Constituicoes sovieticas: da dissolucao do Estado ao Estado-Partido/Soviet Constitutions: From the dissolution of the State to the State-Party.

AutorRodrigues, Theofilo Codeco Machado
CargoReport

Introducao

Sao tempos de efemerides socialistas. Se o ano de 2017 celebrou o centenario da Revolucao Russa, em 2018 serao lembrados os cem anos da primeira constituicao sovietica, aquela instituida em 1918. Nos 74 anos localizados entre a ascensao dos bolcheviques, em 1917, e o fim do regime, em 1991, a republica sovietica conviveu com quatro sistemas constitucionais distintos: 1918, 1924, 1936 e 1977 (1). Cada um deles informado teorico e politicamente por seu contexto historico. Nesse periodo, a URSS se tornaria o eixo do chamado "socialismo real", sistema que chegou a ameacar a hegemonia do capitalismo no seculo XX, mas que sucumbiu as suas proprias contradicoes no final do seculo.

A partir do referencial teorico de Marx, Engels, Lenin e Evguieni Pachukanis, o presente artigo opera uma analise comparada das quatro constituicoes, identificando suas aproximacoes e seus distanciamentos. A hipotese apresentada e a de que, da primeira a ultima, ha uma linha de transicao gradual, cujo marco inicial e a ideia de dissolucao do Estado, presente em 1918, que passa por uma ampla concentracao de poderes nas maos do Estado em 1924 e 1936 e que culmina com a fusao Estado-partido em 1977. O resultado desse processo foi o engessamento da dinamica inovadora da sociedade civil sovietica.

O artigo esta subdividido em cinco secoes. Na primeira, discutimos a teoria do Estado que informa e orienta o constitucionalismo sovietico. Sao trazidas a luz as abordagens de Marx, Engels, Lenin e Pachukanis. Em sintese, a ideia de que o direito e uma forma propria do modo de producao capitalista a ser superada pela transicao socialista. Como veremos, Marx, Engels, Lenin e Pachukanis acreditavam que a superacao do modo de producao capitalista passava pela dissolucao do Estado. A tarefa dos comunistas nao seria, portanto, a criacao de um "socialismo juridico", ou, em outras palavras, de um "direito sovietico", mas sim as bases para o definhamento do Estado. As quatro secoes seguintes apresentam, respectivamente, as principais caracteristicas das constituicoes sovieticas de 1918, 1924, 1936 e 1977.

A teoria do Estado que informa o constitucionalismo sovietico

Aspectos importantes das contradicoes que levaram a derrocada deste experimento marcante remontam a concepcao marxista - ou marxista-leninista - sobre o Estado, e, relacionado a tal concepcao, sobre o papel atribuido ao Direito na sociedade socialista. A ideia de superacao da forma estatal permeou a sociedade sovietica desde os seus primordios, por mais que, no seu desenvolvimento, a sociedade sovietica caminhasse no sentido contrario a este ideal, em um processo de fortalecimento e autonomizacao do Estado.

Cumpre explicitar, de modo muito sucinto, que para Marx e Engels o Estado burgues e essencialmente um instrumento de dominacao de classe. Ele existe como um fundamento necessario para a manutencao da ordem de um sistema inexoravelmente contraditorio, no qual o capital e o trabalho coexistem em constante e crescente conflito. Ja na A Ideologia Alema, os jovens Marx e Engels (2007: 75) afirmam que o "Estado nao e nada mais do que a forma de organizacao que os burgueses se dao necessariamente, tanto no exterior como no interior, para a garantia reciproca de sua propriedade e de seus interesses". Argumento semelhante tambem esta reproduzido no Manifesto Comunista quando sustentam que "o Poder Executivo do Estado moderno nao passa de um comite para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia" (MARX E ENGELS, 1998: 13).

Essa realidade, no entanto, e instavel. Na sua leitura, a dinamica da relacao capital-trabalho implica na intensificacao das contradicoes do capitalismo conforme este se desenvolve. A tendencia ao monopolio e a crescente concentracao do capital e da riqueza levariam a crises que, em ultima instancia, so poderiam ser superadas atraves de uma revolucao que modificasse radicalmente o sistema, eliminando os antagonismos de classe. Neste novo formato, o Estado nao seria mais necessario, a nao ser, somente, como uma instancia administrativa.

Diferentemente dos anarquistas e dos socialistas utopicos, Marx nao preconizava a destruicao do Estado de imediato, e nao considerava que este objetivo poderia ser alcancado com uma simples mudanca de consciencia, posicao que considerava idealista. Marx defendia a conquista revolucionaria do Estado pelos trabalhadores. Para ele, entre uma sociedade capitalista organizada em diversos Estados e uma sociedade comunista sem nenhum, seria preciso atravessar uma fase intermediaria em que o aparelho de Estado fosse controlado pela classe operaria:

Pergunta-se, entao, por que transformacoes passara o ordenamento estatal numa sociedade comunista? Em outras palavras, quais funcoes sociais, analogas as atuais funcoes estatais, nela permanecerao? Essa pergunta so pode ser respondida de modo cientifico, e nao e associando de mil maneiras diferentes a palavra povo a palavra Estado, que se avancara um pulo de pulga na solucao do problema. Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o periodo da transformacao revolucionaria de uma na outra. A ele corresponde tambem um periodo politico de transicao, cujo Estado nao pode ser senao a ditadura revolucionaria do proletariado (MARX, 2012: 43). A passagem supracitada de Marx foi retirada da sua Critica do Programa de Gotha, escrita em 1875. Trata-se certamente do texto de Marx em que melhor a questao do direito e tratada. No entanto, foi com a publicacao em 1887 de O Socialismo juridico que Engels, acompanhado por Kautsky, expos de forma mais sistematica a problematica do direito no socialismo. Com o intuito de combater as nascentes teorias reformistas do socialismo, que conduziam os partidos socialistas a uma politica de simples reordenamento juridico, os autores identificam a forma do direito com a forma da mercadoria. Dessa conclusao deriva a assertiva de que "a classe trabalhadora nao pode exprimir plenamente a propria condicao de vida na ilusao juridica da burguesia" (ENGELS e KAUTSKY, 2012: 21).

Os acontecimentos do comeco do seculo XX pareciam corroborar grande parte das teorias de Marx e Engels. Os movimentos organizados dos trabalhadores se fortaleciam, e os partidos sociais democratas tambem, angariando cada vez mais forca politica. Ainda, as tensoes internacionais e a disputa das nacoes imperialistas por mercado levariam a eclosao da 1 Guerra Mundial em um mundo que, economicamente, atingira prosperidade material inedita atraves do modelo liberal vigente desde o comeco do seculo XIX. Nesse contexto, muitos partidos de esquerda, que haviam deixado de lado o discurso revolucionario devido ao seu fortalecimento nas urnas, passaram a assumir a defesa de seus paises na guerra, o que levou muitos a abandonarem seus partidos de origem e a formarem partidos proprios que assumiriam a denominacao de Partidos Comunistas.

Essa realidade atingiu de forma particularmente intensa a Russia, que possuia movimentos revolucionarios anarquistas e socialistas fortes desde o seculo XIX. Insatisfacoes com a guerra, com a monarquia e com a escassez de alimentos e produtos levaram a uma revolucao que derrubou o czar Nicolau II em fevereiro de 1917. Apos a revolucao, configurou-se uma situacao insustentavel de duplo poder, em que o poder ficou dividido entre o Governo provisorio - governado por varias coalizoes - e o Soviet - Conselho de deputados dos trabalhadores e soldados - de Petrogrado.

O dominio Bolchevique - faccao mais radical do Partido Operario Social Democrata Russo - do Soviet de Petrogrado, a fraqueza do governo provisorio e a permanencia da Russia na guerra acabaram por desembocar na Revolucao de Outubro, na qual os bolcheviques tomaram o poder e instaurou-se, pela primeira vez, um regime de ditadura do proletariado atraves do monopolio politico do Partido Comunista.

O movimento revolucionario foi capitaneado por Vladimir Ilich Lenin, lider dos Bolcheviques. Radicalmente marxista, Lenin encarava o Estado como um instrumento de dominacao de classe. Na sua obra O Estado e a Revolucao, publicado as vesperas da Revolucao de Outubro, Lenin sugere que "o Estado e o produto e manifestacao do carater inconciliavel das contradicoes de classe. O Estado surge precisamente onde, quando e na medida em que contradicoes de classe objetivamente nao podem ser conciliadas" (LENIN, 1978b: 226). Polemizando com os socialdemocratas e com os que marxistas que considerava renegados - particularmente Karl Kautsky -, ele segue:

E precisamente neste ponto essencial e importantissimo que comeca a deturpacao do marxismo, que segue duas linhas gerais. Por um lado, os ideologos burgueses, e especialmente pequeno-burgueses (...) "corrigem" Marx de tal maneira que o Estado aparece como um orgao de conciliacao de classes. Segundo Marx o Estado nao poderia nem surgir nem manter-se se a conciliacao de classes fosse possivel. (...) Por outro lado, a deturpacao kautskiana do marxismo e muito mais sutil. Teoricamente nao se nega nem que o estado seja um orgao de dominacao nem que as contradicoes de classe sejam inconciliaveis. Mas perde-se de vista ou esbate-se o seguinte: se o Estado e o produto do carater inconciliavel das contradicoes de classe, se ele e um poder que esta acima da sociedade e que cada vez mais se aliena da sociedade, entao e evidente que a emancipacao da classe oprimida e impossivel nao so sem a revolucao violenta mas tambem sem a a destruicao do aparelho de poder de Estado que foi criado pela classe dominante e no qual esta encarnado esta alienacao (LENIN, 1978b: 226-227). Em conformidade com a teoria marxista, e diferentemente da tradicao anarquista, Lenin considerava que para o desaparecimento do Estado a ditadura do proletariado seria uma condicao transitoria necessaria:

O proletariado precisa do Estado so por um certo tempo. Sobre a questao da supressao do Estado, como objetivo, nao nos separamos absolutamente dos anarquistas. Nos sustentamos que, para atingir esse objetivo, e indispensavel...

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