Constitucionalização do direito de família: direito à convivência familiar

AutorGuilherme Calmon Nogueira da Gama
Páginas27-57

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Ver Nota1

1 Noções sobre a nova família

Como segmento do Direito Civil, o Direito de Família estabelece um tratamento diferenciado às pessoas, comparativamente aos outros campos de conhecimento jurídico-privatísticos, e isto por diversas razões, dentre as quais a circunstância de ser a família o primeiro ente coletivo no qual a pessoa se insere e deve passar a conviver de maneira grupal. Diante dessa peculiaridade, são frequentes os conlitos de interesses entre os familiares, o que exige uma disciplina normativa que seja adequada a solucioná-los e, por conseguinte, o estabelecimento e o desenvolvimento de relações jurídicas familiares2nos moldes estruturados pelo ordenamento jurídico, em combinação com a realidade sociológica existente no momento histórico e no contexto geográico de certo agrupamento humano. É oportuna a referência de que o Direito de Família, de todos os ramos do direito, é aquele mais intimamente ligado à própria vida humana, eis que as pessoas provêm, em regra, de um organismo familiar3, mantendo-se vinculada a

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ele a princípio durante toda sua existência, ainda que venham a constituir novas famílias pelo casamento, união estável ou novos parentescos.

Indiscutivelmente, a regulamentação dessas relações familiares no âmbito do Direito de Família vem sofrendo uma série de alterações nos últimos tempos, fruto de profundas mudanças sucedidas no seio da sociedade mundial, bem como do desaparecimento de determinados dogmas e princípios antes considerados inabaláveis. É importante notar que o século XX se mostrou bastante fértil em questões envolvendo as relações familiares, até mesmo originando o debate a respeito da razão da existência de certos institutos até então nunca questionados, como o casamento. A abordagem atual acerca do Direito de Família em nada se assemelha, com efeito, à visão sobre o assunto no início do século passado, sendo inúmeras as reformas ocorridas no centro das relações humanas que impuseram, consequentemente, alterações legislativas. Registre-se que, com base no art. 16.3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, reconheceu-se expressamente à pessoa humana o direito de fundar uma família, o que vem sendo conirmado desde então em documentos normativos internacionais e nacionais4.

Em virtude das múltiplas dimensões assumidas pelo modelo familiar e que inluenciam sua própria constituição, a família não é valor objeto de preocupação apenas do Direito, mas também de uma gama de outras áreas do conhecimento humano, todos necessários para sua ampla compreensão e estudo. Portanto, não há como reconhecer um modelo único de família universal, hermético, estanque e intocável5. Reconhecida como a célula mater da sociedade, a família é objeto de preocupação mundial, já que fundamental para a própria sobrevivência da espécie humana, bem como a organização e a manutenção da sociedade e, consequentemente, do Estado. Concomitantemente, a visão do organismo familiar deve sempre levar em consideração o caráter nacional do Direito de Família,

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diante das especiicidades de cada país, as diversas culturas, civilizações, regimes políticos, sociais e econômicos, repercutindo diretamente nas relações familiares. Por estar sujeita à inluência desses fatores, a instituição familiar sofre constantes transformações de acordo com a época em que seja retratada6.

A família, antes de mais nada, é uma realidade, um fato natural, uma criação da natureza, não sendo resultante de uma icção criada pelo homem. A família é um agrupamento informal, de formação espontânea na sociedade, cuja estruturação é dada pelo Direito7. Entretanto, o conceito de família continua a ter vários signiicados, como o mais amplo, que abrange parentes jurídicos e até dependentes econômicos8, e um outro mais limitado, que alcança somente cônjuges, ascendentes e descendentes, além de colaterais até o quarto grau. Numa acepção ainda mais restrita, a família consiste no grupo composto dos cônjuges e dos seus ilhos. Nesse grupo mais restrito, desenvolvem-se maiores efeitos nas relações familiares, sendo de se destacar que, sob tal signiicação, a família desenvolve o princípio da solidariedade doméstica, da vida em comum e da cooperação recíproca.

De um modelo monolítico de família jurídica – apenas aquela fundada no casamento ?, passou-se na contemporaneidade para um modelo plural com reconhecimento expresso e implícito de famílias jurídicas até mesmo em nível constitucional, como se veriica no Direito brasileiro (arts. 226, 227 e 230, da Constituição de 1988).

