A constitucionalização do direito das coisas

AutorDanielle Portugal de Biazi
Páginas53-80
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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO
DO DIREITO DAS COISAS
4.1 A MÁXIMA REALIZAÇÃO DOS VALORES CONSTITUCIONAIS NAS
RELAÇÕES PRIVADAS
O direito das coisas é marcado por uma rigidez peculiar quando equiparado a
outras frentes do direito civil. Ainda assim, sua estrutura vem mobilizada pelo cha-
mado direito civil constitucional e a ruptura da dicotomia público versus privado.
Emerge de um espírito socializante af‌lorado na Europa notadamente após a Segunda
Guerra Mundial.
A expressão direito civil constitucional surge como técnica interpretativa consa-
grada a partir dos estudos do italiano Pietro Perlingieri e converge para o sentido de
que o ordenamento jurídico não pode ser interpretado em forma de apartadas ilhas,
mas como um organismo vivo totalmente interligado à uma norma fundamental, a
Constituição. A partir desta premissa inicial, as interpretações de normas específ‌icas
devem convergir para os ditames propostos pelo poder constituinte.
Pietro Perlingieri, portanto, defende a harmonização coerente e razoável entre
a norma constitucional e a norma ordinária, de maneira a atender aos princípios da
adequação e proporcionalidade a partir do caso concreto e sua disciplina jurídica.
Este tratamento, por sua vez, deve considerar o espírito do legislador, ou seja, os
porquês ínsitos à norma globalmente considerada.1
Neste contexto, o legislador civil brasileiro tomou posição e incorporou os
conceitos de função social em seus dois grandes alicerces, o contrato e a propriedade;
utilizou-se, ainda, de técnicas como a das cláusulas gerais e dos termos jurídicos
indeterminados a f‌im de permitir maior f‌lexibilidade na interpretação de determi-
nadas regras.
Assim, o direito civil constitucional marca a adoção de um Estado Social que
altera paradigmas antes f‌ixados pelo Estado de Direito Liberal, este último marca-
do por uma separação entre Estado e sociedade2, com normas rígidas. No Estado
1. PERLINGIERI, 2008, p. 574-575.
2. “O crescimento do Estado Social (ou mais precisamente do Estado providência) reverteu alguns dos
postulados básicos do Estado de Direito Liberal, a começar pela separação entre Estado e sociedade, que
propiciava uma correspondente liberação das estruturas jurídicas das estruturas sociais. Nessa concepção,
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PROPRIEDADE: RECONSTRUÇÕES NA ERA DO ACESSO E COMPARTILHAMENTO • DANIELLE PORTUGAL DE BIAZI
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Liberal, a norma constitucional era tratada como um rol de princípios muito mais
enunciativos do que incidentes diretamente nas relações privadas3.
Nesta linha de pensamento, do ponto de vista interpretativo, a norma consti-
tucional teria um caráter residual, sem incidir sobre a legislação ordinária, f‌incando
um limite, como se esta fosse sua função precípua. Pietro Perlingieri4 refuta essa
ideia por entender que ao restringir a norma constitucional a um limite legislativo
ordinário, estar-se-ia também limitando o destinatário da primeira, isto é, só se dirige
ao legislador reduzindo-lhe a capacidade promocional5.
A incidência dos valores constitucionais diretamente sobre as relações privadas
provoca debates importantes que consideram a forma de estruturação em que a lei
fundamental se sustenta. Para o italiano Giovanni Tarello,6 Constituições tidas por
mais enxutas, ou mais rígidas – que limitam sua abordagem a questões de controle
de constitucionalidade e à tutela jurisdicional de posições subjetivas – ampliam a
capacidade interpretativa dos juízes, na medida em que, sendo objetivos e rígidos,
a tendência é que, diante de uma questão no tribunal, os juízes possam expandir o
alcance das posições constitucionalmente protegidas.
De outro lado, os modelos constitucionais contemporâneos, típicos do Estado
Social, optam por incluir expressamente uma série de variáveis, entre elas o rol
de interesses jurídicos tutelados e os sujeitos a que se destinam; diretivas gerais à
comunidade política; organização e instituição de órgãos, assumindo, inclusive,
conteúdos antes constantes apenas de legislações infraconstitucionais. Neste con-
texto de encontro entre público e privado, a produção de decisões contraditórias e
as dif‌iculdades interpretativas teriam maior possibilidade de emergir:7
Com efeito, os direitos sociais, produto típico do Estado previdência, que não são, conhecida-
mente, uma espécie de a priori formal, mas têm um sentido promocional prospectivo, colocam-se
como exigência de implementação. Isso altera o desempenho e a função do Poder Judiciário, ao
a proteção da liberdade era sempre da liberdade individual como liberdade negativa, de não impedimen-
to, do que a neutralização do Judiciário era uma exigência consequente [...] Com a liberdade positiva, o
direito à igualdade se transforma num direito a tornar-se igual nas condições de acesso à plena cidadania”
(FERRAZ JUNIOR, 2014, p. 124).
3. “Segundo alguns autores, a norma constitucional seria um mero limite ou barreira à norma ordinária. Os
enunciados normativos ordinários assumiriam autonomamente um signif‌icado e um fundamento como
expressões de um sistema completo, que será legítimo enquanto os próprios enunciados não lesarem um
interesse constitucionalmente protegido. A norma constitucional atuaria excepcionalmente e de forma
residual, mas sem incidir sobre a atividade interpretativa das disposições ordinárias” (PERLINGIERI, 2008,
p. 570).
4. Idem, p. 571-572.
5. [...] “ao entender a norma constitucional como limite àquela ordinária se individualiza, como destinatário
da primeira, prevalentemente, se não exclusivamente, o legislador, reduzindo assim a ordem constitucional
a uma função de delimitação das regras do jogo e subtraindo-lhe aquela capacidade promocional, que, ao
contrário, a natureza das próprias normas em objeto e razões histórico-políticas induzem a lhe atribuir de
forma privilegiada” (PERLINGIERI, 2008, p. 571-572).
6. TARELLO, 2013, p. 297.
7. FERRAZ JÚNIOR, 2014, p. 124.
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