Constitucionalizacao do aborto no Brasil: uma analise a partir do caso da gravidez anencefalica.

AutorMachado, Marta Rodriguez de Assis

A comemoracao do 30 aniversario da Constituicao Brasileira traz a oportunidade de refletir sobre como ela contribuiu e como pode contribuir de maneira mais efetiva para o avanco dos direitos de cidadania de todas as cidadas e cidadaos brasileiros. Como forma de compreender como a constituicao foi e poderia ser usada para proteger os direitos de cidadania igualitaria da mulher, este artigo se concentra em uma das questoes constitucionais mais debatidas: o direito das mulheres de decidirem se querem ou nao levar uma gravidez adiante. (1)

Abortar, consentir o aborto ou ajudar na interrupcao da gravidez e crime previsto no Codigo Penal Brasileiro de 1940. As mulheres que tem a iniciativa de fazer um aborto ou que consentem que ele seja realizado podem ser punidas com penas de 1 a 3 anos de prisao (2) e aquelas que realizam o aborto podem ser punidas com penas de 1 a 4 anos de prisao (3). Esses crimes nao se aplicam quando ha risco para a vida da mulher ou em casos de estupro (4).

A regulamentacao do Codigo Penal acerca do aborto tem sido questionada pelos movimentos sociais por meio de diferentes estrategias, especialmente desde o final da decada de 1970 (5). Motivados pela oportunidade da elaboracao da nova constituicao democratica em 1986-1987, atrizes e atores com diferentes perspectivas acerca do aborto comecaram a usar a linguagem dos direitos. Pelo menos desde os debates da Assembleia Constituinte, normas constitucionais tem sido usadas para construir diferentes narrativas de injustica e para mediar discordancias sociais sobre o aborto em arenas formais e informais. Embora o primeiro caso constitucional sobre o aborto tenha sido decidido pelo Supremo Tribunal Federal em 2012 (6), o conflito ja era "inteligivel como um conflito constitucional" (7), pois as normas constitucionais ja haviam sido invocadas em varias arenas (8).

A constitucionalizacao do aborto pode ser entendida como um processo multidimensional e dinamico (9) que ocorre na interacao discursiva de atores com diferentes visoes por meio do compartilhamento de valores constitucionais como uma linguagem legitimadora. Esse processo comecou no Brasil com debates na Assembleia Constituinte sobre como a Constituicao deveria ser elaborada para proteger a vida prenatal de forma consistente com os direitos das mulheres de exercer autonomia decisoria em relacao a propria gestacao. Tais debates continuaram no poder executivo, especialmente no Ministerio da Saude, no legislativo e nos tribunais, incluindo o Supremo Tribunal Federal. Nas arenas publicas, os movimentos sociais tem usado a linguagem dos direitos constitucionais em contextos nao institucionais, o que inclui campanhas publicas, mobilizacoes nas ruas e debates informais. O movimento internacional Marcha Mundial das Mulheres, por exemplo, lancou uma campanha pela legalizacao do aborto em 2015 defendendo o "direito a vida das mulheres" (10).

Tais debates chegam aos tribunais em diferentes tipos de casos - processos criminais contra mulheres e medicos, casos que tratam de autorizacoes especificas para realizar interrupcoes e processos de controle de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (11). Embora os tribunais sejam um cenario importante para a constitucionalizacao do aborto, o processo politico para abordar ou resolver disputas sobre o aborto no Brasil mostra que muitas arenas sao ocupadas por movimentos a favor e contra a interrupcao da gravidez, de acordo com o equilibrio das oportunidades politicas (12). O discurso constitucional permeia todos eles em processos dinamicos de influencia e adaptacao mutua. Essas dimensoes do processo estao sobrepostas e se interconectam. As diferentes posicoes apresentadas nos debates havidos durante a redacao da Constituicao ressurgem em varias arenas, incluindo a interpretacao da Constituicao pelo Supremo. A constitucionalizacao do aborto nao depende da instituicao em que os debates acontecem, mas se as normas e principios constitucionais sao mobilizados e valorizados nos debates que acontecem em diferentes arenas (13).

Exemplos de como as normas constitucionais foram mobilizadas e aplicadas na area da saude sao as iniciativas de profissionais de saude e ativistas para abordar as graves consequencias da regulacao penal para a saude das mulheres. Essas iniciativas operacionalizaram a hipotese de aborto legal em caso de estupro, inicialmente por meio de diretrizes hospitalares (14), depois por meio de orientacoes de profissionais de saude (15), e, por fim, em normas tecnicas ministeriais para garantir o acesso das mulheres ao servico publico de saude (16).

