A constitucionalidade do sistema de cotas universitárias: um estudo comparativo entre Brasil e Estados Unidos

AutorMargarida Maria Lacombe Camargo - Henrique Cunha Rangel
CargoProfessora de Teoria do Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ - Aluno do Mestrado em Direito da UFRJ
Páginas47-62
A CONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA DE COTAS UNIVERSITÁRIA S: UM ESTUDO
COMPARATIVO ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS
CONSTITUTIONALITY OF QUOTA SYSTEM IN UNIVERSITIES: A COM PARATIVE STUDY
AMONG BRAZIL AND THE UNITED STATES
Margarida Maria Lacombe Camargo
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Henrique Cunha Rangel
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Sumário: Introdução. 1 O caso norte-americano. 1.1 A opinião majoritária da Corte no caso
Grutter. 1.2. A fundamentação da opinião majoritária. 1.2.1 O precedente Bakke. 1.2.2 O strict scrutiny.
1.2.3 Overrule: substituição da remediação histórica pela diversidade do corpo estudantil. 1.2.4 O
critério do narrow-tailoring. 2 As opiniões dissidentes. Conclusão. Referências.
Resumo: O artigo aponta para um estudo comparativo entre as experiências constitucionais
brasileira e norte-americana, a respeito da adoção do sistema de cotas nas universidades como
modalidade de ação afirmativa. São apresentados, de forma sistematizada, os argumentos dos ministros
daquela mais alta corte no Caso Gruttervs Bollinger (2003),
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com vistas a uma comparação com os
fundamentos trazidos pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro na ADPF 186 (2009).
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Ambas as
decisões consideradas como paradigmáticas, leading cases, na matéria. Por comparação procura-se
perceber o substrato teórico que anima a prática das duas Cortes e promove os seus respectivos
desenhos institucionais.
Palavras-chave: Cotas Universitárias. Controle de Constitucionalidade. Suprema Corte
Norte-Americana. Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Abstract: The article points towards a comparative study between the Brazilian and the
American constitutional experiences concerning the adoption of the quota systems in universities as a
form of affirmative action. It was presented, in a systematic way, the arguments of the Justices in
Grutter vs. Bollinger (2003), for a comparison with the fundamentals brought by the Brazilian Supreme
Court i n ADPF 186 (2009). Both decisions can be considered as leading case on the matter. By
comparison, we try to understand the theoretical basis that encourages the practice of both Courts and
promotes their institutional designs.
Keywords: Grutter v. Bolinger. Supreme Court. Afirmative Actions. Quota Systems.
Introdução
Em decorrência da judicialização da política,
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que leva ao Judiciário questões que deveriam ser
resolvidas pelos outros poderes, podemos reconhecer no Supremo Tribunal Federal brasileiro uma
consequência lógica de comportamento ativista.
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Qua ndo temas trad icionalmente relacionados aos poderes
legislativo e executivo chegam ao judiciário, como é o caso d a proteção de direitos fundamentais e da
implementação de políticas públicas, recebem deste a definição de contornos específicos e diretrizes a serem
necessariamente observados.
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O judiciário passa, assim, a atuar no cenário político. Contudo, o diálogo que daí
poderia se seguir entre os poderes do Estado, não raramente esbarra em obstáculos institucio nais e
epistemológicos. Neste trabalho será enfatizado apenas o aspecto institucional, através do exemplo de um caso
que envolve a subordinação tanto do legislativo quanto do executivo ao aval do j udiciário. Trata-se da adoção
de ação afirmativa com vistas a incluir nos cursos universitários parcela da população tradicionalmente alijada
do sistema de educação superior. No caso, a minoria negra. O poder legislativo regulamenta, o executivo
implementa e o judiciário acompanha a constitucionalidade, autorizando a atuação dos demais poderes na
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Professora de Teoria do Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ. E-mail: margaridalacombe@gmail.com
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Aluno do Mestrado em Direito da UFRJ. E-mail: henriquerangelc@gmail.com
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Site: https://www.law.cornell.edu/supct/html/02-241.ZO.html
4
Site: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693
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VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palacios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann.
A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999.
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SILVA, Cecília de Almeida; MOURA, Francisco; BERMAN, José Guilherme; VIEIRA, José Ribas; TAVARES, Rodrigo de Souza;
VALLE, Vanice Regina Lírio do. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010.
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Exemplo recente é o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 592581, em 13 de agosto de 2015, quando ficou estabelecido que
“o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública realize obras ou reformas emergenciais em presídios para garantir
os direitos fundamentais dos presos, como sua integridade física e moral”.
Site: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=297592
adoção de medidas inclusivas. Como “guardião da Constituição” e a supremacia institucional que lhe serve de
pressuposto, o judiciário acabar por mostrar -se detentor d o poder d a última palavra sobre o significado da
norma constitucional, o que não raramente gera conflito. Quando ocorre, por exemplo, a suspensão da validade
das leis e atos normativos, a provocar, necessariamente, a questão da democracia.
O controle, por parte de uma Corte não eleita, sobre os atos provenientes da maioria parlamentar eleita
pelo voto popular leva-nos a uma situação paradoxal a respeito do desenho institucional mais adequado à
democracia. Esse problema passou a ser conhecido como “dificuldade contramajoritária”; expressão cunhada
por Alexander B ickel em 1962.
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Trata-se de um problema que afeta a democracia e tem sido objeto de
investigação de muitos autores tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos.
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E que nos leva a perquirir, também,
como a corte se reconhece, em termos institucionais, através dos seus julgados. A propósito, pergunta-se: Como
a Corte concebe suas decisões em termos de precedentes para julgamentos futuros e orientação dos demais
poderes do Estado? Como ela interpreta e concretiza os direitos fundamentais? Como ela busca ser responsiva
à sociedade? São perguntas que podem se valer de estudos de caráter exploratório, como o que ora
apresentamos.
Destacamos as cortes brasileira e norte-americana qua ndo elas enfrentam a questão d as ações
afirmativas nos cursos universitários. Questão que envolve os três poderes do Estado e toca de perto o problema
da igualdade, provocando o tema do contra majoritarismo. O trabalho acaba por apresentar um estudo mais
detalhado do julgado estadunidense, o que se justifica pela novidade que guarda junto ao público br asileiro.
Acreditamos que um recurso importante para avaliar a conduta do STF é a comparação com outros
sistemas, dado que a diferença propicia e aprimora a crítica. Neste trabalho, a partir de um panorama de
judicialização da política e de ativismo judicial, faremos um estudo minucioso sobre a decisão da Suprema
Corte Norte-Americana a respeito do tema, com o intuito de suscitar uma comparação de comportamento e de
visão institucional com o judiciário brasileiro. A partir da análise dos argumentos que sustentam as
justificativas tanto de uma decisão como de outra, procuramos apontar diferenças que mostram perfis
institucionais distintos.
O problema sobre a constitucionalidade do “sistema de cotas” no Brasil foi decidido pelo Supremo
Tribunal Federal em 2013, objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186.
Nos Estados Unidos a decisão mais importante a respeito, e que serve de referência até os dias de hoje, é o
chamado caso Grutter v. Bollinger, julgado em 2003. Duas decisões que contaram com a participação de
experts e da sociedade civil organizada. Nos Estados Unidos isso se dá mediante briefs de amici curiae e, no
Brasil, além dos amici curiae também as audiências públicas.
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A decisão ser á apresentada e, em seguida, sistematizados os argumentos que sustentaram a posição
da Corte. Tratando-se de uma maioria apertada, serão considerados também os votos vencidos, não apenas para
a melhor compreensão da tese vencedora, mas também para deixar registrada a visão conservadora de parte
significativa dos magistrados.
Verificamos que a natureza dos argumentos apresentados tanto na audiência pública quanto no
julgamento brasileiro seguem uma abordagem mais valorativa ou principiológica, num sentido perfeccionista,
ao contrário da Corte Norte-Americana, que se mantém mais minimalista e apoiada em considerações de viés
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Essa expressão foi cunhada por Alexander Bickel em 1962. Cf. The Least Dangerous Branch The Supreme Court at the Bar of
Politics. Yale Univerisity Press, second edition, 1986.
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A respeito vale conferir o texto de Christine Bateup, The Dialogic Promise assessing the normative potential of theories of
constitutional dialogue. Brooklin Law Review e, no Brasil, Conrado Hübner Mendes, Not the Last Word, But Dialogue; Deliberative
Separation of Powers II. http://ssrn.com/abstract=1911835.
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Os EUA possuem uma tradição bastante antiga de participação de amicus curiae nas decisões judiciais. No Brasil esse fenômeno é
bem mais recente e não chega à extensão norta-americana. No exemplo agora explorado temos que na ADPF 186 concorreram 12
amici curiae, enquanto em Grutter v. Bollinger foram mais de 100. Em contrapartida o Brasil possui o mecanismo da audience pública.
A diferença principal entre um e outro é que as audiências públicas são promovidas pelo Tribunal, que convida técnicos no assunto,
em geral pessoas ligadas ao governo, e escolhe nomes que acorrem à chamada pública feita que faz por edital, enquanto os amici
procuram a corte, ainda que a sua participação também fique condicionada à discricionariedade do juiz. A formatação das audiências
públicas também lhes confere um perfil todo particular, dado que por exigência legal elas d evem garantir paridade entre os
representantes de teses contrárias. O fato de as audiências, como o próprio nome diz, serem públicas e seus participantes apresentarem
suas teses presencialmente, favorece o contraditório. A respeito vale conferir os trabalhos de Margarida Camargo e Siddharta Legale
intitulado As audiências públicas no Supremo Tribunal Federal nos modelos Gilmar Mendes e Luiz Fux. Site:
http://media.wix.com/ugd/bc92e1_3a788e505dbf4c60b973c05141efbd1e.pdf, e de Vanice Regina Lírio do Valle. Audiências
Públicas e Ativismo: Diálogo Social no STF. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

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