A contemporaneidade da obra Mitológicas de Lévi-Strauss

AutorSilvana Colombelli Parra Sanches
CargoDocente no Instituto de Ensino Superior da FUNLEC em Campo Grande, Mato Grosso do Sul
Páginas2-21

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Silvana Colombelli Parra Sanches1

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1 INTRODUÇÃO

Este artigo propõe uma discussão sobre a atualidade da diversidade de mitos apresentada em Mitológicas, detendose a analisar Mitológicas 1: O cru e o cozido. Publicada originalmente em 1964, esta obra é um legado levistraussianoameríndio que se faz presente em diversos espaços, sejam eles acadêmicos ou construídos pela sociedade em geral, que buscam cada vez mais transformar visões de mundo e relações sociais baseadas em conceitos sobre as relações entre Natureza e Cultura, Modernidade e Arcaísmo, belo e grotesco, Ciência e Mito.

Aos noventa anos, Claude LéviStrauss, em entrevista a Beatriz PerroneMoisés (1999), dividiu seus escritos sobre mitos em “grandes mitológicas”: O cru e o cozido, Do mel às cinzas, A volta dos modos à mesa e o Homem nu; e, “pequenas mitológicas”: A via das máscaras, A oleira ciumenta e História de Lince. As “grandes mitológicas” são compostas por 813 narrativas construídas coletivamente, pois se observa que o autor se valeu de inúmeras fontes de mitos e que tais mitos foram coletados por etnólogos em diversas etnosociedades. Ao se tentar fazer uma imagem da obra, ou seja, percebê-la a partir de uma estética visual, podese dizer que os mitos, em Mitológicas, foram amarrados tridimensionalmente em um mosaico arredondado como a nossa biosfera, bem estruturados, e os nós sustentadores desta armação, que se espalham por toda parte nessas obras, são as oposições binárias.

LéviStrauss, em Mitológicas 1 (2004a, p.233) convenciona chamar de armação um “conjunto de propriedades que se mantêm invariantes em dois ou mais mitos”. Designa o termo código a um “sistema das funções atribuídas por cada mito a essas propriedades” e confere à palavra mensagem significar o “conteúdo de um mito determinado”. E, relacionando o mito bororo do “Desaninhador de pássaros” ao qual confere a característica de mito de referência com o mito xerente da “Origem do fogo”, diz que “quando se passa de um mito ao outro, a „armação‟ se mantém, o „código‟ se transforma e a „mensagem‟ se inverte”. No fazer do autor, que se aproxima do lógicomatemático, uma dinâmica relacional muito mais complexa é construída, dinâmica que une os mitos à música e à botânica. Nesse sentido, o Cru e o Cozido é dedicado à música, e a inspiração do autor está em Richard Wagner, autor de óperas que também influenciaram Friedrich Nietzsche, em O nascimento da tragédia.

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Além disso, a visão cosmocêntrica ameríndia contrasta com a visão antropocêntrica que tradicionalmente guiou os rumos da ciência européia ocidental, e convida a (re)pensar o que se produziu baseado em relações fixas sobre o que seria a relação NaturezaCultura. LéviStrauss (1978) em entrevistas compiladas no livro Mito e Significado, a respeito das similitudes entre os fatos narrados pelas diversas sociedades, declara:

Assim, se o mesmo absurdo se viesse a repetir uma e outra vez, e outro tipo de absurdo também noutro local, então isso seria uma coisa que nada teria de absurdo; se fosse absurdo não voltaria a aparecer. Esta foi a minha primeira orientação, e cifrouse em descobrir a ordem por detrás desta aparente desordem. E quando, depois de ter trabalhado nos sistemas de parentesco e nas regras de matrimônio, voltei a minha atenção, também por acaso e não por opção, para a mitologia, o problema demonstrou ser o mesmo. As histórias de caráter mitológico são, ou parecem ser arbitrárias, sem significado, absurdas, mas apesar de tudo dirseia que reaparecem um pouco por toda parte. Uma criação “fantasiosa” da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente única – não se espera encontrar a mesma criação num lugar completamente diferente. O meu problema era tentar descobrir se havia algum tipo de ordem por detrás desta desordem aparente - e era tudo. Não afirmo que haja conclusões a tirar de todo esse material. (LÉVISTRAUSS, 1978, p.15)

Ao buscar conceituar “mito”, Massaud Moisés (1974, p.300) afirma: “ingênua em relação ao tempo, a consciência mítica pressupunha uma indivisível unidade entre os seres e as coisas, entre sujeito e objeto” e, citando Georges Gusdorf (1960, p.25 apud MOISÉS, 1974, p.300) continua: “entre a sua presença em si e a presença no mundo, unidade originária da consciência e do mundo, prévia ao divórcio da reflexão, que é desdobramento antes de ser enriquecimento”. Fica implícito neste discurso, uma hierarquização positivista da consciência coletiva, quando se coloca a consciência mítica no passado, animista e “originária” a uma consciência metafísica e, posteriormente, a uma consciência que seria a científica.