A norma tecnica do Ministerio da Saude que regulamenta o aborto legal (17) refere-se explicitamente ao artigo 5 da Constituicao sobre a protecao da intimidade, vida privada, honra e imagem; ao artigo 196 sobre a igualdade de acesso aos cuidados de saude, e a disposicao no artigo 226 sobre o planejamento familiar livre. Essa norma tecnica tambem indica que a facilitacao do acesso transparente ao aborto legal e necessaria para garantir o cumprimento do Brasil com suas obrigacoes internacionais, sejam elas oriundas de acordos internacionais, como o Programa do Cairo (18) e a Declaracao de Pequim (19) ou de tratados internacionais como a Convencao sobre a eliminacao de todas as formas de discriminacao contra as mulheres (20), ou de tratados regionais, como a Convencao Belem do Para (21).

No legislativo, normas constitucionais tambem foram acionadas tanto em propostas restritivas como progressistas. As propostas legislativas invocavam a inviolabilidade do direito a vida, sob o artigo 5, para condenar o aborto (22), ao passo que outras invocavam a clausula da igualdade (23) e o principio fundamental da dignidade humana, nos termos do artigo 1, inc. III (24), para proteger os nao-nascidos. No campo progressista, um exemplo de proposta legislativa foi o uso do artigo 226, [seccion]7 da Constituicao, que garante o planejamento familiar gratuito, para expandir o direito ao aborto (25).

Embora o presente artigo se concentre em como o Supremo Tribunal Federal constitucionalizou o aborto, e importante ter em mente que esse processo judicial e parte de um processo mais amplo de mobilizacao e valorizacao das normas constitucionais em diferentes arenas e para diferentes finalidades.

Assim, o artigo comeca com um breve historico dos debates da Assembleia Constituinte e seus resultados, abordando brevemente as provisoes da nova Constituicao democratica adotada em 1988. Tais provisoes constitucionais forneceram recursos simbolicos, normativos e legais para os debates em torno do direito ao aborto desde entao. Em seguida, ele se concentrara em como a Suprema Corte aplicou a Constituicao ao caso da anencefalia. Concluira examinando, a partir desse caso, o legado do STF na constitucionalizacao do aborto.

  1. DEBATES E RESULTADOS DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

    2.1. Debatendo o texto da Constituicao

    A Assembleia Nacional Constituinte do Brasil (1986-1987) criou espacos para que diferentes grupos da sociedade civil debatessem os respectivos pontos de vista sobre a protecao da vida pre-natal, a realizacao da dignidade da mulher de forma a respeitar sua autonomia reprodutiva e a importancia de acomodar as diferencas entre as mulheres no campo da reproducao humana para garantir o exercicio dos seus direitos de cidadania. Foi a primeira vez na historia do Brasil que o aborto foi abertamente discutido em um espaco publico, em um momento critico para os futuros debates acerca das fronteiras regulatorias do aborto.

    Representantes da Igreja Catolica e grupos evangelicos defenderam na Assembleia Constituinte a inclusao de uma disposicao constitucional sobre a protecao da vida desde a concepcao (26). Movimentos contrarios surgiram por meio de mobilizacoes e campanhas de mulheres em todo o pais, resultando na Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes, apresentada ao Presidente da Assembleia Constituinte. Este documento historico sintetizava o que as mulheres ativistas entendiam como as condicoes para o "pleno exercicio da cidadania" das mulheres. Trazia reivindicacoes especificas de igualdade nas areas de familia, trabalho, saude, educacao, cultura e assuntos nacionais e internacionais. Na secao de saude, juntamente com a garantia de saude integral ou holistica para as mulheres em todas as fases da vida, duas demandas relacionavam-se mais especificamente ao direito de escolha sobre a gravidez: "o direito de conhecer e decidir sobre seu proprio corpo" e a "[g]arantia de livre opcao pela maternidade, compreendendo-se tanto a assistencia ao pre-natal, parto e pos-parto, como o direito de evitar ou interromper a gravidez sem prejuizo para a saude da mulher" (27).

    A essa carta se seguiu a proposicao de "emendas populares" a Constituicao sobre questoes de genero, que incluiu uma emenda sobre a saude da mulher abordando especificamente o direito de interromper a gravidez (28). De acordo com a emenda proposta, as autoridades publicas deveriam ter o dever de oferecer assistencia a saude das mulheres, garantir a homens e mulheres o direito de determinar livremente seu numero de filhos e garantir o acesso a educacao, informacao e a metodos adequados para regular a fertilidade. As mulheres devem ter o "direito de conceber, evitar a concepcao ou interromper a gravidez indesejada ate 90 (noventa) dias apos o seu inicio" e o Estado teria o dever de garantir o exercicio desse direito no servico publico, respeitando a etica individual e as crencas religiosas. Essa foi a proposta mais debatida e se amparava no fato de que, naquele momento, 4 milhoes de abortos eram realizados anualmente no Brasil, causando a morte de mais de 400 mil mulheres e deixando mais de 800 mil com serios efeitos colaterais permanentes, como a infertilidade (29).

    O choque de propostas entre os grupos religiosos e os movimentos de mulheres resultou no acordo de omitir disposicoes especificas que permitiam ou negavam a escolha de interromper a gravidez...

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