Consequencialismo judicial na modulação de efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade nos julgamentos de direito tributário

AutorDaniela Gueiros Dias
Páginas45-155

Page 45

Considerações introdutórias

O uso de argumentos consequencialistas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) tem se tornado cada vez mais frequente1, 2 em um cenário de "expansão da autoridade do Supremo em detrimento dos demais poderes."3

Page 46

A título meramente exempliicativo, no RE 134.509, no qual se discutiu a incidência do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores em relação a embarcações e aeronaves, o Plenário do STF declarou que estes não conigu-ram fato gerador do tributo. A questão para a análise dos ministros poderia ser formulada em termos estritamente formalistas (i.e., embarcações e navios são veículos automotores, atraindo, portanto, a incidência da regra de competência?), o que alegraria sobremaneira H. L. A. Hart, não tivesse ele falecido em 1992.4No entanto, considerações consequencialistas parecem ter exercido um peso sobre a decisão inal, de modo que a solução do caso não se restringiu à questão da mera incidência normativa. É o que se depreende do voto do Ministro Francisco Rezek:

(...) se se izer a análise etimológica da expressão "veícu-los automotores", como fez o autor citado nos autos, é sempre possível concluir que se pode enquadrar no conceito de veículo automotor o navio e a aeronave. Pode ser enquadrada também qualquer criatura do reino animal, veículo que é porque capaz de transportar coisas, e automotor porque independente de qualquer tração externa à sua própria estrutura física. (...)

O que se espera do doutrinador, quando escreve sobre direi-to tributário, não é que nos diga aquilo que pensa sobre o signii-cado das palavras. (...)

Penso no que seriam as consequências de se abonar a constitucionalidade dessa exação. Penso em como se deveriam alterar normas relacionadas com registros e cadastros. Penso no IPVA, que o constituinte manda ser arrecadado por Estados e repartido depois com o município onde está licenciado cada veículo. Penso em como se afetarão navios e aviões aos municípios...

Se isso devesse ser feito, para dar alguma valia operacional à pretensão tributária de alguns Estados, imagino as consequências. (...)5Como se constata, o ministro Francisco Rezek acreditava que a determinação da hipótese de incidência do IPVA exclusivamente com base na conceituação de "veículos automotores" poderia levar a entendimentos absurdos, já que, em última análise, "[d]os animais mais lentos, (...), aos mais velozes; dos

Page 47

mais robustos, (...), aos mais frágeis, todos nós incluiríamos no conceito de veículo automotor se ele devesse ser compreendido semanticamente".

Daí a necessidade de que, segundo o ministro, a constitucionalidade da exação fosse analisada a partir das consequências que a decisão poderia gerar no mundo real. A diiculdade de criação de registros nos Estados e Municípios com a inalidade de afetar aeronaves e embarcações às suas jurisdições, bem como o conlito que surgiria entre entes federados "desejosos, de algum modo, de aumentar sua receita mediante a aplicação de tarifas reduzidas e outras coisas mais" seriam, aos olhos do ministro Francisco Rezek, consequências negativas que, como tais, deveriam ser evitadas. Assim, a solução mais adequada ao problema seria rechaçar a incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves.

A linha argumentativa do ministro Francisco Rezek permite perceber que os argumentos consequencialistas exerceram um grande peso em sua tomada de decisão, inclusive maior do que a própria interpretação semântica da regra de incidência tributária. O problema parece residir no fato de que, apesar de intuitivas, as consequências elencadas pelo ministro não são corroboradas por nenhum dado empírico que permita aferir a probabilidade de elas de fato se materializarem. Generalizada, essa prática pode deixar os processos de tomada de decisão dependentes excessivamente das especulações dos juízes sobre os efeitos de suas possíveis decisões.

Assim, se é verdade que em alguns julgamentos na seara tributária, tal como no exemplo acima, os ministros não apenas pensam nos efeitos, mas de fato usam argumentos consequencialistas na tomada de suas decisões, então faz sentido perquirir se é "possível controlar normativamente o futuro em sua conexão com o passado e o presente"6num cenário de incerteza e imprevisibilidade, onde as capacidades epistêmicas dos ministros para se engajar nesse tipo de argumento não são óbvias.

Essas incertezas levantam uma série de questões a respeito da ampla utilização de argumentos consequencialistas em processos de tomada de decisão jurídica, pois a impossibilidade de prever o futuro poderia vincular aos juízos prospectivos típicos da argumentação consequencialista altas margens de discricionariedade judicial.

