Epônimos e o consórcio intelectual entre ciência e literatura

AutorRogerio F. Guerra
CargoProfessor-Titular e Editor da Revista de Ciências Humanas
Páginas485-535
Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, Volume 44, Número 2, p. 485-535, Outubro de 2010
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* Eponyms and the relationship between science and literature
1 Professor-Titular e Editor da Revista de Ciências Humanas. Endereço para correspondências:
Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Psicologia, Campus Universitário, Flo-
rianópolis, SC, 88040-970 (rfguerra@cfh.ufsc.br).
Epônimos e o consórcio intelectual entre
ciência e literatura*
Rogerio F. Guerra1
Universidade Federal de Santa Catarina
Alguns escritores recorrem ao co-
nhecimento cientifico para descrever as
doenças e enfermidades mentais de seus
personagens. Tal procedimento melho-
ra a qualidade literária dos textos, como
atestam obras clássicas de Leon Tolstoi
(A morte de Ivan Ilitch, 1886) e Tho-
mas Mann (The black swan, 1953), por
exemplo; alguns escritores brasileiros
também descreveram distúrbios da per-
sonalidade, efeitos sociais de doenças
tropicais e a gênese do fanatismo religio-
so (e.g., Lima Barreto, J. Guimarães Rosa
e Euclydes da Cunha). Por outro lado,
nomes de autores ou personagens fictí-
cios às vezes são utilizados para desig-
nar doenças e fenômenos científicos
(epônimos), como síndrome de Münch-
hausen ou de Stendhal, alucinações lilli-
putianas (Jonathan Swift), síndrome do
Sr. Pickwick (Charles Dickens) e doença
do chapeleiro maluco (Lewis Carroll).
Boa ciência e boa literatura não são in-
compatíveis, mas o oposto é verdadeiro.
Nós postulamos que textos literários
podem ser usados para o treinamento
de habilidades profissionais, uma vez que
tais recursos permitem o aperfeiçoa-
mento dos relatórios técnicos e amplia
a capacidade observacional em relação
aos sintomas de uma enfermidade,
Some writers have recurred to
the scientific knowledge for describing
diseases and mental disturbances of
their characters. It appears that it im-
proves the quality of literary texts, as
may be seen in the classic novels by
Leon Tolstoy (The death of Ivan
Ilytch, 1886), and Thomas Mann (The
black swan, 1953), for example; in
our idiom, some Brazilian writers have
described the personality disorders,
social effects of tropical diseases and
the genesis of fanatical rebellions
(e.g., Lima Barreto, J. Guimarães
Rosa and Euclydes da Cunha). On the
other hand, authors and fictitious cha-
racters may be used for naming dise-
ases and scientific phenomenon
(eponyms), such as Münchhausen and
Stendhal syndromes, Lilliputian hallu-
cinations (Jonathan Swift), Mr. Pickwi-
ck syndrome (Charles Dickens) and
mad hatter’s disease (Lewis Carroll).
Good science and good literature are
not incompatible, but the opposite is
true. We postulated that novels and
poetry may be used for training pro-
fessional abilities, since it makes bet-
ter the writing of technical texts and
improve the observational capacity
regarding the symptoms of diseases,
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Revista de Ciências
H
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Introdução
As histórias de Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), o criador de Sherlock
Holmes, exploram algo valioso no mundo da ciência: o raciocínio lógico
indutivo. Doyle se formara em medicina na Universidade de Edimburgo e ser-
viu como oficial-médico na Guerra dos Bôeres (1899-1902); ele escreveu
um livro panfletário sobre a guerra na África do Sul (The war in South
África, 1902), ganhando com isso o título de cavaleiro. A pobreza o levou a
trocar o consultório médico pela carreira literária, dando vida às deliciosas
histórias de Sherlock Holmes. O conhecido detetive formava uma dupla
inesquecível com Dr. John H. Watson. Holmes tinha profundos conheci-
mentos em química e sabia bastante coisa sobre anatomia; ele não era pos-
suidor de um título acadêmico formal, mas agia como se fosse um psicólogo
forense. Por seu turno, Watson era um médico do Exército Britânico e
atuara como cirurgião no 5º Regimento de Fuzileiros, ocasião em que fora
ferido nos campos de batalha e tivera o azar de contrair tifo quando se
restabelecia num hospital na Índia.
