A constitucionalidade da instituição de políticas de cotas raciais na iniciativa privada à luz da jurisprudência do STF

AutorMarcos Patrick Nunes Alves
Páginas53-118

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A CONSTITUCIONALIDADE DA INSTITUIÇÃO DE POLÍTICAS DE COTAS RACIAIS NA INICIATIVA PRIVADA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO STF

MARCOS PATRICK NUNES ALVES

Resumo
O presente trabalho tem como escopo principal veriicar se as proposições legislativas em tramitação na Câmara dos Deputados, bem como no Senado Federal, que visam a instituir a obrigatoriedade de reserva de vagas para a população negra em setores da iniciativa privada, estão em compatibilidade com o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) irmado na ADPF 186 e na ADC 41. Para cumprir com esse propósito, em primeiro lugar, será veriicado se os argumentos utilizados pelos ministros nos referidos casos podem funcio-nar como precedentes vinculantes. Em segundo lugar, por meio da deinição de ratio decidendi, objetiva-se identiicar se os projetos de lei selecionados cumprem com os requisitos deinidos pelos ministros no julgamento dessas duas ações, que tiveram como resultado a declaração da constitucionalidade da instituição de ações airmativas de cunho étnico-racial. Sobre esse ponto, não obstante ser possível a instituição de cotas na iniciativa privada em função da persistência de discriminação racial no Brasil, é imprescindível veriicar se os critérios utilizados pelos ministros do STF, para justiicar as ações airmati-vas, em casos passados, são encontrados nos projetos de lei que disciplinam a matéria.

Palavras-chave


ADPF 186. ADC 41. Cotas raciais. Discriminação racial. Iniciativa privada. Ratio decidendi.

Abstract


This paper aims to verify if the legislative proposals in progress at the National Congress and the Federal Senate, which seek to establish a system of racial quotas in private sector, are in accordance with the understanding of the Bra-zilian Supreme Court (STF) irmed in the judgment of ADPF 186 and ADC 41. For this purpose, irstly, it is going to be veriied if the arguments used by the ministers of STF on the referred cases can work as bidding precedents. Secon-

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dly, based on the deinition of ratio decidendi, the objective is to identify if the selected bills comply with the requirements deined by the ministers of STF on the judgment of these actions that have resulted in the declaration of consti-tutionality of afirmative actions in promoting racial equality. Regarding this point, in spite of the possibility to set forth racial quotas in the private sector due to the persistence of racial discrimination in Brazil, it is essential to check if the justiications adopted by the ministers of STF in past cases are detected in the legislative proposals that intend to discipline this issue.

Keywords


ADPF 186. ADC 41. Racial quotas. Racial discrimination. Private sector. Ratio decidendi.

1 Introdução


O presente trabalho insere-se em um contexto de discussão sobre a possibili-dade de instituição de política de cotas raciais em setores da iniciativa privada. Alguns projetos de lei (PL) selecionados em curso na Câmara dos Deputados1

e no Senado Federal2buscam destinar à comunidade afro-brasileira reserva de vagas nas empresas que desempenham atividades de cunho econômico no país. Os parlamentares justiicaram a apresentação desses PL em razão da existência de discriminação disseminada, por motivo de raça, cor, ascendência ou origem racial, no mercado de trabalho brasileiro.

De acordo com o deputado Luiz Bittencourt (PMDB/GO), autor do projeto de lei (PL) 3.147/2000, que visa a assegurar 10% (dez por cento) do total de vagas da empresa para trabalhadores negros, ainda são registrados baixos índices de participação daqueles na economia formal, de forma que as políticas airmativas se mostram necessárias para diminuir as diferenças de oportunida-des disponíveis para negros e brancos3.

1 Na Câmara dos Deputados, foram consultados cinco projetos de lei que, embora com teor diferenciado, têm por objeto justamente assegurar a política de cotas raciais nas empresas que desempenham atividades econômicas no país. Nesse sentido, podemos citar os seguintes projetos de lei: PL nº 2.697/2007, de autoria do deputado Evandro Milhomen (PCdoB/ AP); PL nº 3.147/2000, de autoria do deputado Luiz Bittencourt (PMDB/GO, atual MDB); PL nº 9.771/2018, de autoria do deputado Luiz Couto (PT/PB); e o PL nº 5.882/2005, de autoria do Deputado Vicentinho (PT/SP).

2 No Senado Federal, por sua vez, foi encontrado o PLS nº 235/2008, de autoria do senador

Paulo Paim (PT/RS), que tem por objeto também a instituição de política de cotas raciais no setor privado.
3 A justiicativa para a apresentação do PL em voga pode ser consultada através do link: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=CEF-042FBA3E6221A6B829F56E4A34403.proposicoesWebExterno2?codteor=16275&ilena-me=PL+3147/2000. Acesso em: 18 out. 2018.

