2010 e Taylor, 2007; 2008). Essas contestacoes tiveram impactos negativos sobre a implementacao das politicas publicas, atrasando-as ou ate mesmo as anulando em alguns casos. As propostas de conferir maiores poderes ao STF--sobretudo em termos de aumentar a obrigatoriedade de suas decisoes com relacao ao resto do judiciario--surgiram justamente nesse contexto. Mais ainda, no inicio da decada passada, forcas de oposicao, antes contrarias a tais medidas de fortalecimento do STF, mudaram seu entendimento quando passaram a exercer o poder executivo nacional (Nunes, 2010).

A tentativa de aumentar o poder do judiciario e particularmente de seus orgaos de cupula fez parte de diversos projetos de reforma na America Latina (Finkel, 2008). Embora possam parecer paradoxais - afinal, por que aumentar a autoridade e a independencia do judiciario e dos tribunais superiores?--tais projetos de reforma podem ser explicados pela logica da "governanca" (Nunes 2010). Nesse caso, em determinadas situacoes, um judiciario independente e poderoso pode ser um recurso importante para superar obstaculos a implementacao de politicas publicas. O argumento central dessa proposicao e que, em contextos de alta fragmentacao politica - como no caso do Brasil, devido ao elevado numero de partidos politicos e a estrutura federativa - o exercicio do controle de constitucionalidade atraves de uma corte superior permite que os governantes superem impasses criados por interesses oposicionistas, principalmente no momento da implementacao de uma politica publica.

Esse alinhamento entre os objetivos do governo e a decisao de juizes de cortes superiores se daria por conta da existencia de dois "mecanismos": i) controle politico das decisoes dos tribunais, ou seja, a possibilidade dos poderes executivo e legislativo revisarem o resultado do exercicio do poder jurisdicional por parte dos tribunais e ii) processo politico de preenchimento de vagas nos tribunais--no caso do Brasil, indicacao presidencial dos juizes seguido de sabatina no Senado -, que levaria a escolha de...

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