A frase “elementar, meu caro Watson” é uma invencionice de seus admi-
radores, pois nunca fora proferida pelo detetive; ela serve para designar algo
supostamente óbvio para uma mente privilegiada. Um exemplo do modo como
a maquinaria cerebral de Holmes funcionava pode ser visto no capítulo Ciência
da Dedução, da obra inicial de Doyle (A study in scarlet, 1887)2. É a ocasião
em que o detetive aperta vigorosamente a mão de Watson e dispara: “– posso
ver que você esteve no Afeganistão.” Diante do espanto de Watson, ele infor-
ma que uma seqüência de pensamentos se apoderou de sua mente e ele não se
deteve no processo; foi algo rápido e ele não levou mais que dois segundos para
extrair suas conclusões.
Os argumentos são interessantes e merecem detalhamento. Com efeito,
Watson era um cavalheiro do tipo médico e com ares de militar. Tal dedução foi
corroborada por dois fatos: ele tinha uma face amorenada, mas aquela cor não
era natural, uma vez que, ao estender a mão para o aperto de mãos,
assim como preserva a empatia dos pro-
fissionais dos serviços de saúde em re-
lação ao sofrimento humano.
Palavras-chave: Ciência e literatura
– Diários e biografias – Epidemias –
Doença mental – Epônimos
as well as preserve the empathy of
professionals from the health services
on human suffering.
Keywords: Science and literature –
Diaries and biographies – Epidemics
– Mental disturbances – Eponyms.
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2 Arthur Conan Doyle.Sherlock Holmes – Edição completa. Rio de Janeiro: Agir Editora, 2007.
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ele deixara exposto o pulso com cor mais clara. A palidez da face e o braço
esquerdo, mantido numa posição rígida e pouco natural, revelavam que Wat-
son estava ferido e fora exposto a condições de extrema fadiga e doenças.
“Em que lugar poderia um médico inglês ter sido exposto a tantas adversida-
des?”, pensou Holmes consigo mesmo. “É claro que foi no Afeganistão!”, ele
deduziu em seguida. Além de sabermos algo sobre esquemas indutivos de
pensamento, as histórias do detetive nos ensinam que os ingleses mantinham
missões militares no Afeganistão.
Como surgiu a idéia para a criação do inesquecível personagem?
O detetive não foi criado ao acaso, pois Doyle informou que se inspirara
nos traços de personalidade de Joseph Bell, médico-cirurgião do Hospital
de Edimburgo e professor daquela universidade; ele e o seu detetive eram
bem parecidos, no aspecto físico e sagacidade: ambos eram altos, anda-
vam de modo desengonçado e tinham rostos angulosos e narizes avantaja-
dos. A partir de uma simples conversa e olhadela nos pacientes, Bell ex-
traia as informações necessárias para o seu ofício, para espanto de seus
alunos3. Sherlock Holmes era o que Doyle chamava de “detetive científi-
co” e a sua atuação está de acordo com as modernas técnicas de investi-
gação policial. Curiosamente, Bell deveria servir de modelo para criação
de Watson, pois ambos eram médicos e tinham formação acadêmica regu-
lar, mas este simboliza a ciência convencional e desprovida de imaginação,
enquanto Holmes é o gênio outsider que não se dobra aos rigores daquilo
que conhecemos como “metodologia científica”.
Doyle alcançou sucesso imediato, mas as infindáveis histórias o can-
saram e, então, ele resolveu engendrar o “assassinato” de sua criatura;
os leitores protestaram veementemente e ele foi forçado a providenciar o
“ressuscitamento” do detetive. A dupla Holmes-Watson inspirou os per-
sonagens centrais da série televisiva “Os arquivos X”: Fox Mulder (ver-
são moderna de Holmes) é psicólogo forense com formação na Universi-
dade de Oxford, enquanto Dana Scully (ou Dr. Watson) é médica patolo-
gista e atua de modo a enaltecer a inteligência e a sagacidade de seu
parceiro; a diferença nas estaturas é marcante e Mulder parece fitar
Scully tendo como referência uma linha imaginária acima da testa da
parceira. O momento e as circunstâncias em que os dois são apresenta-
dos também repetem o que ocorre no capítulo inicial do livro de Doyle.
Muitos imaginam que esquemas lógicos, o raciocínio matemático ou a
complexidade do conhecimento científico não agradam aos leitores, mas
outros exemplos apontam o contrário.
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3 Arthur Conan Doyle. Memórias e aventuras. São Paulo: Marco Zero, 1993.

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