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Em duas decisões paradigmáticas, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou a constitucionalidade da instituição de reserva de cotas para brasileiros autodeclarados negros nas universidades públicas e no serviço público. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, do Distrito Federal4, o STF decidiu que não viola a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) a instituição de reserva de vagas, com base em critério étnico--racial, no processo de seleção para ingresso em instituição pública de ensino superior. Na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 31 do, Distrito Federal5, o STF decidiu que a Lei nº 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da Administração Pública Federal direta e indireta, não ofende a CRFB.

Embora se tenha observado o avanço de políticas públicas para a comunidade negra nos últimos anos no país, considerando que houve um aumento de sua participação nas universidades6, ainda não existe qualquer lei ordinária dispondo sobre a possibilidade de instituição de cotas raciais na iniciativa privada. Conforme mencionado, existem, contudo, alguns PL em trâmite no poder legislativo que visam a criar esse tipo de política, com o objetivo de garantir a inclusão de pessoas negras no mercado de trabalho, as quais, por seu turno, são as que mais sofrem com a falta de oportunidades e de acesso às melhores posições no mercado formal.

Nesse cenário, o presente trabalho procurará responder ao seguinte problema: Os PL selecionados, que visam a instituir cotas raciais para pessoas negras nas empresas, estão em compatibilidade com a CRFB, de acordo com o entendimento já irmado pelo STF sobre a adoção de ações airmativas de cunho étnico-racial?

A análise do problema em questão mostra-se relevante considerando os índices que evidenciam a participação da população negra no mercado de trabalho formal. Segundo dados de uma pesquisa do instituto Ethos, que buscou veriicar a composição étnica dos funcionários de empresas no Brasil, apenas

4 STF — ADPF: 186. Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Data de Julgamento: 26/04/2012.

Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693. Acesso em: 18 out. 2018.
5 STF — ADC: 41. Relator: Min. LUÍS ROBERTO BARROSO. Data de Julgamento: 08/06/2017.

Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13375729. Acesso em: 18 out. 2018.
6 De acordo com uma pesquisa realizada pela Andifes, a participação dos negros nas uni-versidades teve um aumento de 47,7% entre o período de 2003 a 2016. Ao medir o peril dos estudantes da graduação em 2016, veriicou-se que 8,72% deles são negros, número este superior ao registrado no ano de 2003, em que menos de 6% dos estudantes das instituições de ensino superior eram considerados negros. Disponível em: https://istoe.com. br/149761_ESTUDANTES+NEGROS+SAO+MENOS+DE+10+NAS+UNIVERSIDADES+FEDERAIS/. Acesso em: 18 out. 2018.

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6,3% das pessoas negras ocupam cargos de gerência e 4,7% no quadro executivo de grandes corporações, apesar de a população negra corresponder a mais da metade da população brasileira. Além da falta de representatividade dessa população no mercado de trabalho, a pesquisa observou também haver diiculdade por parte dessas empresas de corrigirem essa distorção por meio da implementação de ações airmativas internas. Isso porque, das 117 empresas consultadas, apenas 14 possuíam alguma forma de iniciativa visando à instituição de políticas reparatórias para corrigir a disparidade de representação entre brancos e negros7.

Da mesma maneira, os índices do Instituto Brasileiro de Geograia e Es-tatística (IBGE) evidenciam uma distorção clara entre a população branca e negra no que tange à escolaridade, aos rendimentos anuais e à participação no mercado formal. Em 2016, dentre o total de pessoas com os 10% menores rendimentos, pretos ou partos correspondiam a 78,5%, contra 20,8% de brancos. Agora, no grupo dos 10% maiores rendimentos, pretos ou pardos correspondiam a apenas 24,8%8. O estudo também permitiu avaliar que o nível de ocupação e frequência escolar são mais altos para jovens brancos do que para jovens pretos ou pardos. Dessa forma, o percentual de jovens desse grupo fora das salas de aula chegou a 29,1% em 2016. A taxa de desocupação da população negra girou em torno de 13,2% contra 9,1% dos brancos9. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), referente ao terceiro trimestre de 2017, dos 13 milhões de brasileiros desocupados, 8,3 milhões eram pretos ou pardos (63,7%), ao mesmo tempo em que 66% dos trabalhadores domésticos no país eram formados por pessoas do mesmo grupo10.

A pesquisa também demonstrou que a população negra é a que mais sofre com os efeitos da alta taxa de inlação e do desemprego, possuindo rendimen-tos inferiores ao da população branca. A média do rendimento...

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