Reconhecimento, constitucionalismo e casamento homossexual

AutorJorge Luiz Ribeiro de Medeiros
Páginas151-168

Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros. Aluno do Programa de Mestrado em “Direito, Estado e Constituição” da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB) na Linha de pesquisa 3 – Constituição, Processo e Teoria Constitucionais, Direitos Fundamentais.; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Sociedade, Tempo e Direito” (Linha de Pesquisa: “Direito e Democracia”). Professor das disciplinas Noções de Direito, Introdução ao Direito 1 e Teoria Geral do Direito Público nessa Universidade, no período compreendido entre setembro de 2005 e julho de 2006. Chefe da Divisão de Ensino à Distância do Departamento Penitenciário Nacional, entre junho de 2004 e maio de 2005. Presta serviços junto ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome desde agosto de 2006. E-mail: jorge.medeiros@gmail.com.

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1 Introdução

A partir do fim da década de 1980 novas formas de se encarar e proteger as relações homossexuais começaram a se desenvolver no ocidente, consubstanciadas especialmente na criação das Parcerias Domésticas Registradas (Registered Domestic Partnerships – RDP, também chamadas de união civil entre pessoas do mesmo sexo) e, mais recentemente, na extensão do casamento e de todas suas conseqüências jurídicas aos homossexuais.

Essas duas formas de tratamento jurídico dispensado à homossexualidade conduzem a questionamentos que serão abordados no presente ensaio. Como pode o direito lidar com a diferença e promover reconhecimento, em especial no atinente às relações homossexuais? Quais caminhos possíveis pode o constitucionalismo adotar para lidar com as tensões sociais e pressões por inclusão e geração de auto-respeito? Como o casamento pode ser lido em um contexto de Estado Democrático de Direito a fim de permitir um diálogo com a diferença?

Ao longo dessa análise, embasada nas obras de Axel Honneth, Jürgen Habermas e Michel Rosenfeld, serão considerados as experiências internacionais de extensão do casamento aos homossexuais e o Projeto de Lei nº. 1.151/1995, que objetiva instituir a união civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. Mas o que cada uma dessas formas jurídicas institui?

O reconhecimento de que o direito ao casamento civil independe da orientação sexual, sendo estendido, portanto a relacionamentos homossexuais, se fortaleceu notadamentePage 152 no início da presente década, e inova por reconhecer a existência de uma relação afetivo-familiar, possibilitando, conseqüentemente, o gozo, pelos cônjuges, dos mesmos direitos inerentes ao casamento heterossexual, a exemplo da adoção de crianças e utilização do sobrenome do outro cônjuge. Nesse sentido, possuem destaque a pioneira Holanda1 (2001), Bélgica (2003), Espanha (início de 2005), Canadá (aprovado pela Câmara dos Comuns recentemente, em 28 de junho de 2005) e Inglaterra (com a entrada em vigor da lei em 5 de dezembro de 2005).

É necessário observar as pequenas nuances que distinguem a mudança ocorrida no Canadá e nos países europeus continentais do ocorrido na ilha britânica. Enquanto naqueles Estados o significado de casamento é ampliado para abarcar relações homossexuais, nesse é criada a união civil homossexual (que não é igual aos contratos típicos de RDP) que uma vez assinado (constando de registro nos conselhos de administração local em uma cerimônia que, diferentemente dos casamentos, não precisam ser públicas) concede os mesmos direitos que valem para heterossexuais que se casam legalmente. Esse tratamento não estaria a gerar uma rotulação, a criação de status diferenciado que não seria apto a gerar reconhecimento? Essa questão será abordada mais adiante nesse ensaio.

É necessário observar ainda as diferenças da união civil inglesa para as RDP (Registered Domestic Partnership), surgidas e fortalecidas especialmente entre o fim da década de 1980 e ao longo da década de 1990, em países do norte europeu, a exemplo de Dinamarca (1989); Noruega, Suécia e Islândia (todos em 1996) e, mais recentemente, na Suíça (2005)2. As RDP são contratos de união civil voltados unicamente para a proteção de bens materiais e relações patrimoniais e sucessórias entre os membros da relação homossexual; não há o reconhecimento de uma relação afetiva ou familiar, mas apenas de uma relação econômica.

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O Projeto de Lei apresentado à Câmara dos Deputados em 1995 e retirado de pauta em 1996 após um acordo de líderes, insere-se claramente nos modelos de RDP. Grupos GLBT (Gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros) vêm defendendo desde então o retorno do projeto de lei à pauta e sua conseqüente aprovação, como forma de promoção de igualdade, tendo sido esse inclusive o mote das paradas de orgulho GLBT realizadas no país em 2005. Mas o que esse projeto traz?