Em todos os cantos do planeta, o modelo tradicional de família vem perdendo terreno para o surgimento de uma nova família9, que é essencial para a própria existência da sociedade e do Estado, mas funcionalizada em seus partícipes: “uma família que continua sendo imprescindível como célula básica da sociedade, fundamental para a sobrevivência desta e do Estado, mas que se funda em valores e princípios diversos daqueles outrora alicerçadores da família

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tradicional”10. Nesse sentido, a tutela da família deixa de ser algo exclusivo das relações de sangue, na ótica do critério biológico, passando a abranger, também e principalmente, aquelas afetivas, que se traduzem em uma comunhão de vida11.

A família é uma construção social organizada por meio de regras culturalmente elaboradas que conformam modelos de comportamento humano12, sendo fundamental o reconhecimento da estruturação psíquica na qual todos os integrantes ocupam um determinado lugar.

Pode-se conceituar a família como uma formação social, lugar-comunidade tendente ao desenvolvimento de seus participantes em suas personalidades, de modo a exprimir uma função instrumental para a melhor realização de seus interesses afetivos e existenciais13. De acordo com tal raciocínio, há a valorização da família enquanto instrumento de atendimento dos legítimos interesses de seus componentes, e não como uma instituição detentora de interesses próprios e distintos daqueles de seus membros. Esta noção de família se mostra democrática, identiicando-se com uma pluralidade de formas familiares merecedoras de proteção jurídica, e não apenas aquela fundada no casamento, como no mode-lo tradicional de núcleo familiar14. Na maior parte das nações ocidentais, sob o viés da ilosoia iluminista e liberal-burguesa, os Códigos Civis consideravam a propriedade e os interesses patrimoniais como pressupostos nucleares dos direitos privados, inclusive aqueles atinentes ao Direito de Família15. Como exemplo de instrumentalização da família em prol de seus membros independentemente da prevalência de valores supraindividuais, pode-se citar a ampla proteção que é dispensada constitucionalmente aos ilhos (art. 227, § 6º, CF), os quais

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possuem direito ao reconhecimento da biparentalidade, não importando qual seja o estado civil ou a situação fática de seus pais, perante os quais terão todos os direitos decorrentes da iliação. Essa concepção constitucional se contrapõe àquela tradicional da família-instituição, típica dos códigos oitocentistas e fun-dada unicamente no casamento, fora do qual a iliação, como aquela adulterina e incestuosa, sofria restrições, assim como a própria iliação adotiva, desprovida de consanguinidade.

2 Transformações no direito de família

O Direito Civil brasileiro do século XXI é constitucionalizado, com forte carga solidarista e despatrimonializante, em claro reconhecimento da maior hierarquia axiológica à pessoa humana – na sua dimensão do “ser” – em detrimento da dimensão patrimonial do “ter”16. O fenômeno da despatrimonialização e da repersonalização denota, no âmbito das situações jurídicas sob a égide do Direito Civil, uma opção que, paulatinamente, vem se demonstrando em favor do personalismo – superação do individualismo – e do patrimonialismo – superação da patrimonialidade como im de si mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois – como valores que foram fortiicados, superando outros valores na escala hierárquica de proteção e de promoção do ordenamento jurídico. De acordo com a concepção da tutela e da promoção da pessoa humana como centro de preocupação do ordenamento jurídico, é correta a orientação segundo a qual as situações patrimoniais devem ser funcionalizadas em favor das situações existenciais, inclusive, e principalmente, no campo do Direito de Família.

Tradicionalmente, a legislação e a doutrina tratavam o Direito de Família com marcante visão patrimonialista, como se tal segmento do Direito Civil somente tivesse preocupação com os bens jurídicos patrimoniais, deixando de tutelar outros bens de caráter extrapatrimonial, como no exemplo da extensa norma-tização acerca dos regimes de bens no casamento, na linha estrutural apresentada pelo Código Civil de 1916. Tal noção é relexo da instigante preocupação do legislador ? reproduzida no revogado Código de 1916 – com o patrimônio (notadamente o imobiliário) em nítido desprestígio aos relexos no campo ex-

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trapatrimonial no âmbito da família. O Código Civil de 2002 ainda se ressente de preocupação voltada às situações jurídicas patrimoniais, mas reconhece a importância da presença de outros fatores, princípios e valores que devem nortear a interpretação e a aplicação das normas jurídicas.

Houve uma completa reformulação do conceito de família no mundo contemporâneo. O modelo tradicional de família perdeu espaço para o surgimento de uma nova família17, como anteriormente ressaltado, que é essen-cial para a própria existência da sociedade e do Estado, mas funcionalizada em seus partícipes.

Na ótica perlingieriana, urge proceder a uma “releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição da Repúblicacom a visão segundo a qual as normas constitucionais são também...

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