Conservador nos costumes e liberal na economia: liberdade, igualdade e democracia em Burke, Oakeshott e Hayek

AutorOsmir Dombrowski
CargoUniversidade Estadual do Oeste do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Toledo, PR, Brasil
Páginas223-234

Page 223

223 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592020v23n2p223

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592017v20n2p263


ESPAÇO TEMÁTICO: DIREITOS HUMANOS, DEMOCRACIA E NEOCONSERVADORISMO

Conservador nos costumes e liberal na economia: liberdade, igualdade e democracia em Burke, Oakeshott e Hayek

Osmir Dombrowski1https://orcid.org/0000-0002-7043-1880

1Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Toledo, PR, Brasil

Conservador nos costumes e liberal na economia: liberdade, igualdade e democracia em Burke, Oakeshott e Hayek

Resumo: Baseado na análise dos textos seminais: Reflexões sobre a Revolução em França, de Edmund Burke; Ser Conservador, de Michael Oakeshott e Por que não sou Conservador, de Friedrich A. Hayek, este ensaio apresenta ao leitor os princípios fundamentais do conservadorismo moderno originalmente articulado em oposição ao liberalismo, ao mesmo tempo em que expõe criticamente os elementos teóricos que permitem sustentar a contraditória aliança política condensada na expressão conservador nos costumes e liberal na economia.

Palavras-chave: Conservadorismo. Liberalismo. Burke. Oakeshott. Hayek.

Conservative in customs and liberal in economics: freedom, equality and democracy in Burke, Oakeshott and Hayek

Abstract: Based on the analysis of the seminal texts Reflections on the Revolution in France, by Edmund Burke; On Being Conservative, by Michael Oakeshott; and Why I Am Not Conservative, by Friedrich A. Hayek, this essay presents the fundamental principles of modern conservatism originally articulated against liberalism, while exposing the theoretical elements that support the contradictory political alliance condensed into the phrase conservative in customs and liberal in economics.

Keywords: Conservatism. Liberalism. Burke. Oakeshott. Hayek.

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Recebido em 19.09.2019. Aprovado em 11.02.2020. Revisado em 28.02.2020.

R. Katál., Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 223-234, maio/ago. 2020 ISSN 1982-0259

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Introdução

Nos últimos tempos, tem sido muito frequente, sobretudo na imprensa, o uso da expressão liberal na economia e conservador nos costumes, em alusão a uma posição política que une elementos do conservadorismo e do liberalismo. Do ponto de vista teórico, entretanto, a justaposição dos termos conservador e liberal é algo que requer alguma explicação. Apesar da retórica anticomunista – ou antipetista – adotada por divulgadores de ambas matrizes ideológicas, são imensas as diferenças que as separam.

O conservadorismo surgiu na passagem do século XVIII para o XIX como crítica à Revolução France-sa, seus pressupostos teóricos filosóficos e seus desdobramentos político-institucionais, ou seja, trata-se de uma ideologia que se manifestou historicamente como consequência direta do sucesso do liberalismo. Conservadorismo e liberalismo são, portanto, duas correntes de pensamento que estão historicamente ligadas, porém, de modo dialético, uma como negação da outra.

O ensaio aqui apresentado faz uma breve incursão no interior dessas duas correntes de pensamento e, ao mesmo tempo em que apresenta ao leitor seus princípios fundamentais, busca encontrar em cada uma delas, um ponto de apoio suficientemente firme para sustentar a propalada aliança entre conservadores e liberais, apesar das contradições que ela suscita.

Como é amplo o consenso entre estudiosos1de que as Reflexões sobre a Revolução em França (1790) constituem o marco inicial do moderno pensamento conservador, o presente ensaio tem na célebre obra de Edmund Burke (1982) o seu ponto de partida. Em seguida, faz-se uma digressão sobre a atualização do conservadorismo efetuada pelo filósofo inglês Michael Oakeshott (2016), o mais original pensador conservador do século XX, condensada no ensaio Ser Conservador de 1956. A contraposição do pensamento conservador com o liberalismo é sensivelmente facilitada pelo ensaio Por Que Não Sou Conservador, escrito na mesma época pelo influente pensador liberal Friedrich August Hayek (2006) e publicado como posfácio de Os Fundamentos da Liberdade em 1959. Por fim, a análise dessas três obras seminais é concluída com algumas reflexões sobre a relação de ambas as correntes teóricas com o movimento democrático.

Burke – origens do conservadorismo

Foi no calor dos fatos que Edmund Burke escreveu suas Reflexões sobre a Revolução em Fran-ça2. Nelas, o polemista britânico se mostra extremamente preocupado com os rumos que a revolução tomava na França e com a influência que ela exercia sobre o restante da Europa, principalmente, sobre a Inglaterra. Em primeiro lugar, Burke (1982) condena inapelavelmente o fato de que os revolucionários se mostravam mais dispostos a se orientar pela razão abstrata do que pela experiência acumulada ao longo dos séculos. Com isso, evidencia-se o grande apreço que o cavalheiro inglês nutria pela tradição, ao lado da profunda desconfiança, desde então compartilhada por todos os conservadores, em relação ao racionalismo iluminista e à crença na capacidade humana de estabelecer relações sociais fundadas na razão e não baseadas em dogmas e preconceitos.

Para Burke, negar hábitos e costumes estabelecidos e começar uma organização política a partir de abstrações não era apenas um equívoco, mas uma opção que só poderia gerar “calamidades” (BURKE, 1982,
p. 73). Em sua avaliação, o caminho natural e seguro, estava sendo abandonado pelos franceses em detrimento de outro, artificial, criado por homens que se colocavam, dessa maneira, no lugar do próprio criador, de onde ele deduz a inevitabilidade de um efeito perverso, como uma espécie de castigo dos céus3. Deve-se registrar aqui que o natural nesse raciocínio equivale à criação divina, o que confere à tradição abraçada pelo pensamento conservador um fundamento religioso praticamente inevitável que, fatalmente, haveria de se chocar com a laicidade sustentada pelo iluminismo e institucionalizada pela Revolução Francesa.

Os franceses haviam criado ao longo de sua história um conjunto de instituições políticas que, para Burke, poderiam levá-los a superar a crise em paz e segurança e que, portanto, não deveriam ser simplesmente descartadas naquele momento. Mesmo os Estados Gerais, uma instituição tradicional que havia servido aos interesses da nação por séculos, eram, para ele, um bom ponto de partida. Contudo, os revolucionários, agindo “[...] como se pudessem refazer tudo a partir do nada” (BURKE, 1982, p. 71), haviam preferido o caminho da Assembleia Nacional, em que o Terceiro Estado igualado numericamente às outras ordens, emergia soberano, apagando as distinções sociais. E o Terceiro Estado, para Burke, nada tinha que pudesse oferecer à nação.

Tomando apenas e tão somente a lista de nomes e as ocupações dos membros da Assembleia e constatando nela a presença de “[...] profissionais inferiores, ignorantes, mecânicos, [...] obscuros advogados de província [...]” e “[...] todo o bando de chicaneiros municipais [...]”, Burke se sente capaz de emitir um juízo profético: “Assim que vi a lista, vi distintamente, e quase como se passou, tudo aquilo que se

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seguiria.” (BURKE, 1982, pp.75-76). Para ele, o Terceiro Estado era tão incapaz politicamente que até mesmo o caos que se estabeleceu em consequência de sua soberania só poderia ser atribuído a membros decaídos das ordens superiores, notadamente à representação do clero, em que “[...] figurava um grande número de vigários de vila.”, que “[...] não tinham a menor ideia do que fosse um Estado [...]”, e a traidores oriundos da própria nobreza, que “[...] sacrificaram os interesses de sua classe, em favor de vantagens pessoais.” (BURKE, 1982, p. 79). Com esse argumento, Burke contorna uma enorme falha em seu laudo acusatório. Afinal, seria no mínimo contraditório imputar aos obscuros e ignorantes membros do Terceiro Estado, chicaneiros e vigários de vila, a autoria de uma obra com a dimensão da revolução em curso, capaz de submeter a grandiosa elite francesa forjada pela experiência de séculos nos caminhos da tradição, e de estender sua influência sobre toda a Europa aristocrática, logrando obter simpatizantes e seguidores, inclusive entre seus pares no parlamento inglês.

Aplicar uma racionalidade aritmética às coisas da política, na opinião de Burke, era um grande equívoco. Afirmar que “[...] vinte e quatro milhões devem prevalecer sobre duzentos mil”, diz ele, “é ridículo”. (BURKE, 1982, p. 83). Trata-se, para ele, de um cálculo abstrato que desconsidera aquilo que verdadeiramente importa nos governos; os atributos pessoais dos governantes: a honra, a virtude e a sabedoria. E as eleições não podem conferir aqueles atributos a quem já não os tenha. Os “[...] metafísicos e alquimistas de legislação [...]” ao acabar com as distinções e os privilégios de classe, “reduziram os homens à mera condição de números em uma conta, sem conceder-lhes a importância decorrente dos lugares que ocupam.” (BURKE, 1982, p. 178). Para Burke (1982, p. 81), “A ocupação de um cabeleireiro, ou de um operário fabricante de velas – para não falar de muitas outras ocupações servis – não pode ser motivo de honra para pessoa alguma.”. De acordo com o célebre polemista, quem exerce...

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