A Constituição
Autor | Ari Ferreira de Queiroz |
Ocupação do Autor | Doutor em Direito Constitucional |
Páginas | 127-149 |
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Em sentido amplo, constituição é toda forma de qualquer corpo. Em sentido formal, é a lei fundamental escrita de ordenação do Estado, algo ainda relativamente novo, tendo surgido apenas no final do século XVIII. Mas, como afirma Ferdinand Lassale, “uma constituição real e efetiva a possuíram e a possuirão sempre todos os Países, pois é um erro julgarmos que a constituição é uma prerrogativa dos tempos modernos131”, o que aponta para um significado universal de constituição132.
Emprestando um sentido mais restrito, constituição significa o corpo, a estrutura do Estado. É por meio de seu exame detalhado que se conhece o Estado, pois, como dizia o saudoso professor Celso Ribeiro Bastos133, ela é a particular maneira de ser do Estado. O conceito de constituição varia conforme o objeto de estudo, a formação do intérprete ou a classificação que se adote.
Analisada tendo em vista as normas nela contidas, é a particular maneira de ser do Estado; analisada sob a verdadeira efetividade dessas normas, pode ser uma constituição efetiva ou irreal conforme seja ou não seja cumprida e respeitada. Não há como conceituar uma constituição sem correr o risco de ser incompleto ou de ir longe demais. É preciso classificá-la e da classificação retirar o conceito que melhor se aplique, mas antes é preciso distinguir a lei constitucional da lei comum.
A lei constitucional, ou constituição propriamente dita, diferencia-se da lei comum lei ordinária ou complementar pelo por menos duas razões: pelo órgão de onde emana, que, em se tratando de constituição, é um poder constituinte, superior, inicial, ilimitado, enquanto em se tratando de lei comum vem de poder constituído, secundário, limitado; a outra razão é o conteúdo de suas normas. Em regra, a constituição contém normas que estruturam o Estado e definem os direitos e garantias fundamentais das pessoas; a lei comum regulamenta as normas não constitucionais; a lei constitucional costuma se apresentar em forma de constituição orgânica, embora possa ter a forma de leis esparsas; a lei comum vem sempre de forma esparsa, assim também considerados os códigos.
Em síntese, podem ser apontadas as seguintes diferenças entre a lei constitucional e a legislação comum: a) a iniciativa do processo legislativo, que para emenda à constituição se
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exige apoio de um terço dos congressistas, enquanto a lei comum se contenta com o projeto subscrito por um congressista isoladamente; b) ainda em sede de iniciativa, os Estadosmembros podem propor projeto de emenda constitucional, o que é vedado em se tratando de lei (art. 60, III); c) os projetos de lei são discutidos e votados uma vez em cada Casa do Congresso Nacional, enquanto a proposta de emenda constitucional é votada duas vezes;
d) a aprovação de projeto de lei se contenta com o quorum de maioria simples (ou absoluta, para lei complementar), enquanto a emenda constitucional exige maioria de três quintos;
e) a promulgação de emenda constitucional é feita pelas Mesas da Câmara e do Senado, enquanto a das leis é feita pelo presidente da República; f) a emenda constitucional não pode ser votada durante estado de sítio, estado de defesa ou intervenção federal, vedação que não há quanto às leis; g) os projetos de leis aprovados pelo Parlamento estão sujeitos ao veto presidencial, o que é impossível quanto aos projetos de emenda constitucional.
Da distinção entre lei constitucional e lei comum surge o problema da supremacia da constituição. É de se indagar: Por que a constituição é norma superior à lei comum? Hans Kelsen134escalonou as normas jurídicas sob a forma de uma pirâmide, tendo no topo a constituição e, na base, as de menor hierarquia. Para ele, a constituição é norma hierarquicamente superior a todas as demais, do que decorre que as normas que com ela colidirem serão inconstitucionais.
