O Constitucionalismo
Autor | Ari Ferreira de Queiroz |
Ocupação do Autor | Doutor em Direito Constitucional |
Páginas | 105-125 |
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Depois de vistas no capítulo anterior algumas noções elementares sobre a teoria geral do Estado, é hora de começar o estudo da constituição em si, vez que o próprio Direito Constitucional como ciência já ocupou a primeira parte deste trabalho. Para tanto, é essencial firmar uma orientação global sobre o constitucionalismo, o que implica começar por uma retrospectiva da Revolução Francesa e de seus incidentes, porque ali se assenta a base do constitucionalismo91. Entende-se por constitucionalismo o movimento políticojurídico iniciado há pouco mais de duzentos anos na Europa, destinado a estabelecer em cada Estado uma constituição escrita em texto único, orgânico e com supremacia sobre as demais normas jurídicas.
Sob os influxos do constitucionalismo pode-se dizer que a constituição é um texto escrito, único, orgânico e superior às demais normas, destinada basicamente a estruturar o Estado separando suas atribuições entre poderes independentes e harmônicos entre si, além de apresentar um catálogo de direitos e garantias fundamentais. Como diz Sagüés, o constitucionalismo procurou racionalizar o poder político criando o governo da lei, segundo o qual todo ato de Estado, para ser válido e legítimo, deve derivar de previsão expressa na constituição92. Em síntese, constitucionalismo significa a evolução constitucional.
Para alguns autores, na verdade, há traços do constitucionalismo desde os hebreus, gregos e romanos, assim como também nas cartas e foros da Idade Média93, tanto que filósofos como Platão e Aristóteles já defendiam a limitação dos poderes dos governantes por uma lei suprema e, principalmente, a divisão de tarefas a cargo do Estado, o que denota a ideia embrionária do princípio da tripartição de poderes. No entanto, os pensadores não lograram defender a realização dessas tarefas por poderes distintos e independentes, limitando-se a afirmar suas existências. Posteriormente, foi a vez de Maquiavel tecer considerações aperfeiçoando a ideia da separação de poderes, sem, também, lograr êxito.
Em 1748, Montesquieu escreveu sua célebre obra O Espírito das Leis consagrando de vez o que até hoje é princípio na maioria das constituições democráticas, ou seja, que o Estado não tem apenas as três tarefas ou funções – legislativa, executiva e judiciária –, mas sim que sejam exercidas e realizadas por poderes independentes, ainda que harmônicos
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entre si. Esse ensinamento do pensador francês foi incorporado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão; saltou Continente e infiltrou-se na Constituição de Filadélfia, dali vazando outras fronteiras e se incorporando, de vez, na maioria das nações democráticas do planeta. Essa teoria é a base do constitucionalismo que surgiu como um movimento ideológico e político para destruir o absolutismo monárquico e estabelecer normas jurídicas racionais, obrigatórias para governantes e governados.
Historicamente, apontam-se três fases do constitucionalismo, cada qual representando uma época e movida por uma ideologia. A primeira fase marca o constitucionalismo liberal ou individual, iniciado por volta da metade do século XVIII, embora haja prenúncios desde as revoluções inglesas do século anterior; a segunda fase caracteriza o denominado constitucionalismo do Estado social, que começou a se desenvolver após a 1ª Grande Guerra, em 1918, se bem que antes mesmo, em 1891, a igreja católica já houvesse contribuído para essa nova tendência, por meio da Encíclica Rerun Novarum, do papa Leão XIII, conhecida como “Carta Magna dos Trabalhadores”94.
Após a 2ª Grande Guerra a sociedade mundial passou a demonstrar outras necessidades, abrindo ensejo ao chamado constitucionalismo moderno, contemporâneo ou neoconstitucionalismo, que se caracteriza pela superioridade de interesses difusos ou coletivos sobre interesses particulares. Quase ao mesmo tempo, mas com acentuada aparição no final do século XX, Países da América do Sul começaram a trilhar caminhos próprios na estrutura de suas constituições, especialmente para reconhecer direitos indígenas, surgindo o que se chama de novo constitucionalismo ou, também, constitucionalismo andino ou indígena, em cujo contexto entra a Constituição Brasileira de 1988.
Em resumo, são quatro as fases do constitucionalismo: a) individual ou liberal; b) Estado social com especial destaque para o neoliberal; c) contemporâneo, moderno ou neoconstitucionalismo; d) novo constitucionalismo, constitucionalismo andino ou constitucionalismo indígena.
A primeira fase do constitucionalismo tem por base três revoluções: Inglesa, Norte-Americana e Francesa95. Com a Revolução Inglesa do século XVII, produziram-se o agreement of the people (1647) e o instrument of government (1653), o qual parte da doutrina costuma dizer ter sido a primeira e única Constituição da Inglaterra.
Ainda como consequência dessa mesma revolução vieram o bill of rights (1689), petition of rigths (1628) e act of settlement (1701), todos documentos que de certa forma procuravam estruturar o Estado e definir direitos e garantias fundamentais em favor do Terceiro Estado, assim denominado o conjunto de pessoas não integrantes do clero ou da nobreza. Visava, acima de tudo, limitar o poder estatal, sem se preocupar em impor-lhe obrigações.
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Da Revolução Norte-Americana (1776) resultou a Declaração dos Direitos do Bom Povo de Virgínia e logo depois a Constituição de Filadélfia (1787), ambas reconhecendo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a serem providos por representantes do povo escolhidos livremente, por ninguém nascer juiz, deputado ou governador. Da Revolução Francesa (1789) resultou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Constituição de 1791. Liberdade, igualdade e fraternidade eram seus lemas, entendendo-se por liberdade apenas o direito de fazer o que pudesse por seus próprios meios, sem obrigação por parte do Estado de viabilizar esse exercício. Era, portanto, liberdade negativa: não se esperava nada do Estado, senão apenas que não atrapalhasse ou proibisse.
Na primeira etapa, o Quarto Estado, formado pelo proletariado, não tem direitos políticos, pois a condição de eleitor exige inteligência e liberdade, valores impróprios para o empregado ou pobres em geral96. Adota-se a teoria de Thomas Hobbes, de ser o homem lobo do homem, estimulando a acumulação de riqueza em lugar do natural espírito de destruição de todo homem. Para Hobbes, tudo tem seu preço e pode ser vendido, e podem ser celebrados pactos livres que devem ser cumpridos97.
John Locke defende a existência de direitos naturais preexistentes ao Estado, que é criado justamente para assegurar a propriedade de cada pessoa – vida, liberdade e bens. A liberdade permite que se tenha o trabalho, e quem o compra deve pagar a justa remuneração; mas, quem trabalha não terá tempo nem cultura para atuar politicamente. Todos são livres e iguais em direitos, mas com o passar do tempo os empregados – que vendem o trabalho – perdem os direitos políticos98.
Para a Escola Francesa, há uma ordem natural que preconiza a harmonia entre os valores existentes no mercado, não devendo o Estado se intrometer: laissez-faire, laissez-passer, que le monde va de lui-même99. Prevalece a lei da oferta e da procura100. Sieyès defende a ideia da superioridade da nação, que se constitui pela burguesia, por serem o rei e o clero pequena minoria, e o exercício do poder constituinte deve ser confiado a representantes específicos eleitos em assembleia para atuar livremente101.
Nessa fase, o constitucionalismo liberal e individualista estava a serviço da burguesia
– Terceiro Estado –, contra as classes dominantes representadas pelo clero e nobreza, mas sem proteger a grande massa de trabalhadores, pequenos proprietários ou desempregados que formavam o proletariado. Jornada de trabalho de 16 horas diárias, o trabalho de crianças de quatro ou cinco anos de idade, exploração da mão de obra de mulheres por ser mais barata que o uso de animais102e a completa ausência de direitos trabalhistas eram as características da época. O caos social explodiu.
Em meio a esse caos, o abade Emmanuel Sieyès, também maçom que, na condição de religioso católico, pertencia a uma das classes dominantes – o clero – e era respeitado pelos
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superiores, levantou a voz a favor da grande parte da população – Terceiro Estado –, sem enxergar, no entanto, a necessária distinção entre pobres e ricos. Ou melhor, até enxergava, mas considerava perigosa a conquista da igualdade eleitoral pelas classes populares, por isso os cidadãos passivos – os pobres – seriam representados nas assembleias pelos cidadãos ativos – os ricos.
Um pouco antes da revolução de 1789, Sieyès abordou e suscitou a polêmica do Terceiro Estado103. Para ele, o Estado Francês se dividia em três: o...
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