Se “desdobra” antes de “enriquecer”, isto é, o autor, apesar de notar que os mitos se traduzem de uma língua a outra, modificamse com o tempo e resignificam, não vê esta dinâmica como algo já enriquecido por um pensamento complexo do real. Este pensamento contrasta com o de LéviStrauss, que relativiza:

Se você interrogar um índio americano, seriam muitas as chances de que a resposta fosse: uma história do tempo em que os homens e os animais ainda não eram diferentes. Porque, apesar das nuvens de tinta projetadas pela tradição judaicocristã para mascarála, nenhuma situação parece mais trágica, mais ofensiva ao coração e ao espírito do que a situação de uma humanidade que coexiste com outras espécies vivas sobre uma terra cuja posse partilham, e com as quais não pode comunicarse. Compreendemos que os mitos se recusem a tomar esse defeito da criação como original; que

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vejam em sua aparição o acontecimento inaugural da condição humana e da sua fraqueza (ERIBON; LÉVISTRAUSS, 1990, p.178). [grifos nossos]

Não apenas relativiza como insere o discurso de LéviStrauss nas discussões recentes sobre especismo e superação do paradigma de “dominação da natureza pelo serhumano”, por uma defesa da busca pelo equilíbrio na relação humanohumanoambiente. Os mitos revelam uma multiplicidade de perspectivas, de visões de mundo, que não obedecem apenas à lógica do organismo e da visão humana.

Sobre isso, José Marques (2005) afirma que LéviStrauss procurou introduzir uma dimensão ética específica aos estudos antropológicos, que decorre, segundo o autor, de os etnólogos serem testemunhas imediatas dos males produzidos pela força modernizante da civilização ocidental. Ele escreve que: “De fato, LéviStrauss escreveu suas obras mais significativas ainda em plena época da empreitada colonialista européia, e é natural que sua vocação etnológica o indispusesse contra a violência exercida sobre as culturas ocidentais” (MARQUES, 2005, p.251). Ao contrário de Marques, observase que muitos intelectuais inseridos em contextos de destruição e desvalorização das culturas ameríndias não deploram esta realidade como LéviStrauss o fez, além do fato de que este poucas vezes viajou para a América do Sul e não estava em contato direto com a realidade ameríndia quando escreveu Mitológicas.

Portanto, não é natural que pessoas providas de conhecimentos etnológicos sejam mais ou menos a favor da permanência da diversidade de culturas e de espécies, outras que não sejam humanas, como aquelas que comumente inserimos cientificamente no rol da natureza. Havia uma sensibilidade incomum em uma pessoa que, em pleno maio de 68, se preocupava com as árvores que haviam sido queimadas por estudantes em Paris.

2 ACASOS OBJETIVOS

Tal como Galileu Galilei, que munido de um telescópio estabeleceu relação íntima com os céus, o autor de Mitológicas 1 observou a diversidade da cultura brasileira, tanto de perto, quanto de longe. Os escritos de LéviStrauss receberam influência direta de teóricos como Karl Marx e Sigmund Freud, bem como de movimentos vanguardistas, como o surrealismo. Considerase surrealismo como o

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definido por Hal Foster (2008, p.20): “Em síntesis, para mi, el surrealismo no es tanto um objeto que debemos someter a la teoria, sino um objeto teórico que produce sus próprios conceptos críticos”.

Entretanto, LéviStrauss explica, em entrevista a Didier Eribon (1988) que os surrealistas enriqueceram e refinaram seu olhar artístico e estético em relação a objetos, que lhe apareceram com outra luz. Estabeleceu relações de amizade com o pintor surrealista Max Ernst, que era um apaixonado por arte primitiva. Sobre a relação entre Mitológicas e a arte de Ernst, LéviStrauss coloca:

Max Ernst construiu mitos particulares por meio de imagens tomadas de empréstimo a uma outra cultura: a dos velhos livros do século XIX, e ele fez estas imagens expressarem mais do que significavam quando eram vistas com um olhar ingênuo. Em Mitológicas, eu também recortei uma imagem mítica e recompus seus fragmentos para fazer com que deles brotasse mais sentido (1988, p.50). [grifo nosso]

LéviStrauss concebia a obra de arte como elaboração secundária ao documento científico. Segundo sua argumentação, ela ultrapassa o limite do pensamento racional e crítico, inserindose numa esfera mais preocupada com a estética e com as percepções imagéticas. Esta também é uma questão atual e se observa que é tema de inúmeros debates interdisciplinares sobre a racionalidade da obra de arte. Muitos críticos de arte acreditam que a arte é indecifrável e não deve ser acompanhada por análises acadêmicas sobre sua elaboração. No entanto, alguns artistas, curadores e críticos percebem a intencionalidade da obra de arte como intrinsecamente relacionada a uma visão de mundo e também a uma tomada de posição política ou teórica.

O ponto de vista de LéviStrauss se aproxima ao proposto por Max Ernst ao afirmar não ser criador, porque não é um deus. Neste contexto, podese dizer que Mitológicas é uma obra científica, inserida na linha teórica estruturalista; mas, também é uma obra de arte, pela sua...

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