Em essência, para a teoria pura de Kelsen, o direito regula sua própria criação, de modo que uma norma jurídica regula a produção de outra e assim sucessivamente135. É fácil perceber que uma lei tem força coercitiva por ter seu fundamento na constituição, assim como um ato normativo do poder público obriga por se fundamentar nas leis.
Segundo essa doutrina, a norma de maior hierarquia é a condição de validade da de menor. Isso justifica a validade das leis, que encontram na constituição o ponto de partida. Mas, e quanto à constituição em si, de onde deriva? De onde vem a sua validade e superioridade? Para responder a essa indagação, Kelsen desenvolveu a tese da norma hipotética fundamental com as seguintes palavras:
Sob a suposição de que ela vale, vale também a ordem jurídica que sobre ela descansa. Confere ao ato do primeiro legislador e, portanto, a todos os demais atos da ordem jurídica que nela descansam, o sentido de dever-ser, aquele sentido específico em que a condição jurídica está ligada com a consequência jurídica na proposição jurídica; e esta última é a forma típica em que tem se deixar representar o material jurídico-positivo íntegro. Na norma fundamental se assenta o significado normativo de todas as situações de fato constitutivas da ordem jurídica. Somente sob a suposição da norma fundamental se pode interpretar como Direito, isto é, como um sistema de normas jurídicas, o material empírico que se oferece para a interpretação jurídica.136
Enfim, a norma hipotética fundamental não é norma jurídica escrita; é um conceito lógico-jurídico, e não jurídico-positivo137. “O que suprime a norma fundamental não é ato
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legislativo de qualquer espécie: é a mudança numa situação factual de poder, a inefetividade, sociologicamente sobrevinda, que desfaz a validade global do sistema”138. Por outros termos, pode-se dizer que em face da norma hipotética fundamental se obedece a tudo que promana do poder constituinte, ou, ainda, que simplesmente se deve cumprir a constituição sem questioná-la.
Em resumo, a superioridade da constituição decorre do fato de ser obra de poder constituinte de fato, superior e ilimitado, ao contrário das leis, obras de poder constituído – este, sim – poder de direito, inferior e limitado.
A ideia de reunir num documento escrito a preceituação estruturadora do Estado, dos poderes dos governantes e dos direitos e garantias fundamentais remonta à primeira fase do constitucionalismo, embora desde muito antes – possivelmente em 1576 – já se reconhecesse a existência de certas leis superiores a outras leis. Dizia-se que há leis por meio das quais o rei governa e leis pelas quais é governado.
Os estudiosos da monarquia francesa salientavam a fórmula lois de royaune e lois du roi, isto é, leis do reino e leis do rei, estas, feitas pelo rei e por ele podendo ser modificadas, enquanto aquelas, como espécies de leis fundamentais da sociedade139, somente por representantes da sociedade podiam ser modificadas.
No século XVII, surgiram vários documentos que não chegaram a alcançar o status de normas constitucionais por não passarem de meras declarações de direitos – Petition of Right, de 1628, habeas corpus act, de 1679, Bill of Right, de 1688. Além desses mais conhecidos, há também a Fundamental Order of Connecticut, de 1639, o primeiro de uma séria de convenants –contratos – entre os colonos fixados no continente americano e a mãepátria, nos quais se estabeleciam direitos e obrigações recíprocos140.
Outra tentativa de documentar as normas constitucionais em texto único teria sido o agreement of the people (1647/1649) – acordo do povo –, que não era propriamente ato legislativo, senão simples documento elaborado e aprovado pelo conselho de funcionários do exército-parlamento, mas que teve a fórmula de projeto de primeira constituição141.
Mas, se nessa época já se pudesse falar de uma primeira constituição escrita, o mérito caberia ao Instrument of Government (1653), de Cromwell, por apontar a ideia que posteriormente ganharia força: a de ser necessário criar regras permanentes e invioláveis em face das resoluções majoritárias do parlamento142. Posteriormente, com o triunfo do movimento constitucional no século XVIII, ao que se costuma denominar de constitucionalismo...
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