O PL 1.151/1995 pretende instituir, sob o nome de “união civil entre pessoas do mesmo sexo” as Registered Domestic Partnerships no Brasil, concentrando-se, portanto, em aspectos patrimoniais e de sucessão, conforme disposto em seu artigo 1º:

Art. 1º É assegurado a duas pessoas do mesmo sexo o reconhecimento de sua união civil, visando à proteção dos direitos à propriedade, à sucessão e dos demais regulados nessa Lei.

Como se observa, os integrantes do relacionamento não são entendidos como cônjuges, mas como contratantes. Verifica-se ainda, em seu artigo 10, a instituição da impenhorabilidade de bem imóvel próprio e comum dos membros da relação – aqui reduzida a uma relação contratual – sem, contudo, reconhecer tal imóvel como bem de família, em que pese estender todas suas disposições:

Art. 10 O bem imóvel próprio e comum dos contratantes de união civil com pessoa do mesmo sexo é impenhorável, nos termos e condições regulados pela lei 8009, de 29 de março de 1990.

Surgem assim novas questões: Em que medida a criação desse novo instituto (RDP) permite um reconhecimento? Será que a negação do reconhecimento do caráter familiar às relações homossexuais não parte de uma visão homogeneizante da homossexualidade, que pensa que todos os homossexuais possuem uma visão contrária à constituição familiar, conduzindo, dessa forma, a uma integração, uma inclusão guetificada? A extensão do casamento aos casais homossexuais propicia a concretização de um reconhecimento?

2 Contra a cegueira da visão

Honneth propõe, a partir de uma tentativa de atualização da teoria do reconhecimento de Hegel, perpassada pelo diálogo com a psicologia social de Mead, uma visão intersubjetiva da consciência, em que só é possível perceber a si mesmo quando doPage 154 aprendizado da percepção da própria ação a partir da perspectiva simbolicamente representada de um outro generalizado.

A partir dessa leitura de uma visão intersubjetiva de consciência3, Honneth se centra em três padrões de reconhecimento: o amor (baseado na dedicação emotiva e geradora de autoconfiança), o direito (por meio do reconhecimento jurídico, conduzindo ao auto-respeito) e a solidariedade (assentimento solidário, a permitir a auto-estima).

O direito exerce importante papel na medida em que possibilita uma noção universalizante da idéia de portadores de direito, possível apenas quando se sabe que obrigações devem ser respeitadas em face do respectivo outro, conduzindo assim a um reconhecimento do ser humano como pessoa, sem a necessidade de estima por suas realizações ou caráter. Essa universalidade não é estanque e distante, mas aberta ao questionamento a partir da discussão sobre sua aplicação, ou seja, sobre quem é concretamente também portador daquele direito4 previsto de forma geral e abstrata.

Nessa perspectiva que o direito se constitui como um dos lugares de realização da luta por reconhecimento, ou seja, exatamente em virtude da possibilidade de alcance de “validade”5 social por meio da afirmação da pertinência de determinado direito a determinados sujeitos.

Desse modo, com o reconhecimento de direitos individuais, tem-se a geração de um auto-respeito, uma auto-noção do sujeito sobre poder colocar legitimamente suas pretensões, a permitir que constate assim o respeito de todos os demais, conforme Honneth6:

Um sujeito é capaz de se considerar, na experiência do reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos os outros membros de sua coletividade as propriedades que capacitam para a participação numa formação discursiva da vontade; e a possibilidade de se referir positivamente a si mesmo desse modo é o que podemos chamar de “auto-respeito”.

Todavia, a observação das condições e das perspectivas de reconhecimento propiciadas pelo direito não é suficiente sem a constatação de suas formas de negação, suaPage 155 ofensa, as atitudes que conduzem a formas de reconhecimento recusado, geradoras do impulso para a resistência social e para uma luta por reconhecimento.

No âmbito jurídico o desrespeito se manifesta pela privação do acesso a direitos, no caso homossexual, por exemplo, na vedação de acesso a institutos de direito de família que reconhecem a proteção a laços afetivos e a relações patrimoniais erguidas no âmbito de uma relação conjugal, refletindo dessa forma a negação de ser portador concreto de direitos abstratos ou pela negação do reconhecimento jurídico a uma pretensão levantada.

Essa negação de direitos conduz à perda de auto-respeito, à capacidade de se referir a si mesmo como um igual dentro da interação social7, ferindo assim o exercício tanto de uma autonomia privada, na medida em que limita um campo de atuação particular do sujeito, como de autonomia pública, ao rotular o homossexual como inferior, como um parceiro de menor valor na interação existente dentro de uma sociedade de co-associados pelo direito8.

A rotulação, a minoração de valor, a invisibilidade social para com os homossexuais, reforçada pelo Direito, levou à organização do movimento GLBT9 que passou a atuar junto ao judiciário por interesses e contra o desrespeito, objetivando desenvolvimentos e progressos na realidade social do grupo...

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