Isso porque, de um lado não é desejável que os ministros justiiquem suas decisões com base exclusivamente nas consequências que elas podem gerar, haja vista a necessidade de que as razões apresentadas encontrem suporte no direito, conferindo legitimidade à decisão e combatendo as arbitrariedades do aplicador.7

Page 48

Em sentido oposto, porém, é igualmente indesejável que nenhuma das possíveis consequências da decisão sejam levadas em consideração em julgamentos tributários, já que decisões judiciais apresentam uma pretensão de universalização a partir da solução apresentada no caso concreto,8, 9 o que exige que o aplicador pense seriamente na consequência de suas decisões ante a possibilidade de sua universalização.10Este é um reclame isonômico, na medida em que casos semelhantes devem ser tratados de forma semelhante.11, 12

Page 49

Dessa forma, os dois extremos acima apresentados devem ser rechaçados, já que o primeiro exclui a possibilidade de justiicativas racionais baseadas em con-siderações consequencialistas ante a existência de incertezas relativas ao futuro e à imprevisibilidade absoluta das cadeias de consequências, enquanto o segundo ignora não somente que a qualidade das decisões judiciais pode depender das consequências que o aplicador pretende ver concretizadas no mundo real como também da necessidade de que ele aja com prudência e responsabilidade ao decidir.13

Ademais, se os ministros devem conquistar a coniança dos indivíduos constantemente e isto é feito por meio das justiicativas que apresentam nas suas decisões,14 talvez faça sentido exigir que as razões apresentadas considerem seriamente as diversas consequências que provavelmente advirão de cada alternativa decisória.

Neste contexto, o presente trabalho tem por objeto a análise crítica do uso do consequencialismo judicial para a modulação dos efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade, nos termos do art. 27, da Lei 9.868/1999,15 pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento das questões envolvendo Direito Tributário. De início, convém deixar claro que o trabalho não tem por objetivo defender o uso de argumentos consequencialistas como panaceia geral para a solução de conlitos nesta seara do Direito. A ideia é analisar como argumentos consequencialistas são operacionalizados no Supremo Tribunal Federal e, a partir daí, propor o abandono de metaestratégias de decisão com pretensões de maximização local.

Assim, o trabalho é divido em duas etapas. Na primeira, busca-se responder às seguintes perguntas de pesquisa: (i) os ministros utilizam argumentos consequencialistas? Em caso positivo, (ii) os juízos prognósticos inerentes à argumentação com base em consequências, quando realizados pelos minis-tros do STF, são acompanhados de documentos, estudos ou dados capazes de lhes servir de suporte? As hipóteses são: (i) os ministros utilizam argumentos consequencialistas e (ii) a maior parte dos juízos prognósticos não são acompanhados de documentos, estudos ou dados capazes de lhes servir de suporte.

Page 50

Uma vez conirmada a hipótese (ii), analisa-se criticamente a utilização de ar-gumentos consequencialistas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e se conclui que possíveis déicits epistêmicos podem comprometer o engaja-mento dos ministros nesse tipo de argumento.

Na segunda etapa, parte-se para uma análise normativa de segunda ordem, na qual fundada nas conclusões da primeira parte do trabalho, defende-se existirem fortes razões para que o Supremo Tribunal Federal abandone uma estratégia de maximização local em favor da maximização global de suas decisões.

  1. Metodologia

    Em que pese a alta demanda pelo curso de Direito no país, a pesquisa jurídica, quando comparada às pesquisas realizadas em outras áreas do saber (medicina, economia e engenharia, e.g.), é atrasada.16Basta destacar, nesse sentido, que a existência de 1.240 faculdades de Direito no território nacional, num quadro em que o restante do mundo totaliza 1.100 universidades,17é acompanhada de uma produção jurídica que por vezes recorre às técnicas de "manualismo" e "reverencialismo", reproduzindo de maneira acrítica manuais e livros de doutrina ao mesmo tempo que argumentos de autoridade parecem encerrar qualquer controvérsia cuja solução demande um estudo mais aprofundado.18No cenário acima descrito, onde a maior parte da comunidade jurídica brasileira parece compreender a pesquisa jurídica como um "levantamento biblio-gráico" e, quando muito, uma "análise crítica com confronto de teses, com o predomínio de pesquisas teóricas e dogmáticas",19a abordagem empírica tem sido preterida. A questão pode se revelar como um paradoxo se, na linha das críticas tecidas por João Maurício Adeodato, "além da ignorância sobre como pesquisar e como apresentar os resultados de suas pesquisas, os juristas estão em geral tão envolvidos com problemas práticos do dia a dia que não têm tempo para estudos mais aprofundados".20O paradoxo consiste precisamente no fato de que a má qualidade da produção jurídica é atribuída, dentre outras coi-

    Page 51

    sas, ao envolvimento exacerbado com problemas do cotidiano e, no entanto, poucos são os trabalhos de Direito que se preocupam com questões empíricas.

    Buscando contribuir, ainda...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT