Considerações finais
Autor | Matheus Almeida Caetano |
Ocupação do Autor | Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra |
Páginas | 445-459 |
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Após o longo e exaustivo trajeto percorrido desde a introdução, atravessando os quatro capítulos da obra, é chegado o momento de extrair as principais considerações e observações finais da investigação sobre os delitos de acumulação no Direito Penal Ambiental.
Nesse sentido, propõem-se as seguintes considerações finais, conforme os respectivos capítulos supradesenvolvidos.
Constatou-se que o modelo social contemporâneo reflete as características essenciais de uma sociedade de risco, entre as quais se destacaram: (i) a predominância de riscos majoritariamente abstratos, invisíveis, imperceptíveis aos sentidos humanos, que podem desencadear danos ambientais irreversíveis com potencialidade de alcance temporal (a afetação das gerações futuras) e global (com efeitos transfronteiriços);
(ii) a irresponsabilidade organizada como o principal problema atual (e provavelmente também futuro) do Estado. Extraíram-se as seguintes relações desse elemento da teoria da sociedade de risco: (ii.1) embora notado um aumento da produção legiferante em matéria ambiental e penal ambiental, observou-se uma menor proteção efetiva do meio ambiente e uma crescente degradação ambiental; e (ii.2) quanto maior o número de agentes poluidores, maior também foi a poluição produzida e menor a efetiva responsabilização daqueles, com isso se notou um aumento do questionamento social em relação às normas de imputação de responsabilidades (sejam as ambientais, sejam sobretudo as penais em razão de seus critérios mais rígidos e garantistas).
A Escola de Frankfurt equivocou-se substancialmente ao tentar deslegitimar a tutela penal do meio ambiente como um todo, primeiramente porque muitas das categorias criticadas e atribuídas com exclusividade a esse novo campo normativo (a saber, o Direito Penal Ambiental, espécie do gênero Direito Penal do Risco para os seus representantes) existem há tempos nos crimes contra a Administração Pública por exemplo, sendo prova disto os bens jurídicos coletivos e a estrutura típica dos delitos de perigo abstrato. Além disso, as críticas de criminalização de bagatelas e de ineficiência proferidas por aquela Escola manifestaram-se tão ou mais atribuíveis ao Direito Penal Nuclear do que ao campo penal
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ambiental, com destaque especial para os crimes contra a propriedade. O déficit de aplicação do Direito Penal Ambiental revelou-se como um reflexo direto da (ii) irresponsabilidade organizada (que se incluiu em um macroproblema de enfraquecimento do Estado diante da globalização econômica) e não como seu aspecto privilegiado ou peculiar.
Ao se deparar com os problemas das mais variadas ordens e complexidades, o Direito Penal Moderno encontrou-se frente ao trilema da ruptura, petrificação ou atualização. Desse modo, classificaram-se os possíveis modelos do Direito Penal do Risco apresentados em face desse trilema da seguinte maneira: enquanto exemplos de ruptura com o Direito Penal elegeu-se o Direito Penal do Inimigo como o expoente categórico e máximo da perversão completa dos valores e limites da racionalidade jurídico-penal.
O Direito Penal de Precaução e a estabilidade futura por meio da tutela penal (enquanto possíveis manifestações jurídico-penais dos princípios ambientais da precaução e da equidade intergeracional) foram considerados como suscetíveis às vias da ruptura, caso se manifestem em figuras de duvidosa legitimidade como os delitos de acumulação, de infração de dever, de mera desobediência ou de comportamentos, pois restariam deslocados completamente da questão da ofensa a bem jurídico por diluírem o desvalor do resultado em face de um exclusivo desvalor da ação, o que não é compatível com o modelo de injusto penal material defendido por todo o trabalho. Em síntese, apontaram-se a precaução e a equidade intergeracional como figuras coadjuvantes na tutela penal (embora se assumam como verdadeiros protagonistas no Direito Ambiental). Os delitos de acumulação, nos moldes propostos por Kuhlen, foram classificados como carentes de legitimidade jurídico-penal e representaram um nítido Direito Penal do Risco por romperem com os princípios da culpabilidade, do direito penal do fato, da igualdade e da individualização das penas, da ofensividade, da presunção de inocência e do in dubio pro reo, da proporcionalidade e da responsabilidade subjetiva.
Como manifestação da petrificação do Direito Penal, vislumbrou-se a linha frankfurtiniana filiada ao Direito Penal Nuclear e que se restringe à tutela penal de bens jurídicos exclusivamente individuais (a teoria monista-personalista do bem jurídico de pré-compreensão antropocêntrica pura) sob as estruturas dos delitos de lesão e de perigo concreto.
Como atualização legítima do Direito Penal despontou o injusto penal material voltado para a proteção exclusiva de bens jurídicos ambientais, fundamentado na ofensividade, cuja proposta dos crimes de perigo abstrato em contextos instáveis de D’Avila procurou comprovar. Restou pro-
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vado que o lugar de manifestação do Direito Penal Ambiental, por excelência, é o Direito Penal Secundário, pelas seguintes razões: (a) o predomínio de bens jurídicos supraindividuais; (b) a ancoragem no modelo de Estado Social ou de Estado de Direito Ambiental; (c) o modelo de microssistemas normativos, ou seja, descodificadores; (d) as pessoas jurídicas como sujeitos ativos de delitos (societas delinquere potest); (e) a presença de sujeitos passivos difusos; (f) a consideração da esfera social do homem, decorrência do reconhecimento da participação constante dos cidadãos na esfera pública; (g) o terreno privilegiado (não exclusivo) da acessoriedade administrativa do Direito Penal e das normas penais em branco.
O Direito Penal Acessório (em especial no âmbito penal-ambiental) consagrou-se pela dinamicidade de seus instrumentos normativos, que permitem uma atualização dos valores-limites de poluição, de exploração dos recursos naturais com valor econômico, bem como a atualização das listas de espécies de animais e de vegetais em risco de extinção. Por tudo isso demonstrou ser esse o ramo do Direito Penal mais adequado ao tratamento dos problemas decorrentes da atual sociedade de risco. O direito penal ambiental brasileiro acompanhou essa classificação, pois além da localização em lei extravagante (Lei Federal 9.605/98 priori-tariamente), há regulamentações processuais penais específicas (artigo 79 da Lei Federal 9.605/98; artigos 61 e 89 da Lei Federal 9.099/95), permitindo-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica (artigo 2º da Lei Federal 9.605/98), além de inúmeros dispositivos com a acessorie-dade administrativa do Direito Penal.
Concluiu-se ainda por uma certa simetria entre as modernidades simples e reflexiva de Beck com os modelos do Direito Penal Nuclear e do Direito Penal Secundário respectivamente. Historicamente antecedente ao último, o Nuclear caracterizou-se pela tutela de bens personalíssimos (a vida, a integridade física e a liberdade, por exemplo) ancorados em fundamentações exclusivamente antropocêntricas em um cenário estatal liberal (marcado politicamente pela defesa dos cidadãos face às intervenções do Estado em três esferas centrais, a liberdade, a propriedade e a vida). Por outro lado, o Direito Penal Secundário mostrou-se compatível com a sociedade de risco (a modernidade reflexiva), pois além da tutela de bens jurídicos de cariz coletivo (indubitavelmente o meio ambiente como o principal deles), notou-se uma abertura ecocêntrica aos fundamentos do próprio Direito, que foi e continua sendo questionado pelas tormentosas questões das incertezas científicas, das relações complexas de causalidade e dos “novos riscos” desde um palco do Estado Social até o de um Estado de Direito Ambiental.
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O Estado de Direito Ambiental apresentou-se como o cenário legitimador do Direito Penal Ambiental, cujo conteúdo, orientado pela Constituição da República de 1988, consagrou os princípios da ofensividade (nos incisos IV, VI, VIII, IX e X do artigo 5º da Constituição da República de 1988) e da proteção exclusiva de bens jurídicos ambientais como estruturantes tanto dessa normatividade, quanto daquele modelo estatal esverdeado. O modelo ecologizado de Estado (um devir) porta uma intrínseca dinamicidade, que está intimamente conectada às condições de seu traço caracterizador: o meio ambiente. Além do último, aquele possui ainda os seguintes elementos: o território, o povo (considerado como as gerações presentes e futuras) e o poder (caracterizado por uma soberania não-absoluta). Destacou-se que, nesse modelo de Estado Ambiental, as estruturas políticas, jurídicas e sociais levam em consideração os fatores ecológicos envolvidos em suas decisões, tarefas e ações, as quais devem sempre ser orientadas pelo farol jurídico da sustentabilidade forte.
Considerando-se a existência da teoria geral do bem jurídico e das variadas escalas de validade no sistema normativo, sustentou-se que a tutela dos bens ambientais não se realiza uniformemente...
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